terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Um poema de 1997 para 2014




W.H. AUDEN FICCIONA SOBRE CHRISTOPHER ISHERWOOD

1.
Ignoro o paradeiro de Christopher Isherwood,
há muito que o outro lado do muro o fascinava,
muitas vezes me perguntou que poderia pensar-se
da separação das águas e quais seriam as melhores embarcações
para atravessar o mar. Não raro o observei a sondar
o infinito, cada noite dedicada a uma estrela
no firmamento, enquanto fazia rodar a caneta
entre os dedos a uma velocidade inverosímil, uma rotação
que me deixava atónito. – " Wystan, você acredita
na grande máquina? ". E ficava
a olhar além do vazio, além do azul, como se a existência
fosse bem mais intensa que o tédio que nivela os fins de tarde
e a dúvida cravada no seu rosto,
o móbil da sua vida. – " Wystan,
não tenho notícias de Manchester há cinco meses, é bem
provável que tal sítio do mundo já não exista." E olhava
o verde brilhante que inundava a janela
do nosso quarto comum. Esta manhã saiu cedo, andou sobre
a carpete para não me despertar, mas pressenti-o
a saltar da cama cautelosamente e a fechar a porta
com suave gentileza. – " Wystan, hoje não teremos
um pequeno-almoço delicioso ", disse, entre-dentes,
e partiu para sempre ainda mais só do que me habituei a vê-lo,
recordando, talvez, Manchester ou alguma escuna branca
que tivesse sonhado nessa mesma noite e o tivesse levado
mais longe, a regiões mais vastas,
do que esta infernal
preparação para o precário mercado de commodities.


2.
Vim a saber que lhe bateram com uma correia de transmissão
quanto tinha oito anos e que sempre que aceita um desafio
é como se voltasse a esse tempo de surda revolta. Compreendo
que se sinta infeliz, mais a mais tendo outras pérfidas
recordações a persegui-lo, vitimou-o a morte da avó com essa tristeza imparável,
onde entra irradia uma premonição de algo que irá desabar
e uma corrente de ar gelado que é impossível conter.
Também soube que perdeu os pais muito cedo, num incêndio, ao que creio,
essas tragédias abatem-se sobre nós e não nos atrevemos a olhar
para trás sem que algo estale dentro da cabeça, uma explosão
no espírito que faz com que inclinemos a cabeça para o peito
e uma pequena barragem se levante para a lágrima que ameaça chorar
enquanto o estremecimento atravessa o corpo e se prolonga
além do olhar com o poder de transfigurar a realidade e nos devolver
a esse passado avassalador onde tudo aconteceu. Presumo
que o fascínio tem desses sedimentos, as marcas indeléveis
acossam a memória e tudo é irremediável, fugaz
mas irremediável, uma fita de imagens lentíssimas
desenrola-se sob os olhos,
amplia-se na distância do tempo, é uma dor mais forte
que não dói já, mas há-de continuar a doer além do imaginável,
além dos ossos,
além da morte,
além do feroz instinto de prevalecer.


3.
Estou agora professor de poesia em Oxford
e o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
se me olho ao espelho coro de vergonha
pela traição a que me submeti,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.

A poesia não me desobriga da vida
mas o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
desde a infância que me comovo com as estrelas,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.

Onde quer que vá neste espaço exíguo lembro-me
que o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
ele estava fascinado pelo que havia além do muro,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.


(in Desenho de Luzes, Amigos de Azertyuop, Corunha, 1997)







Poemas e fotos - © Amadeu Baptista

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Rolf Jacobsen



                                          POEMAS DE ROLF JACOBSEN



METAFÍSICA DA CIDADE

Sob as grades das sarjetas,
sob os escuros porões manchados,
sob as húmidas raízes da avenida das tílias
e o céspede dos parques:

Os fibrosos nervos dos cabos telefónicos.
As veias ocas dos tubos do gás.
Cloacas.

Dos altíssimos Alpes humanos do este,
das fachadas do chalés escondidas atrás das cercas do oeste
– as mesmas cadeias invisíveis de ferro e cobre
nos aprisionam.

Ninguém pode ouvir a crocante vida dos cabos telefónicos.
Ninguém pode ouvir a tosse doentia das tubagens do gás no abismo.

Ninguém pode ouvir como estrondeiam o lodo e o fedor das cloacas
nas centenas de quilómetros de escuridão.
As vísceras blindadas da cidade
trabalham.

