sábado, 31 de agosto de 2013

Seamus Heaney, 1939-2013



                                                     

I was four but I turned four hundred maybe
Encountering the ancient dampish feel
Of a clay floor. Maybe four thousand even.
Anyhow, there it was. Milk poured for cats
In a rank puddle-place, splash-darkened mould
Around the terra cotta water-crock
Ground of being. Body’s deep obedience
To all its shifting tenses. A half-door
Opening directly into starlight.
Out of that earth house I inherited
A stack of singular, cold memory-weights
To load me, hand and foot, in the scale of things.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Gunnar Björling



                                               POEMAS DE GUNNAR BJÖRLING


Desliza uma barca entre as folhas, alvorece em torno das águas
onde se demora a noite.
    Silêncio, como de golpes de remo não ouvidos. Desliza uma barca
águas acima.
    À sua volta estão os mil olhos: uma barca afasta-se
deslizando.

Korset och löflet, 1925



Eu sou frio, húmido, sentimental, como um ramo. E inteligente –
como uma mosca. O meu riso é a palhaçada do macaco, a minha seriedade a do
polícia. Tenho dentes de roedor e pata de cão perdigueiro, cérebro de
perca e coração de lúcio. O meu humor é o do populacho, o meu orgulho
o de um bandido no cadafalso.
  O belo ergueu-se da toca do leão.

Korset och löflet, 1925



Eu serei compreendido
com olhos, coração, cérebro –
compreender-me-ão com umbigo e unhas,
sairei da tua pele de couro de rastros
e esticarei a pele
como se para cordas de harpa.
Darei numa igreja o concerto
do eternamente novo.

Solgrönt, 1933



Quero viver na cidade como deve ser
com retrete, luz eléctrica, cozinha com gás
e ruas limpas
e jardins de pessoas ricas uma esquina sim e outra não
e palácios e cafés, riqueza exposta nos escaparates,
e por cinco marcos ou dois marcos um rectilíneo
esplendor.
Um mar de luz e diversas cores
e rostos, destinos
e a luz do céu – um estímulo de ideias
    e luta e amor recém guardado
para cada um
e para todos, todos!
ser como uma planta num prado primaveril
estar como uma árvore entre as árvores
ocupar um lugar como uma pedra entre as pedras
da construção,
saber que milhares de pessoas se amam e se alegram, têm preocupações
e os mesmos belos olhos riem lágrimas e ardem e
     se inundam, sonham, tropeçam, sucumbem,
mas irão para um reino de gloriosas façanhas
    com luminosa perspectiva.
– Rejubilo da existência das ruas das cidades, das suas fábricas
e a beleza está fora e dentro.
O céu e a água são iguais
e a noite não é tão escura sob os faróis que rodeiam a rua e a
    água.
Ao vazio chegam sons do baile dos amontoados, gritos, desespero,
    e a solidariedade com o multiplamente conhecido,
e solitário está o destino entre milhares de olhares que suportar,
    e lutar no pulular das gentes
é como estar sob a carregada abóbada do bosque
com a abóbada das estrelas escondida no coração.
O retumbar das cidades – tudo!
um igual e um irmão de todos
e a luta por mil até mil
e a luta contra todos
e por fim esses olhos, muitos olhos
conhecidos,
não conhecidos,
que levamos como uma tigela
que não se deve derramar.

Solgrönt, 1933


Eu não escrevo literatura, eu procuro o meu rosto e os meus dedos.
Cheguei como a sombra da alegria dos meus esforços,
cheguei como a ânsia pelo grande poema da vida
e eu levava o meu poema
como um dia de vida despedaçado,
como um dia de vida que flutuava em novas formas, rico e
    milagrosamente curado,
como um rumor de dias somados,
dos homens com quem vivo.

Fågel badar snart i vattnen, 1934



Limpa, limpa-te
tu, a tua palavra
limpa tu
silhueta, tu não a podes
explicar.

