quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Inger Hagerup


                                             POEMAS DE INGER HAGERUP


A PESTE

I

Levantemos uma bandeira negra sobre os países
e desenhemos uma cruz na nossa porta,
pois uma grande peste assola a terra.
Percorreu a árida terra de África sobre pés amarelados
    pela febre.
Desfilou pelas ruas de Berlim
ao compasso de tambores e música de vento.
Nos conventos de Espanha disse como os anciãos
o deslizante rosário das metralhadoras,
e nos arredores de Madrid escondeu o seu terrível rosto
numa máscara de gás último modelo.
Atirou sobre as suas empestadas feridas as capa do ditador
e cobriu o seu ventre inchado com uma casula vermelha de bispo.
Um dia nomearam-na catedrática em Jena.
E ela falou com uma boca bicuda e astuta atrás dos seus livros.
Em Xangai enforcou trezentos escravos que tinham pedido pão
e quando teve oportunidade de arrancar as unhas
    a um velho judeu
largou à gargalhada.
Olhos os seres humanos com olhos sanguinolentos
ferindo-os com a cegueira,
para não cultivem cereais na terra,
mas granadas nas fábricas,
para que não construam cidades levantadas até ao céu,
mas as incendeiem,
para que não saúdem o seu irmão,
mas o matem
– – –

     Levantemos uma bandeira negra sobre os países
e desenhemos uma cruz na nossa porta,
por causa da grande peste.

Jeg gikk meg vill i skogene, 1939



AS REDES DE FERRO

Três irmãs pálidas
dançam sem som à luz da aurora boreal.
Três irmãs pálidas
com vestidos de prata.
Onde põem os seus pontiagudos tacões
morre a última flor,
cai a folhagem amarelenta retinindo no chão,
quebram-se as valentes espadas das espigas.

Três irmãs pálidas
dançam sem som à luz da aurora boreal.
Na manhã seguinte restam as caudas dos seus vestidos de prata
sobre os prados orvalhados.


Jeg gikk meg vill i skogene, 1939



EU SOU O POEMA

Sou o poema que ninguém escreveu
Sou a carta que sempre se queimou.

Sou o caminho que ninguém tomou
e o som que nunca soou.

Sou a oração dos lábios mudos
Sou o filho de uma mulher não nascida,

uma corda que nenhuma mão estendeu
uma fogueira que ninguém acendeu.

Acordai-me! Redimi-me! Levantai-me já
da terra e disponha, de espírito e corpo e alma!

Mas quando rezo, só respostas incompletas.
Eu sou as coisas que não ocorrem nunca.

Jeg gikk meg vill i skogene, 1939




ODE ÁS VERDURAS

Pesadamente carregados como guerreiros vitoriosos
voltamos diariamente do nosso horto a casa.
Às verdes hordas das couves liquidámos,
separámos as suas grossas cabeças do corpo com uma aguçada
    faca
e colocámo-las em cestos.
Ao risonho leque das cenouras arrancámo-lo cuidadosamente,
e logo recolhemos os sangrentos cachos dos tomates.
Sob férteis bosques de folhas denteadas
explodiram os pepinos como peludos dedos de crianças.
Agora nadam em recipientes de vidro
para oferecerem aos nossos paladares avinagrada doçura no inverno.
Das flores de borboleta do feijão verde surgem
arqueados barcos vikings com minúsculos rosário de escudos na
    borda
(vagamente camuflados sob a tensa pele da bainha das ervilhas).
As frias cores da couve-flor, elegantemente apertadas como o ramalhete
nupcial dos anos noventa
misturam-se com redondas cebolinhas e minúsculos pepinos no frasco.
O nabo ergue-se a meio caminho da terra
no seu afã de servir e fastidiosa riqueza vitamínica.
Deixamo-los sem cerimónia no canto mais escuro do sótão
onde saberemos encontrá-lo de novo
quando os dias se fizerem curtos e pardacentos.
Mas as batatas, férteis como um chinês do condado da fome,
recolhemo-las aos centos, sim, aos milhares, da terra do nosso horto.
Porque a batata, esse curtido proletário dos nossos sótãos,
ressuscita a cada dia dourada e fumegante
convertida no sólido centro
à volta do qual se unem o arenque salgado e o jarro de água
sobre a toalha da nossa mesa.

Flukten til Amerika, 1942



 A MINHA AMADA CHEGOU A CASA ONTEM

A minha amada chegou a casa ontem
com brancos flocos de neve no cabelo.

A minha amada não é minha.
De outro é o seu coração.

Também a minha amada foi enganada.
Amargamente ontem a noite chorava

no sonho, quando me disse:
meu amor, quero-te tanto!

Videre, 1945



CREIO

Eu creio em muitas coisas. No sangue. No fogo.
Creio em caminhos onde não é possível perdermo-nos.
Creio nos sonhos dos que pertencemos.
Caminho às cegas. Não me leves a casa.
Deixa que a noite me guie sempre até adiante.
Em algum lugar na escuridão há uma porta entreaberta.
Em algum lugar num limite entre corpo e alma,
um lugar onde o próprio tempo diz detém-te
– lá onde talvez ardesse o meu coração?

Não me escutes. Todas as minhas palavras
são perigosos profetas, falsas pistas.
Sou muito diferente do que tu acreditas.

Videre, 1945



TAMBÉM O AMOR TEM QUE MORRER

Mata-me, disse ela, porque de qualquer modo
nos possui a morte.
Antes que ser abandonada pela vida
prefiro eu abandoná-la a ela.

O amor também tem que morrer
e não voltar jamais.
Meu amado, deixa-me ir em frente,
deixa-me morrer antes do amor.

Den syvende natt, 1947



INSTANTE

Como uma última súplica estende-se a mão dela
entre os copos chamando a dele.
No mais há bastante silêncio entre os dois,
silêncio bastante após a sua última valsa.
O coração sabe-o já, ainda que a mão deixe de suplicar:
Tão inapelável como a própria morta
é quando um corpo deixa de amar
e se despede sem palavras de outro corpo.

Sånn vil du ha meg, 1950



O MENINO LOUCO

Ao menino louco da casa ao lado
tinham-no preso. À noite ouvíamo-lo
a uivar. E eu sussurrava à minha almofada:
Obrigado, meu Deus! Ao menos eu estou livre.

O menino louco já não grita.
No entanto o grito acorda-me
nas noites negras sem estrelas.
Então não é o menino. Sou eu.

Fra hjertets krater, 1964



DETALHE DE UMA PAISAGEM INVISÍVEL DE NOVEMBRO

No meio do país de névoa que se chama eu
há um velho sinal de trânsito sem caminho.

Ali está assinalando com a sua carcomida flecha
até aos pântanos e quilómetros de neblina.

Em vão procuro nomes e sinais.
Nevões e chuvas tudo apagaram.

Ali esteve uma vez o caminho para que me encaminhava.
Quando desapareceu e quando me perdi?

Vou às cegas como um invisual até essa palavra
que me indicaria o caminho da minha casa.

No meio do país de névoa que se chama eu
há um sinal sem caminho que me assusta.


Fra hjertets krater, 1964


Versão minha - © Amadeu Baptista

Inger Hagerup (1905-1985). Nasceu em Bergen. Durante a ocupação alemã, refugiou-se na Suécia. Depois da guerra, foi crítico literário do jornal comunista Friheten. Escreveu também teatro e a sua poesia para crianças é muito conhecida. Traduziu Emily Dickinson.

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