Mas acima à luz do dia tu estás a dançar com chamejantes
pés sobre o asfalto e levas seda sobre o olho
branco do umbigo e casaco novo à luz do sol.

E em cima à luz em algum lugar estou a ver como
a alma azul dos cigarro revoluteia como um anjo casto
através da folhagem do castanheiro até à vida eterna.

Jord och jern, 1933


PAVANA

A pavana, essa estranha dança de pavão real
que a infanta Isabel dançou
com D. Juan Fernandes de Castela
na última noite antes da morte ter visitado o alcácer
– pálida como um cadáver e já marcada por gélidos dedos
mas com os enfeites do pavão real e com os estranhos
passos rígidos como se já estivessem mortos
– a mesma dança que bailou a rainha de Espanha
com o coração carregado de medo e semi-petrificada
pelo pesado brocado, pompa e etiqueta
como se um duro esmalte lhe envolvesse o selvagem coração,
– é talvez a mesma dança que baila o mar
com as nuvens ali ao longe, este jogo apagado
mudo com as caudas de pavão real das nuvens
e os passos abruptos do mar em pesado brocado
até à deserta abóbada celeste – assim dança o mar
uma desolada dança com as nuvens ao ritmo de uma música apagada.


Hemmelig liv, 1954




A VELHICE

A mim agradam-me os mais velhos.
Estão aí sentados e olham-nos e não nos vêem
e muito têm com o seu,
como os pescadores na ribeiras dos grandes rios,
imóveis como pedras
na noite estival.
A mim agradam-me muito os pescadores nas ribeiras dos rios
e aos velhos e aos que saem à rua após uma longa enfermidade.

Têm algo nos olhos
que o mundo já não vê
os velhos, como convalescentes
cujos pés ainda não são fortes o bastante para os suster
e com a face pálida como depois da febre.

Os velhos
que voltam a ser eles mesmos lentamente
e se dissolvem lentamente,
como o fumo, imperceptivelmente transformam-se
em sonho
e luz.

Hemmelig liv, 1954



O ANJO DA GUARDA

Sou o pássaro que bate na tua janela de manhã
e o teu acompanhante, o que não podes conhecer,
as flores que resplandecem para o cego.

Sou a coroa do glaciar sobre os bosques, a deslumbrante,
e as sonoras vozes da torre da catedral.
A ideia que cai de repente sobre ti em pleno meio-dia
e te enche de estranha felicidade.

Sou alguém que amaste há muito tempo.
De dia caminho ao teu lado olhando-te sem poder tirar os olhos
                                                                       de cima
e ponho a boca sobre o teu coração,
mas tu não o sabes.

Sou o teu terceiro braço e a tua segunda
sombra, a branca,
para a que não tens coração
e que nunca te poderá esquecer.

Hemmelig liv, 1954



ESPESSO NEVÃO

Um imenso nevão enche as ruas pela manhã
como uma espécie de loucura na luz
– alguém trata de tocar flauta com mãos amputadas
e de tapar os semáforos com lenços rendados
mas fracassa como toda a tentativa
de mudar a nossa visão do mundo resulta ela mesma
transformada
em resíduos de petróleo e urina que desaparecem na sarjeta

Porque de nada servem borboletas cloroformizadas
ou passar a esponja lentamente sobre uma imagem que é maligna
quando a mão treme e duvida de si mesma
e a imagem é de ferro.

Stilheten efterpå –  , 1965



LENTAMENTE

Imagens de terras imensas,
remoinhos de areia, céus de bronze
permanecerão até ao fim dos tempos, o vento
levanta o pequeno grão de areia até o deixar sobre uma pedra,
a chuva leva-o.

Por isso o rosto da terra entre as constelações das estrelas
está coberto de esquecimento – lenta
como as pedras é a acção de Deus para connosco,
um dia chegará como uma rosa – um dia como um fogo.
Tudo tem a sua hora.
Dentro de mil anos
terá chegado o caracol à árvore.

Vejo uma velha chuva caminhar inclinada sobre a terra do entardecer
procurando com as suas ténues mãos as coisas esquecidas
pelas quais ninguém se preocupa – o silêncio entre os tufos da
    erva
meias palavras, fragmentos de perdas, pensamentos
que não pensou quase ninguém, os caminhos
silenciosos de erva e sonho que levam
de um tempo a outro.