Sê o que és
sê essa música
sê tu, tu mesmo
como um concerto de palavras
sê tu, como alguém escondido
na mudez do mundo
um concerto
sonhado.

Dar jag vet att du, 1938



Neve e como num caminho do bosque
branco
no espaço um sussurro
e aqui
e faz uma hora
e correndo um cãozinho castanho claro
e como estrelas resplandecentes a luz de candeeiros resguardados
de súbito cresce só no espaço o sussurro do vento de tempestade
neve e como num caminho do bosque
branco.

Angelägenhet, 1940



Tu, chamo-te
a ti, luz nos dias cinzentos
em duras noites de inverno
chamo-te na ténue luz do verão
tu, chamo-te a ti
hoje
no tempo de infância dos anos
no verão da tarde
ainda,
tu, tu mais calado e próximo
tu, tu sussurras em volta de mim
ou silvas, gritas
és o rumor da noite
e o sentido do dia
tu, o sentido do meu próprio coração
tu, meu lar, minha casa
– a palavra de um homem
uma mão, uma voz
a luz de olho
como todos.

Ohjälpligheten, 1943


Silencioso verão entre as árvores
e na praia, sem estrelas
sem onda nem vento
e todas as coisas são
todas as coisas um instante
tudo o que foi, e será
e é –
um pássaro grita
uma luz passa pelas águas
a luz oculta de uma lua
o silêncio de uma canção
a sombra do contorno de uma ilha
– eu estou tão próximo da luz
como a luz das flores nos escuros territórios dos túmulos.

Ohjälpligheten, 1943



Virão tempos
o poder calca as nossas tumbas
o pensamento hoje dá remédio
ninguém sabe o pensamento amanhã
virão tempos
nós teremos desaparecido
sem eco nem resposta
mas é dia na terra
e foi
virão tempos
ninguém sabe o pensamento amanhã
a vida é eco e resposta
o silencio oferece o eco do verão
e a cria da andorinha marinha grita a sua resposta.

Ohjälpligheten, 1943


É hino
são palavras
sem palavras
são olhos e a mão
ar é e luz.

Luft är och ljus, 1946



Agora afastam-se todos os barcos deslizando
Agora afasta-se tudo vibrando
num vento sem vento
agora cai a calma sobre a baía e o mar e os golfos
agora está a morrer o sol de verão
e o branco velame dos iates
agora lateja a luz
jubilosa pela última vez no verão
agora – como nas brumas
luz de brumas
luz
da doçura do dia cinzento
apagamento não apagado
na tarde de setembro
luz
ressoante e audível, e
não exactamente
– não escutes, não a olhes
mas no entanto mais clara
soante e audível.

Ett blkyertsstreck, 1951



Estão a apagar-se as luzes e as pessoas saem em tropel
é já o crepúsculo, acabou o trabalho
o tropel estende-se pela praça
figuras negras
e caminho e sombras
vão-se apagando janela após janela
a névoa demora-se cinzenta nos telhados
é primavera e bonança
o crepúsculo
no entanto continuam a sair as sombras em tropel
e a luz estende-se por caminhos e campos.

Allt vill jag fatta i min hand,, 1974



As minhas palavras são tão simples, nascem da claridade
nascem da minha vida, do pensamento e da vontade nascem
do desespero de viver. As minhas palavras e a minha voz.

Allt vill jag fatta i min hand,, 1974



UM SÓ POEMA

Um só poema o meu livro
um só poema são todos os meus livros
um poema a minha vida
a minha vida, a tua e a de todos
um poema, e tudo é vida
tudo isso e é e foi
um poema
ao longo de anos e dias
cada época levanta-se e em todas as mãos
um poema – a tua vida
e o meu poema esta vida:
a tua vida, a minha vida
um poema – a minha vida, toda a vida.

