POEMAS DE WILLIAM HEINESEN
EM CASA NA TERRA
Conheço um país
onde o dia invernoso sobre o mar
é como o crepúsculo entre velhas tumbas.
Aqui, em frente a uma ceia de pão e peixe
há uma velha e magra anciã sem carnes
de mãos venosas e dedos retorcidos
mas com um coração transbordante de formosos sorrisos.
De novo estou em casa.
O leite sabe a feno e a fumo de turfa.
A chaleira borbulha compenetrada sobre o fogo.
Lá fora cantam
incompreensivelmente muitos milhões de toneladas de água.
Lá fora revoluteiam alegres bandos nocturnos de estorninhos invernais.
As ovelhas descansam no monte
com orvalho e aurora boreal na lã.
Na praia está a grua
no mesmo lugar e na mesma posição
que na época do faraó Pepi I.
Na água passeiam barbos e xarrocos
pelos bosquezinhos de palmeiras de algas
saudando sem pressa com a cauda
o caranguejo.
E o anarrico – vermelho anilina e verde fel
e violeta como uma mão congelada
e aziagamente negro azulado como gangrena num pé
e com lúpus no estômago e lepra no costado
e com duas cânulas na cabeça –
colou-se com a sua ventosa a uma pedra do fundo,
agarrou-se com os dentes ao planeta Tellus,
e finge que é uma flor tão formosa
como a mais bela no céu e no inferno.
E que acontece com a cria do picão
que é tão minúscula como a mais pequena vírgula do apocalipse?
E que ocorre com a baleia,
esse filho grande e solitário de Deus,
que espirra tão confiada nos lugares desolados?
Ai mãe, quando estamos satisfeitos
de comer, de falar, de nos rirmos e de nos maravilhar-nos,
vai cada um para seu lado:
eu para a minha cama,
onde distraído abro a eclusa intemporal do sonho –
tu para a tua tumba,
onde sussurra a erva familiarmente
com a sua voz de escuridão e eternidade.
Hymne og harmsang, 1961
HYMNUS AMORIS
Anna Magdalena e Johan Sebastian Bach
piæ memoriæ
FANTASIA
«Dentro de mil anos,
sim, dentro de milhões de anos
dir-te-ei:
Sabes onde estás?
Está no meu coração.»
FUGA
Sim! responder-te-ei com alegria
dos intemporais campos celestes por onde caminho:
«Estou no teu coração,
e que feliz que sou!
Sou o sal no teu sangue,
o vetusto sabor a mar de que vieste.
Sou a maré eterna
de noite e dia nos teus olhos
que a luz criou
e que voltou a criar a luz
e lhe deu conteúdo.
Sou o caracol do teu ouvido,
a bigorna e o martelo
que bate delicadamente a matéria prima sonora do mundo
dando-lhe sentido.
Sou a brisa
que percorre as coroas dos teus pulmões,
o oxigénio e o dióxido de carbono
que se permutam eternamente
com o verdor doméstico da terra.
Sou a humidade na tua boca,
as papilas gustativas da tua língua,
o ácido clorídrico na retorta do teu estômago,
a força nas tuas entranhas
que extraem a essência do núcleo da terra
e alimentam as miríades de células vitais do
teu corpo.
Sou o profundo mistério da concepção
no teu interior
em cujas trevas a lua
se acende e se apaga invisível.
Sou o jovem fruto solitário
da vetusta árvore do mundo da tua matriz
e sou o manancial de leite
nos teus seios.
Sou o cálcio nos teus ossos,
a flexibilidade nos teus tendões e membros,
o coriáceo do teu cabelo e das tuas unhas.
E sou o iluminado aroma
que emanam os poros da tua pele.
Sou a veemência
nas correntes das tuas artérias
e a mansidão
no delta azul das tuas veias.
Sou a incandescente energia
nas ramificações bruxuleantes dos teus nervos
sim, sou a carga eléctrica da vida
na tua alma.
Sou os temerários dentes no teu sorriso
quando estás contente.
Sou a doçura secreta da ternura na tua tristeza.
Sou o redemoinho de fogo da tua angústia
e o fogo do meu enfurecido amor
fará da tua dor cinzas.»
Hymne og harmsang, 1961
OLÍMPIA
O lavagante já não se deleita
com o coração do marinheiro náufrago da guerra.
Apetecível apresenta-se agora no seu delicado vermelho
sobre o prato da jovem viúva
e em breve adquirirá maneiras mais elegantes
quando se incorporar ao seu metabolismo sublime.
O mugido agónico do boi emudeceu
mas mancha o seu claro sangue
os joviais dentes dela.
Foi teu destino, oh, afortunado,
partilhar o tecido celular com ela
e conservar o calor dos seus sonhos.
As migrações da enguia
que tanto emocionaram os sábios
acabaram nas profundidades sob a sua ágil campânula.
O esturjão não encontrou nunca refúgio mais belo para as suas crias
do que as sadias entranhas dela.
As mudas uvas do Reno e do Ródano
desprenderam um delicioso discurso na sua língua
e o seu novo amante sorriu placidamente.
E no final da série destas oferendas da vida,
a morte fez-se notar discretamente
através do efémero aroma a queijo putrefacto
e o espírito entregou o seu tributo
sob a forma de bênção sacerdotal
que como uma suave aura rodeava
a garrafa de licor dos amantes enfeitada com uma cruz
enquanto as suas bocas se encontravam.
Então um suspiro percorreu a criação
e o peixe voltou às suas águas
e os animais aos seus prados
e os mortos às suas covas nas trevas.
Hymne og harmsang, 1961
AS TREVAS FALAM AO ARBUSTO EM FLOR
Eu sou a treva.
Sentes a minha face sobre a tua?
Sentes a minha negra boca sobre a tua vermelha?
Sim, tu és a treva e assustas-me.
Tu és a noite e a eternidade.
Sinto o tua gélida respiração.
Tu és a morte.
Queres que eu murche,
E tenho tanta vontade de viver e florescer!
Sou a treva.
Amo-te.
Quero que murches.
Que floresças e murches.
Que murches e ressurjas com as tuas flores.
Que murchas e floresças uma e outra vez.
Sou a noite. A morte. A Eternidade.
Amo-te.
Desesperava se não existisses
e não me estivesses esperando aqui
com o ansioso alento das tuas fugazes flores.
Com o vivo tropel dos teus irmãos,
cálidos beijos vermelhos,
na profundidade do meu coração solitário.
Panorama med reghbue, 1972
Versão minha - © Amadeu Baptista
William Heinesen, nasceu em 1900, em Thorshvn, uma das ilhas Faroé e faleceu em 1990. Estudou na Escola Superior de Comércio de Copenhaga. O seu primeiro livro de poesia data de 1921. Foi pintor, músico e poeta. Escreveu romances de carácter épico, assim como numerosas novelas e contos centrados no seu universo insular. Foi membro da Academia Dinamarquesa a partir de 1961.