Onde encontramos nós agora
o que possa unir tudo o que foi disperso.
O caminho entre as estrelas, os caminhos da bússola
ou as linhas das mãos de todas as raparigas
que se parecem ao vento entre as rosas.
Porque é tarde

logo levará o rio mais imagens,
as ladeiras das montanhas, reflexos de casas, um rosto amado
leva-o para o mar. Tudo se recolherá
sem uma palavra e o planeta inclina
serenamente o seu ombro até à noite e ao dia.
Em algum lugar o vento leva toda a manhã sussurrando
                        nos bosques,
em algum lugar o contorno de uma montanha entra
                        imperceptivelmente na noite.

Stilheten efterpå –  , 1965



O SILÊNCIO DE DEPOIS

Trata de acabar já
com as provocações e as estatísticas de vendas,
os pequenos-almoços dominicais e os fornos de incineração,
de acabar com os desfiles de moda e os horóscopos,
os desfiles militares, os concursos de arquitectura
e as três fileiras de luzes de tráfego.
Deixa-o e acaba
com os preparativos para a festa e as apostas
de oito múltiplas,
famílias do índice de consumo e análise de mercadotecnia,
porque é tarde,
é demasiado tarde,
acaba já e volta para casa
ao silêncio de depois
que te recebe como uma injecção de sangue quente no rosto
e como os trovões do caminho
e como a vibração de sinos potentes
que fazem tremer o tímpano
porque as palavras já não existem,
já não há mais palavras,
de agora em diante tudo falará
com as vozes de pedras e de árvores.

O silêncio que vive na erva
na parte interior de cada tufo
e nos espaços azuis entre as pedras.
O silêncio
que segue os tiroteios e o trinar dos pássaros.
O silêncio
que cobre o morto com uma manta
e espera na escada que todos se vão.
O silêncio
que pousa nas tuas mãos como um passarinho,
o teu único amigo.

Stilheten efterpå –  , 1965



BOSQUE DE ATENAS

Sobre os telhados das cidades há extensas planícies.
Lá se refugiou o silêncio quando já não havia lugar para ele nas ruas.
Agora segue-o o bosque.
Tem que estar ali onde se encontra o silêncio.
Árvore após árvore formando estranhos bosquezinhos.
Não enraízam bem porque o solo é demasiado duro.
Cresce um bosque incomum, um ramo para este,
e outro para oeste. Até que parece uma cruz. Um bosque
de cruzes. E o vento pergunta
– Quem jaz aqui
nestas profundas tumbas?

Pusteøvelse, 1975



TEMPO SUFICIENTE

Tempo suficiente.
O homem do bastão branco tem tempo de sobra. É cego.
Conhece o mundo por dentro. As marteladas
na parede e os flocos de neve no cabelo quando chega o outono.
Sabe de que são feitos os sonhos.

Não pertence à noite nem ao dia.
Pela tua voz sabe se o teu coração está em paz.
A luz põe-lhe um dedo sobre a boca.
Não o questiones. Sabes mais do que tu.

Há um mundo mais além dos olhos.
Maior que o nosso. É o seu.
Se te dá a mão sente os ossos
como asas de pássaro.

Pusteøvelse, 1975




VOLTAI-VOS PARA OUTRO LADO – PENSAI EM OUTRA COISA!

– Voltai-vos para outro lado. Pensai em outra coisa.
Pensai em tudo o que podeis comprar. Pensa no teu carro.
Em tudo o que diz o anúncio. Coisas deliciosas.
Não vos ponhais a olhar para aqui a todo o instante. Voltai-vos.
Pensai em outra coisa, dizemos-vos.
Mas bem, voltai-vos para outro lado já. Olhai os escaparates.
Maravilhas. Últimas novidades em todas as secções.
Casacos de pele de foca. Não vos agradam? Roupas novas.
Em breve será primavera. Pensai em super raparigas.
Pensai no vento. Bem, mas dai a volta de uma vez.
Aqui não pedimos testemunhos.
Vai ao cinema esta noite ou passa por uma igreja,
se és disso. Participa do canto dos fiéis,
sê como os demais, caramba.

Agora escuta. Pela última vez. Não olhes para aqui.
E pensa noutra coisa. Já to dissemos
– aqui não queremos público.
Compra um grosso jornal ou uma revista.
Olha todas essas imagens a cores e recorda que esta é a última
    advertência.
– Assim, muito bem. Óptimo. E agora vamos falar de outra coisa.
Não, caramba, não. Não te movas.
Ou disparamos.