Allt vill jag fatta i min hand,, 1974


Versão minha - © Amadeu Baptista


                  Gunnar Björling (1887-1960) Nasceu em Helsínquia. Licenciado em Letras.
                       É uma das grandes figuras do modernismo finlandês em língua sueca.

domingo, 25 de agosto de 2013

Ilias Kefàlas


                                                  DEZ HAI-KAIS DE ILIAS KEFÀLAS


DEZ HAI-KAIS

Conchas vazias.
Nelas os mortos
do rio tossem.


Jardim da manhã
e a serpente silva
entre os juncos.


Pequena cerejeira
quais são os teus segredos?
pergunta a chuva.


Quem entrou?
pergunta, hesitante
a lanterna.


Entrei no caos
da chuva de outono
exposto, só.


Tristeza sob a chuva.
Lamentos sob a neve.
Tormentos em toda a parte.


Eis o espargo:
tem nas suas garras
outras frescuras.


Cactos da planície
que escreveste ao vento
que ele vem em lágrimas?


O bem vazio:
o afogado sentado
na selha seca.


Arbustos obscuros.
Como desliza, o vento
nas raízes.

Versão minha - © Amadeu Baptista



                                                                                 Foto - © Amadeu Baptista


Ilias Kefàlas, nasceu em 1951, em Meligos, Trikala. Estudou ciências políticas na Universidade de Atenas, onde viveu de 1969 a 1992. Habita actualmente na sua região natal e é funcionário público. Exerce crítica literária em revistas da especialidade. Publicou 25 livros, 10 dos quais de poesia e 4 de prosa. Publicou, também, livros para a infância e uma antologia.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Henrique Manuel Bento Fialho escreve sobre 'Açougue'


Com o agradecimento devido, aqui transcrevo o que Henrique Manuel Bento Fialho escreveu no seu blog sobre o meu livro 'Açougue':

( ver link: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/ )


«Ando há anos para escrever sobre Açougue, provavelmente desde 2008. Data desse ano a primeira edição, na colecção de livros vencedores do Prémio de Poesia Espiral Maior. Reeditado pela &etc em Junho de 2012, numa versão acrescentada, Açougue é um dos meus livros de poesia preferidos. Não é apenas um dos livros de Amadeu Baptista (n. 1953) que mais aprecio - poeta sobre quem António Cabrita já disse o que havia a dizer ( ver link: http://raposasasul.blogspot.pt/2013/06/mon-ami-amadeus.html) -, é mesmo um dos meus livros de poesia preferidos, porque nele encontro uma capacidade expressiva que transcende o nevoeiro sobre o qual paira a constelação de lamentos da contemporaneidade. O maior defeito que encontro em muita da poesia portuguesa contemporânea é, precisamente, não correr riscos, não procurar ir além da constelação de lamentos que ilumina a cabeça dos poetas com mais ou menos jeito para dançar.

Açougue, título fortíssimo, sobretudo para um conjunto de poemas explicitamente autobiográficos, é uma síntese violenta do comércio das carnes a que a vida nos sujeita. Vejamos: são, neste preciso instante, uma hora e cinco minutos da manhã do dia 28 de Agosto de 2013; nos jornais portugueses as notícias dão conta de cada vez mais alunos a abandonarem o ensino, com as universidades numa competição desenfreada por futuros doutores; o desemprego e a precariedade crescem; a Cinemateca está em risco de fechar, cúmulo de uma tragédia cultural que, de Norte a Sul, vem descaracterizando mais o país do que a especulação imobiliária conseguiu fazer à paisagem; há vários fogos acesos, mas nenhum me aquece o suficiente para que afaste esta lúgubre constatação de que, perante a morte de Elmore Leonard e tantas outras notícias, quem podia ler Leonard, ou quiçá Amadeu Baptista, prefere perder tempo a discutir as entrevistas da Judite de Sousa.