Tenk på Noé annet, 1979



DE REPENTE, EM DEZEMBRO

De repente. Em Dezembro. Estou na neve enterrado até aos joelhos.
Falo contigo e não me respondes. Estás calada.
Minha amada, foi assim que aconteceu. Toda a nossa vida,
o sorriso, as lágrimas e a coragem. A tua máquina de costura
e todas aquelas noites de trabalho. As nossas viagens finalmente:
– sob a neve. Sob a parda coroa.

Tudo passou com tal rapidez. Dois olhos que olhavam fixos. Palavras
que não compreendia, que tu repetias uma e outra vez.
E de súbito nada mais. Dormias.
E agora jazem aqui. Todos os dias, as noites de verão,
as uvas de Valladolid, o pôr-de-sol em Nemi
– sob a neve. Sob a parda coroa.

Velozmente como quando se apaga um interruptor
se esfumam atrás dos olhos as marcas de todas as imagens,
se apagam do quadro da vida. Ou não?
O teu vestido novo, o meu rosto e a nossa escada
e tudo o que levavas para casa. Desapareceu tudo
– sob a neve. Sob a parda coroa?

Meu amor, onde está agora a nossa alegria,
as mãos gentis, o sorriso jovem,
a coroa de luz do cabelo sobre o teu rosto, a tua coragem
e essa abundância de vida e da coragem?
– Sob a neve. Sob a parda coroa.

Companheira atrás da morte. Leva-me contigo.
Os dois juntos aí em baixo. Vejamos juntos o desconhecido.
Aqui tudo está deserto e o tempo escurece.
As palavras são tão escassas e ninguém as escuta já.
Minha amada, adormecida Eurídice
– Sob a neve. Sob a parda coroa.

Nattåpent, 1985


Versão minha - © Amadeu Baptista







Rolf Jacobsen (1907-1994). Nasceu em Oslo. Jornalista. Publicou o seu primeiro livro em 1933. Desde então, publicou onze livros de poesia. É um dos maiores poetas noruegueses do séc. XX. Grande renovador da linguagem poética, incorporou na poesia o que o desenvolvimento deu à vida moderna.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Rui Almeida



                                                  

                                                    UM POEMA DE RUI ALMEIDA





AVE MARIA DE SCHUBERT (LUCIANO PAVAROTTI)

Para o Amadeu Baptista, no seu 60.º Natal

Repara no anjo da anunciação
Pintado por Gregório Lopes, tem
Um jeito de soldado, ainda
Que o leve sorriso deixe perceber
Outros desígnios na missão
Para que foi enviado. Tem a voz
Forte e grave, está descalço. É
Um jovem tocado pela fragilidade
De quem obedece, mas
A solenidade com que fala
Deixa a mulher que o ouve
Perturbada, ainda que serena.
É num trejeito quase de fado
Que dá conta do humano fruto
Do ventre dela.
E que sabe ela agora das dores, do parto,
Da migração forçada, das incertezas
Todas? Que pode saber de um dia
Ter nos braços, morto, Esse de quem
Agora lhe fala o anjo?
E com que silêncio terá de se resguardar
Perante a incompreensão? Agora,
Escuta. Repara no anjo, na delicadeza
Com que se inclina, com que aponta
Para falar da força que desce. Ouve
As palavras pronunciadas no sobrevoo
De uma pomba em clarão. É terrível
O poder de uma saudação assim, de
Um sopro. Não temas, só na revolta há
Resposta certa ao inexplicável e só
Pela doçura se chega
Ao incomensurável da graça.


© Rui Almeida




terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal 2013



                          FICA O DESEJO PARA TODOS DE UM EXCELENTE NATAL

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Rita Taborda Duarte





                                        RITA TABORDA DUARTE, POETA CONVIDADA



O dicionário ao lado

Escrevo-te este poema, o dicionário ao lado. 
Consola saber que já não são, 
nunca foram,  etéreas  as palavras   nem efémeras.  
Ocupam este espaço vazio na realidade da mesa 
e têm peso  as palavras   têm chão.
Pegasse eu num feixe delas com estas mãos recurvas,
estas mãos unidas    os dedos tão  cheios de unhas
− não deixasse eu cair  nunca  no rosto do mundo  este 
punhado de letras    longas dobras    arestas finas...
e pudesse lançar-tas com tanto amor e violência 
que te doessem as palavras contra o peito…

Escrevi-te o meu poema,  dicionário ao lado,
silabar de laje e de granito na gravidade da mesa.
Mas nem ao de leve te raspou a pele
sopro fátuo e lasso   agilidade de sombra sob o sol.
Sequer vento  emaranhando o teu cabelo.

      (in colóquio-letras, nº  182 )



Só Cotão e Pó

Revolvi os cantos ao dicionário: só cotão e pó
as  palavras  largam sempre tanto lixo… 

procurava uma palavra que te desse…         
guardara-a,  para ti, quando viesses 
mas não sei já onde a pousei      talvez 
entre uma metáfora
morta    e um oximoro gasto, muito velho,  
dizendo qualquer coisa como esta :  «a palavra
que mais diz é aquela que  calamos 
no silêncio», ou outra coisa, até, mais banal ainda

Da metáfora, não encontrei nem sobras, 
devo tê-la perdido,  por aí, no discurso vulgar do dia a dia.
       
Acontece-me , acontece-me muito, esquecer-me de palavras  
ao fundo da carteira, 
desfeitas entre bilhetes de metro,   sob o peso dos dias,  
das chaves do carro.

Passo tanto tempo a perder palavras como o tempo  que  gasto em procurá-las 
Depois… o cansaço de as inventar  de novo, de as soletrar de novo,
tropeçando  em consoantes       nas vogais …

Tão difícil, voltar a dizer as palavras que perdemos. 
Mentindo-lhes sentidos novamente… 

Por isso percorria à pressa o dicionário, hoje 
Para procurar uma outra palavra que te desse,  
ainda antes que chegasses,   de manhã

A palavra que te queria dar, perdia-a
não há tempo agora de a reescrever assim à pressa…
manhã alta, já, deves estar mesmo aí, a aparecer

Revolvi o dicionário:  tanto pó na esquina das palavras. 
Sempre tudo em desalinho: nem uma sílaba consigo ter em seu lugar.
Trago a língua tão desarrumada, tanto desleixo, sempre tudo tão sem jeito
E tu, aí,  quase à beira de chegar 

Tirei uma mão cheia de palavras ao acaso
Concha, lago, ternura, um pedaço arrancado à bruta da palavra amor
Mas tu chegaste-me entretanto,  com um  perfeito ramo de frases feitas
fingiste até nem reparar na  confusão  e
deitámo-nos assim mesmo na minha palavra ainda     por dizer 
                                                                                             
 (inédito) 




Nódoa branca em meu vestido claro

Sempre este querer de violência tanta
   e esta crença de que o canto estale
                                               ACC

O meu desejo é esta palavra branca no meu vestido claro. 
Nem se nota, eu sei; o vestido é quase transparente  
e o desejo de te ter, uma leveza de sombra, só, a amanhecer  ainda.
Névoa ligeira, como um salpico ao de leve no tecido:
não chega para o manchar, mesmo se lhe dá a luz de frente.

Tens os barcos que atravessam a saudade   
o rio em frente amodorrado ao cais.
O Tejo é o único rio imóvel, que nunca passa
nunca nos passa: 
régua de azul  inteiro  no rebordo da tarde.

E tens a calçada tão branca e tão viva 
a estalar na retina; não te deixa ver  
deter  mais nada,  quanto mais esta palavra debotada 
embainhada no meu vestido claro 
É teu, o lugar do crime, eu nem estou, 
eu nunca estive lá, sou só esta vaga mancha grácil
engordurada e baça;  não seduz   não envergonha .  

Nem só de lágrimas vive o homem, sussurrei-te e escureceu 
e nem arrefecera ainda, eu até nem tinha nenhum frio.
Mas tu despiste o teu casaco de homem
e pousaste-mo nos ombros    abafando 
a transparência branda do meu vestido  nu
E, de olhos no rio que não passava,
apagaste, distraído, a minha nódoa clara da luz do sol. 

     (in colóquio-letras, nº 182)


© Rita Taborda Duarte


Rita Taborda Duarte, nasceu em Lisboa, em 1973. É professora adjunta convidada na Escola Superior de Comunicação Social. Faz crítica de poesia e ensaio em diversas publicações da especialidade (Relâmpago, Colóquio–Letras, etc.). Desde 2010 que é membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian, publicando com assiduidade no site Rol de Livros da mesma instituição (www.leitura.gulbenkian.pt).
 Em 1998, publicou o seu primeiro livro de poesia, Poética Breve, editado pela Black Sun Editores, a que se seguiram Na Estranha Casa de um Outro: Esboço de uma Biografia Poética (Asa, 2006) subsidiado pelo Ministério da Cultura, com uma bolsa de criação literária e Dos Sentidos das Coisas (Editorial Caminho, 2007), com co-autoria de André Barata. Está representada em diversas antologias literárias.
 Em 2003, vence o Prémio Branquinho da Fonseca, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo semanário Expresso, com o original A Verdadeira História de Alice e desde essa data tem publicado regularmente para crianças e jovens.
Além de vários livros publicados para crianças, tem publicados os seguintes títulos de poesia: Poética Breve, Black Sun Editores, 1998; Na Estranha Casa de Um Outro: Esboço de uma biografia poética, Lisboa, Asa, 2006; Experiências Descritivas: Dos sentidos das coisas/Círculos, Lisboa, Editorial Caminho, 2007  ( Co-autoria de André Barata); Papelada, Lisboa, Homem do Saco, 2013 ( plaquette de poema único)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Karin Boye