Quando digo que vivo num país naufragado sem qualquer salvação não o digo da boca para fora, sinto-o cada vez mais inequivocamente. Sobretudo porque não vislumbro alternativa em quem teve oportunidade para acrescentar alguns milímetros à testa. O Facebook é só a face caricata destes tempos onde ninguém se importa de nivelar os seus dias pela mediocridade, um açougue de encontros e de aproximações onde nos vamos comercializando sem darmos conta disso. Gostamos tanto de um vídeo de jazz como de uma fotografia ridícula, de um bom poema como de uma péssima anedota, gostamos não necessariamente por gostarmos mas para mostrarmos a quem partilhou que vimos, estivemos ali, esperamos que também venha a gostar de nós. Imposturice. Que tem isto que ver com o livro? Suponho que tudo, porque este é um livro que nos confronta com os domínios latentes da vida.

«Logo no primeiro ano / estou só / e não me consigo manter de pé» (p. 9). Estes três primeiros versos do primeiro poema (Mil Novecentos e Cinquenta e Três – cada poema remete para um ano de vida do autor) fazem da solidão uma espécie de oráculo que perseguirá todos os outros poemas, mesmo quando neles se recordam momentos dignos de um afecto que não se deixa circunscrever pela condição existencial indicada no título do conjunto. Geralmente, perduram imagens violentas e intensas, separações, mortes, ausências, a pobreza, as privações, um frio que toma conta das mãos e passa para os versos, amarguras, «circunstâncias indeclaráveis». Mas, como referi, o sofrimento que aqui se escuta transcende a lamentação, adquire nos últimos poemas, torrenciais, uma raiva desmesurada, aquele excesso de que a poesia deve deixar-se contaminar para se libertar definitivamente de todos e quaisquer constrangimentos.

No último poema, já acossado pela morte, escreve o poeta: «Quer a morte que eu deixe de escrever, que o latido do poema / se não ouça, que eu rebente as têmporas por não o encontrar, consumido / pelo esquecimento a que me vejo destinado, neste silêncio iníquo / que a idiotia vigente força, este ultraje que o crapuloso impõe, sanciona, justifica» (p. 89). Ora bem, da solidão essencial à idiotia vigente pode o leitor apressado pressupor uma qualquer tendência para a presunção (não de inocência, mas porventura de superioridade face aos demais). Se assim for, resta-me dizer que discordo. Entre a solidão essencial, comprovada pelas circunstâncias, e a idiotia vigente, pelas circunstâncias comprovada, existe apenas um profundo desencanto. Dói como se estivéssemos a ser cortados às postas. E na realidade estamos, por dentro. E essas postas damos para troca e comércio, num mundo que a tal nos obriga e exige. Porque o cenário é de sobrevivência, sobrevivência num ambiente de pocilga que dói ainda mais por sabermos não ter que ser assim.»
Henrique Manuel Bento Fialho

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Paul la Cour


                                               

                                                           POEMAS DE PAUL LA COUR


A ÁGUA DEBAIXO DA ERVA

Os velhos da comarca dizem que debaixo da terra magra
corre nas profundidades um enorme lençol de água.

Acontece que a podem ouvir sussurrar, quando a noite é silenciosa.
Dizem que soa longínqua como uma primavera no interior da terra.

Estão nas suas camas a escutar a pulsação, que vive
nos quartos debaixo da erva na terra que reverdece.

Talvez exista um sorriso, uma manancial secreto,
uma veia alegre de água viva enterrada em todas as coisas.

E quando das tábuas do chão da barraca escutam
                                                           a canção da veia de água,
a vida parece-lhes uma fábula e o dia menos duro.

Imaginam que vivem e se encontram num abraço escuro,
onde tudo se fecha em volta de um sonho, e ninguém tem nem idade
                                                           nem nome.

Levende vande, 1946



ENTRE A CASCA E O ALBURNO

Não digo à brisa
o que não sei,
não se o digo ao vento,
nem aos espíritos do ar e da luz.
Não os deixo ver ao meu filho,
lá onde duvidando espera
escondido entre a casca e o alburno
à espera do seu momento de perfeição.
Peço-lhes: fechai os olhos,
não o desperteis demasiado depressa,
deixai-lhe viver a sua mudez
antes que cresça e se faça palavras.
Se abris a minha vida,
se apagais a lâmpada do nascimento,
não adormece em vós,
desvanece-se no meu sangue.