                                            POEMAS DE KARIN BOYE


PEDI UMA COISA

Pedi uma coisa
profunda sinceridade
– o que foi a morte de muitos – .
Mas pedi no entanto uma coisa mais,
uma que só se concede aos fortes:
o mutismo do coração.

Moln, 1922



A UM AMIGO

Com as asas estendidas voa a águia pelos largos espaços.
Onde ela desliza o ar rarefeito torna difícil a respiração.
No ar desolado das montanhas invernais está muito só.
O crepúsculo e o frio são o seu séquito –
a sua única alegria,
a alegria de se sentir a voar com asas poderosas.

Assim no alto voas nos mais vazios céus invernais,
valente como a águia graças a uma vontade de relâmpago.
Renunciaste à busca da felicidade, elegeste caminhos
escarpados, que a nós, os débeis, nos assustam.
Que desesperado caminhas,
caminhas com passos rápidos e ágeis como o vento.

O meu mundo parece-se ao teu, e no entanto não se lhe assemelha.
Rindo-se dança a minha estrela entre mistérios estelares.
Á tua alegria cinzenta e férrea, amo-a na mais profunda distância.
Deixa-me caminhar a teu lado
e penetrar com o olhar
no teu mundo invernal e a tua vontade de relâmpago.

Gömda land, 1924



O DESTRUIDOR

A mim guia-me um olhar de serpente, fria, cruel,
olha-me fixamente da mais distante distância obrigando-me a ir
    ao seu encontro
dirige os meus passos na mais próxima proximidade,
mantém-me prisioneira num medo esmagador,
aprisiona-me a vontade…

Quem deu à serpente a sua terrível beleza,
a atracão pelo abismo,
a doçura da morte?
Quem deu ao terror o seu fatídico deleite
que nos tenta como uma escura felicidade?

Talvez no outro lado, junto aos eternos mananciais,
lá onde cabem os véus,
encontre o destruidor sob outra figura.
És tu, espírito do mal, a sombra de Deus?
O nocturno irmão gémeo de Deus?

Härdarna, 1927



DESPEDIDA

Queria despertar-te para uma desnudez como a de uma
                                          noite de precoce primavera,
quando as estrelas se derramam
e a terra arde sob a neve que se derrete.
Queria ver-te cair uma só vez
nas trevas do caos criador,
queria ver os teus olhos como um espaço aberto de par em par,
dispostos a encher-se,
queria ver as tuas mãos como flores abertas,
vazias, novas, expectantes.

Vais-te e não te deste conta de nada disso.
Nunca cheguei até onde o teu ser jaz nu.
Vais-te e não levas nada de mim –
abandonas-me à derrota.

Lembro outra despedida:
arrojaram-nos do crisol como um só ser,
e ao separar-nos, já não sabíamos
o que era eu e o que eras tu…

Mas tu – como uma malga de cristal foste-te da minha mão,
tão acabado como uma coisa morta e tão alterado,
tão sem outras recordações como as impressões digitais,
que se lavam na água.

Queria despertar-te da amorfia de uma bruxuleante chama informe
que encontra no fim a sua forma viva, a sua própria…
Derrota, oh, derrota!

For trädets skull, 1935



NO FUNDO DA COISAS

Li no jornal que alguém tinha morrido, alguém a quem
                                               conhecia de nome.
Ela vivia, como eu, escrevia livros, como eu, envelheceu e agora
                                               está morta.
Imagina estares agora morto e ter deixado já tudo para trás,
angústia, medo e solidão, e a culpa implacável.

Mas há uma grande justiça escondida no fundo das coisas.
Todos temos uma graça a esperar – um dom que ninguém vai roubar.

De sju dödssynderna, 1941



OS SERENOS PASSOS QUE ME SEGUEM

Se escuto, ouço escarpar-se a vida
agora cada vez com maior rapidez.
Os serenos passos que me seguem –
morte, és tu.

Antes estavas muito longe –
eu queria-te demasiado.
Agora já não te desejo,
agora estás aí.

Morte querida, há algo na tua essência
que consola docemente:
como questionas se alguém se fez grande
ou desperdiçou toda a sua vida!

Morte amada, há na tua essência
algo que te deixa limpa e transparente:
aquilo que é igual nos maus e nos bons
tu pões a descoberto, e o desnudas.

Vem comigo e deixa que te dê a mão,
tranquiliza profunda e boamente.
Ao formoso fazes essencialmente grande,
fazes o feio pequeno.

É como se quisesses algo de mim.
Claro que queres uma dádiva:
uma estranha chavinha –
a palavrinha sim.

Sim, sim, eu queria!
Sim, sim, eu quero!
A teus pés deposito a minha devoção –
assim cresce a vida.

De sju dödssynderna, 1941



AS ÁRVORES

Vivas como nós
e distantes, tão afastadas
que a nossa palavra «compreender»
devém fumo vão e vento.
Profundamente inacessíveis
a pensamentos e sentidos,
ainda que a vossa casca se sinta rugosamente
agradável no nosso rosto.

Sem olhos resplandeceis
num sonho visual e floral.
Por meio de que instrumentos
conheceis o vosso esplendor?
Graças a que secreta
sabedoria criadora
sois parte do poder
dos sentidos e os aromas?

Recostados contra o tronco
passamos despercebidos,
não nos é permitido entrar
no vosso mundo interior.
Ou será que nos alcança, cautelosa,
uma porção da nossa essência
desconhecida para nós
e digna de ser temida?


Ainda que nascidos sem dúvida
dos mesmos antepassados,
não vemos nem um rebate
do nosso instante comum.
Demasiadas aventuras
nos separaram depois,
demasiado impossível de conhecer
é o nosso simples chão.

Talvez no espere no entanto
um encontro futuro
nesse caminho em que a vida
torna a ser húmus.
Outra mão estendida
entre famílias separadas.
E damos graças à morte
por esta afinidade.

A matéria, sempre emprestada,
devolvemo-la.
Fundia-a no vosso molde!
Tomai e dai!
Troquemo-la entre nós
como dons amistosos,
profundas, formosas, desconhecidas
vidas fraternas.

De sju dödssynderna, 1941



Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 
 

 
Karin Boye (1900-1941). Nasceu em Gotemburgo. Licenciada em Letras. Foi professora. Membro da revista Spektrum. Colaborou no jornal Arbelet. Poeta e prosadora. A sua vigorosa personalidade marcou profundamente a vida literária sueca dos anos 30 do século passado.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Bo Carpelan



                                             POEMAS DE BO CARPELAN



PEQUENO POEMA

O cata-vento gira ao vento,
o seu peso é o do vento.
Agora pára.
O silêncio devém pedra.
Cai através de ti
a tal velocidade, que acordas
aterrorizado, uma noite de verão.

Landskapets forvandlingar, 1957



JUNTO Á MESA A TUA FIGURA

Junto à mesa a tua figura,
sobre a tua mão a sombra da cabeça do menino, uma fruta,
o teu olhar fixo, através da janela, nos movimentos das árvores,
o movimento reflectido na faca que corta o pão, o uso
e a claridade das coisas.

Den svala dagen, 1960



PASSEIO OUTONAL

Um homem caminha pelo bosque
num dia de luz irisada.
Encontra muito pouca gente,
detém-se, contempla o céu outonal.
Dirige-se ao cemitério
e não o segue ninguém.

Den svala dagen, 1960



A árvore,
a luz ramificada.

73 dikter, 1966



Árvores invernais,
frágeis, o seu sossego
vi-o, não o vi
cedo.

73 dikter, 1966



Quando o verão tinha descarregado a sua chuva como folhas
e também as folhas tinham caído, tinha chegado Setembro,
vi deslizar um pássaro sobre a minha cabeça,
uma sombra de mim que vivia na terra,
presságio de Outubro, sem palavras, mas a mesma canção.

73 dikter, 1966



OUTONO

O outuno é a minha estação.
Os dias transparentes, os cinzentos crepusculares,
os caminhos inundados de água,
a suave névoa.
Não exijas nada, não prometas demasiado.
Ainda assim: há um cheiro a cadáver nas folhas que ardem,
podridão no feno,
gelo no barro,
um vazio nos grandes ventos
como mortalhas e velas.
Tudo morto, tudo se apagando, tudo quieto:
esta sensação não chegou demasiado cedo,
como uma sombra,
uma pedra, polida, depositada sobre os dias de junho?