Mellam bark og ved, 1950



AGORA VOU

Agora entro na pedra,
logo serei montanha e frio,
se não posso abrir a minha profundidade,
terei que ser fechadura.
Algum dia as montanhas explodirão,
algum dia as fechaduras rebentarão,
a pedra levantará o seu olho sonolento
e estranhamente rebentará em canção.
Se puder atravessar a rocha,
esquecer a minha inquietude na escuridão,
esperar o final da minha vida de pedra,

então saltará a minha fechadura,
então regressarei transformado
caído nu na erva,
então virei sem nome,
então a minha mão tornar-se-á asa,
então serei palavras mudas,
calma silêncio flutuante, inocência,
rios de inconsciência,
então terá acabado a minha vida de rio.


Mellam bark og ved, 1950



A ÁRVORE

O esquilo, os pássaros abandonaram a minha copa
quando se derrubou a rocha em que se fixava,
agora as cordas de harpa das minhas raízes suspendem-se
silenciosas no ar, apenas uma última fenda
na pedra abraça uma raiz.
Os escaravelhos no entanto continuam a trepar pelo meu tronco,
uma ténue e derradeira chama de vida,
e oculto-me atrás da minha própria folhagem.
Ofereço-o à última tormenta
oculto eu mesmo atrás da luz de longínquos horizontes
humilde e quieto, apenas existente.
Oh tu, que unes os vivos e os mortos
a este grande e estranho jogo,
faça-se a tua vontade.
Que o ar refaça o seu caminho atrás de mim,
mas antes de cair deixa-me cantar,
concede-me alguma vez na eternidade da canção o dom
de ser fiel, de viver próximo das vossas vidas
sujeito uma última vez. Completamente livre…

Mellam bark og ved, 1950




UMBRAL

Os meus quatro elementos: os pássaros, as árvores, a erva e o mar. O que oscila suavemente, a sempre fiel rocha verde da pureza, a eternidade do retorno, e o que repousa na transformação fluente. Coloquei o seu trevo sobre as nossas feridas. Poderias curá-las se quisesses. A vossa melancolia é mesquinha: nem sequer se atreve a viver em plenitude. Se vos atirais à fogueira, onde se queimou o afecto humano de Deus, eu não serei vosso cantor. Atrevo-me a rir, atrevo-me a esperar, atrevo-me a cantar o que me foi oculto. Juntai as vossas mãos. Estaremos onde se sarem os mares. O futuro brinca no nosso umbral.

Mellam bark og ved, 1950



ESPERA

Sem olhos, sem olhos,
vejo com as mãos, com a boca,
os pássaros de todos os meus olhos,
pu-los de sentinela:
oh, ver até o que a vida transborda,
confessar uma vez a sua estranha profundidade;
antes que o olho se feche ver uma única Coisa
tão intensamente implacável e pura
que saiba reunir –
e que passe o umbral.
Limpo um espelho que não se lembra de mim,
endureço à luz, afio-me na pedra.
Não encontro aquele que me espera
porque já não está em sua casa.

Efterladte digte, 1957



NOITES NO PELEPONESO

I
Aqui entrei seguindo o caminho,
ouvi o roçar dos gafanhotos,
os ligeiros pés do rio
pisando cinzentas pedras calcárias.
A luz apagou-se sobre as
diligências dos caracóis,
os fogos das abelhas,
as destroçadas colmeias
das vastas e cálidas montanhas.
Vi o falcão vespertino
no ar escuro como a resina,
voando sobre as amoras da época,
uma esfomeada espada de frio.
Derruba-me quando quiseres
enquanto ainda sou sede,
enquanto amo e sou sede,
enquanto uma mão é uma folha,
e uma folha é ainda felicidade,
colhe-me como um pássaro do bosque,
abraça-me sem frio.
Não são malvados
os velozes braços juvenis da morte,
amarga é apenas a branda
língua de areia do vazio.