Källan, 1973


O MANANCIAL

À distância, cruzando os campos
ouve-se, débil mas nitidamente
o manancial de primavera.
Escuto,
aproximo-me.

Pelos bosques estivais,
perfumados de sol e frescor,
soam os ecos da água ridentes.
Sigo o meu caminho,
procurando.

Já se vislumbra
por entre as copas das árvores outonais
o vale onde sussurra
o escondido arroio.
Tenho que descansar.

Como se houvesse neve no ar,
como se os passos fossem infinitos.
Escuto, estou perto.
A voz do manancial, mais débil,
continuadamente ali,
invisível.

Källan, 1973



A luz cai sobre as asas do pássaro
e o pássaro estende-as, afasta-se deslizando
e cria o espaço.

I de mörka rummen, i de ljusa, 1976



NO TERRAÇO DE AGOSTO

A mesa começa a ficar velha, sustem-se instável
sobre as torpes patas. As dobradiças cedem,
as superfícies envernizadas gretam, a mesa
range quando alguém lhe bate.
Também a tarde é velha, cheira a folhas velhas,
amieiros, matas de framboesas silvestres. É difícil
encontrar no verdor que começa a petrificar-se
uma flor, ainda que debilmente luminosa,
que aromatize, esquecida como o quarto de verão de uma estirpe morta –
um aroma a roupa velha, noz moscada ou serrim
sob o embrulho corroído pela humidade nas casas abandonadas.
Algo imóvel, cego penetra em mim através do pensamento:
já sereno com o entardecer de Agosto,
já inquieto ataque de imagens como se um estranho
me obrigasse a folhear rapidamente um álbum de fotografias
com grupos de pessoas – rara uma paisagem,
com uma vegetação selvagem como esta paisagem de agora,
os juncos nunca mais altos, a água coberta de pólen
e na mesa a lâmpada com  seu círculo de luz
sobre o copo, a revista, o caderno. Tudo velho.
De onde estou sentado vejo um caminho coberto,
anos que crescem de novo, silêncio que cresce de novo.
Alguém diz no rádio: «A URSS e os EUA não são estados
no seu significado corrente, são blocos de poder
que consideram óbvio possuir o mundo.»
E um pouco mais tarde: «A Finlândia não é um mau museu».
Anoitece rapidamente, desço um pouco o pavio,
permaneço sentado um instante e acostumo os olhos à noite.
Homens velhos agarram-se com força ao seu  bloco, por cansaço
e costume, e borboletas nocturnas atiram-se contra o velho
mapa tosco do ecrã da lâmpada.
Encontro-me num museu não demasiadamente mau.
Apago a chama. Faz-se escuro, depois cinza.
Alguém vem com a sua remada silenciosa, atraca
no cais de madeira apodrecida, entre os dois blocos
céu e terra. Um voz bem conhecida, querida:
«Vou-me deitar, não te demores muito,
vais ter frio.» Tomo uma toalha,
vou à praia, ajoelho no cais,
molho a cara. Calma, vento débil,
descanso que escuta


Dagen vänder, 1983



NÃO SABIA QUE PÁSSARO

Não sabia que pássaro
se encontrava nos matagais envoltos pela frescura da tarde –
o seu trinado assemelhava-se ao de um melro
mas com mais alento e anseio:
eu tenho muitas vozes, escuta,
fundidas em uma,
ascendente ao ascender o dia,
minguante ao pôr-se o sol,
faz-se uma com o bosque e a luz nocturna:
o espelho da baía, as ribeiras escuras
e uma calmaria feita para canções
que se fundem numa
nos matagais envoltos pela frescura da tarde.

Não soube que pássaro.

Dagen vänder, 1983


Vestida de branco como se tivesse querido caminhar invisível
entre os muros deslumbrantemente brancos – mas
o seu cabelo, a sua pele, os seus membros
resplandecentes, escuros.

Marginalia till grekisk och romersk diktning, 1984



Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 
 

 
 
Bo Carpelan (1926-2011). Nasceu em Helsínquia. Doutorado em Letras com uma tese sobre a obre de Gunnar Björling. Trabalhou na biblioteca de Helsínquia, de que foi sub-director. Crítico literário no jornal Hufvudtadsbladet. Poeta, dramaturgo e romancista. É o poeta mais representativo da geração dos anos 50, do séc. XX, na poesia finlandesa.