II
Os pássaros emudecem, e as folhas
cujas espinhosas línguas nunca
cantaram. Os escaravelhos, as abelhas,
as toupeiras dormem
nas suas galerias. Não há brisa
que toque com dedos transparentes
nas cordas de harpa dos juncos,
não há veia que se abra, mane,
na noite, não há sons uivantes
de águas que saltam
livremente. Há muito que o rio
abandonou as suas pedras.
Alguns falcões voam ao redor
do perfumado peito da montanha
na noite. Solitário e estranho. Só.
Logo acabará a vida.
Que queres, que é o que queres de mim aqui
no reino da perfeição,
frio mar, impaciente resplandecente grito jovem de
primavera, da santa primavera
nos meus afiados
ramos invernais?


 Efterladte digte, 1957



Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 
 
 


Paul la Cour. Nasceu em Rislev, em 1902, no seio de uma influente família camponesa de origens francesas. Viveu parte dos anos 20 em França. No seu regresso à Dinamarca iniciou uma importante tarefa de crítico literário e de arte. Introduziu na Dinamarca inúmeros autores franceses. Traduziu Garcia Lorca. Faleceu em 1956.


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Piolho - revista de poesia

Está em distribuição o nº. 11 da revista Piolho.

A seguir à imagem deixo aqui o poema com que colaborei nesta edição.






PORTUGAL, 2013

O velho está a apanhar sol na barriga
e tem uma mão perdida na coxa direita.
De vez em quando, suspira, como se pudesse
dar conta de si nesse imprevisto momento,
ou pudéssemos nós dar conta dele,
que o observamos sem que seja possível
discernir o que estamos a ver.

Olho-lhe os pés: calça umas alpercatas
encardidas, a que faltam os cordões,
e tem uma meia diferente em cada pé:
uma é berrante, vermelha aos quadrados
vermelhos, e outra cinzenta, com uns feitios
pretos que lembram grandes sinos. Baba-se,

e sempre que se baba sorri, não se sabe se alheado,
se cúmplice de algum deus que ali o tenha posto,
calado como um utensílio a quem ninguém dá
uso há muito tempo. A baba está a escorrer-lhe
pelo queixo e invade-lhe a camisa numa pasta

esbranquiçada que, mais do que o sujar,
o patenteia a quem passa, embora os que passam
vão todos ocupados com a pressa
de nada quererem ver de quanto existe
nesta terra de erro e aversão contínua.

Agora movimentou os lábios,
como se dissesse em surdina qualquer coisa,
não sei se uma prece, se um ralho,
por algum mosquito que o tenha picado,
ou uma sombra que lhe tocasse a cabeça.

A tarde há-de passar e o chão gelar
e o velho irá permanecer ali,
sem mais remédio do que eu o observar
como alguém que de nada já se fia
por estar tudo calcinado à nossa volta
e não haver caminho para nenhum lugar.

A escuridão caiu e o velho nela
é alguém de cócoras que de uma cadeira
intensifica o nosso olhar a fim de que se possa
saber que víbora há-de, mais dia menos dia,
atingir-nos no esforço incomparável de durarmos.

Oh, está a babar-se, de novo, o velho absorto.
A aflição é já não haver aflição, mas tão-só
um energúmeno que não saberá de mais vitórias,
já nem vivo, nem morto, na cadeira de rodas.


in: Piolho, nº. 11, Porto, Agosto de 2013

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Georg Johannesen



POEMAS DE GEORG JOHANNESEN

PROPOSTA DE EXPERIÊNCIA

Quando tu que abres o meu coração
como um rogo
não encontrares mais do que respostas
é culpa minha

Quando tu que abres o meu coração
com uma faca
não encontrares mais nada que sangue
é culpa da faca

Dikt 1959. 1959



OS MAUS TEMPOS
(Uma conversa (segundo Brecht)

Tu:
Nos maus tempos
só falam os inteligentes
Dizem: aqui podem
salvar-se uns poucos

Nos maus tempos
só cantam os tontos
Cantam assim: É formoso
que a erva seja verde

Eu não canto
Eu não falo
Os sábios calam
nos maus tempos

Eu:
Nos maus tempos
eu não sou sábio
Canto e falo
dos maus tempos

Dikt 1959. 1959



GERAÇÃO

I
Nascido quando o desemprego estava nos 33 por cento
atiro-me a todos os trabalhos
com dois terços de força, para não parecer
que nasci como um privilegiado
com uma colher de ouro na mão

II
Antes que Hitler tivesse assassinado cem judeus
já sabia eu contar até cinquenta e sessenta
Com maior rapidez que Franco a conquistar Madrid
conquistei a arte da leitura. (Tínhamos
aulas sobre Nero e os cristãos no dia
em que Lorca foi fuzilado, junto com
cinco mil culpados e inocentes
Apesar disso continuamos a estudar)

Dois anos depois vi três cadáveres autênticos:
uma velha e duas crianças vestidos de verde
numa casa sem paredes, no meio de fumo sem fogo
Mas os pirómanos de então chamavam-se a si mesmos bombeiros
a guerra chamou-se então guerra

Aprendi a ler jornais
Contei até seis milhões
e até cem mil e até zero

Assim que chegou a paz, encontrei um revólver
saquei-o na aula de história, expulsaram-me
da escola, e não voltei nunca mais
Apaixonei-me pela primeira vez
Foi pouco depois de Hiroshima e
trauteávamos uma melodia americana
para sublinhar a nossa confiança

III
A minha primeira foda
teve lugar durante a guerra da Coreia
Amava-a
Ela amava-me
e a nossa cama foram jornais:

Desde que não houvesse guerra.
Desde que não houvesse paz
com desarmamento e depressão
prometíamo-nos mutuamente

Queríamos dar-nos baixa do mundo
mas não conseguimos todos os formilários

IV
Não me recordo
de nada inolvidável.
Com antecipações e pagamentos diferidos
vou conquistando os meus anos

Logo terei a mesma idade
de Jesus quando morreu
e peço à casualidade
que me livre da cruz colectiva

Dikt 1959. 1959


MIDAS UM VELHO POETA

I
Famoso pela minha pena
pela minha juventude sábia
a pedra e água apodrecida
afasto-me agora coxeando


II
Lembro tudo o que quero esquecer:
Os escuros olhos de alguém
Sorrisos que se apagaram
Esfomeados que voltaram a casa
Sangue repentino
Irmãs que morreram quando
pariram filhos sem pai
Irmãos que se afogaram no poço
porque não lhes larguei a mão

Vejo tudo o que esqueci:
Vejo que digo adeus
a uma mulher vestida de negro
a outra mulher que se volta de costas, e a
uma terceira que me ensina
a parte detrás de uma pequena imagem

Sei tudo o que esqueci
mas não sei a quem
roubei a minha outra vida
a vida posterior ao meu primeiro suicídio.

III
Famoso pela minha morte
que me permitiu sobreviver
aos parentes das minhas vítimas
famoso por aquela ceia
em que me comi a mim mesmo
famoso por aquela ceia
em que o sangue se fez vinho

entrei agora no deserto para
tocar a campainha do leproso

daí que os meus gritos:
Não venhais aqui
Não vos aproximeis
Não me escuteis

atraem os pássaros
atraem os esquilos
atraem as crianças
atraem todas as boas pessoas
até onde estou a tocar

famoso pelas minhas
melancólicas melodias
famoso pelos meus
gritos de aviso

famoso por um eco
de um tambor de crânio
que imita um
palpitante coração humano

famoso e solitário
porque os meus lábios
sabem a ouro

porque as minhas palavras são
incuravelmente belas

Dikt 1959. 1959



SEMANA PEDAGÓGICA

Segunda-feira (saudação do bobo, segundo Confúcio)

Esqueci as minhas penas
Recordo que ninguém pode voar
Eu sou bom se tu és bom

Eu sou forte se tu és débil
Não corras, não pares, não fales
não te cales, tudo é demasiado perigoso

O meu cajado escreveu, o meu pé apagou
que ninguém pode agarrar a luz
e ninguém pode livrar-se da sombra


Terça-feira (segundo Safo)

Os de Lesbos dormem
A lua pôs-se
As Plêiades desapareceram

Logo terá passado a noite
A vida passa depressa
Estou na cama só

Foi um disparate pensar
que poderia tocar o céu
com as duas mãos


Quarta-feira (segundo Palladas)

Um pagão em Alexandria
pensa sobre a vida enquanto a multidão cristã
aniquila a velha cultura:

  É certo que nós, os gregos, realmente morremos
e só parecemos vivos depois da morte
porque cremos que os sonhos são vida? Ou:

somo nós quem vive enquanto a vida é assassinada?
O grego que escreveu isto viu
queimar a maior biblioteca da antiguidade.


Quinta-feira (segundo Blake)

Qual é o preço da experiência?
Compram-na os homens por uma canção?
Ou a sabedoria por uma dança na rua?

Não, compra-se com tudo o que tem um homem:
Casa, lar e família
A sabedoria vende-se no mercado deserto

a que nunca vão os clientes
e no pedregoso campo em que o camponês
ara em vão em busca de pão


Sexta-feira (segundo Brecht)

Nem sequer o Dilúvio durou eternamente
No final as águas negras retiraram-se
Na realidade, poucas coisas duram tanto tempo

A árvore explica por que não deu fruto
O poeta explica por que escreveu maus poemas
O general explica por que perdeu a guerra

Quadros pintados em telas podres
Diários de expedições, confiados ao esquecimento
Arrojada conduta de quem ninguém se deu conta.


Sábado (segundo Brecht)

Deve-se usar o vaso rachado como urinol?
Deve-se interpretar a tragédia ridícula como farsa?
Deve-se pôr a amante velha a lavar os pratos?

Abatidos sejam os que abandonam as casas em ruínas
Abatidos sejam os que fecham a porta a amigos perdedores
Abatidos sejam os que são capazes de esquecer um projecto irrealizável


A casa foi construída com os materiais disponíveis
A rebelião levou-se a cabo com os rebeldes disponíveis
O quadro pintou-se com as cores disponíveis.


Domingo (segundo Brecht)

O salgueiro prateado: uma beleza local
Hoje: uma velha bruxa
O lago: um prato de água de esfregar, não lhe toqueis

Fúcsias e dentes-de-leão: baratos e berrantes
Por quê? À noite em sonhos vi dedos
que me apontavam como a um leproso

Estavam gastos e quebrados
Não sabeis nada! gritei
com consciência de culpa

Ars Moriendi eller de syu dødsmåter, 1965




LI PO

«Mas o meu poema dura eternamente
eu sei-o, Li Po!»

O sol dura mais do que um olhar
A árvore dura mais do que o meu corpo
A roupa dura menos do que a pele
Os sapatos duram menos do que o meu caminho

O relógio dura mais do que o meu pulso
O poema dura mais do que a minha boca:
O calendário é o único livro
que teria gostado de escrever.

Nye dikt, 1966


Versão minha - © Amadeu Baptista



Georg Johannesen. Nasceu em Bergen, em 1931. Licenciado em História da Literatura. Professor Universitário. Estreou-se em 1957, com o romance Høst i mars. Além de poesia, escreveu também teatro e preparou diversas antologias poéticas. Traduziu Eurípedes e Brecht. Faleceu em 2005.