quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Piolho - revista de poesia

Está em distribuição o nº. 11 da revista Piolho.

A seguir à imagem deixo aqui o poema com que colaborei nesta edição.






PORTUGAL, 2013

O velho está a apanhar sol na barriga
e tem uma mão perdida na coxa direita.
De vez em quando, suspira, como se pudesse
dar conta de si nesse imprevisto momento,
ou pudéssemos nós dar conta dele,
que o observamos sem que seja possível
discernir o que estamos a ver.

Olho-lhe os pés: calça umas alpercatas
encardidas, a que faltam os cordões,
e tem uma meia diferente em cada pé:
uma é berrante, vermelha aos quadrados
vermelhos, e outra cinzenta, com uns feitios
pretos que lembram grandes sinos. Baba-se,

e sempre que se baba sorri, não se sabe se alheado,
se cúmplice de algum deus que ali o tenha posto,
calado como um utensílio a quem ninguém dá
uso há muito tempo. A baba está a escorrer-lhe
pelo queixo e invade-lhe a camisa numa pasta

esbranquiçada que, mais do que o sujar,
o patenteia a quem passa, embora os que passam
vão todos ocupados com a pressa
de nada quererem ver de quanto existe
nesta terra de erro e aversão contínua.

Agora movimentou os lábios,
como se dissesse em surdina qualquer coisa,
não sei se uma prece, se um ralho,
por algum mosquito que o tenha picado,
ou uma sombra que lhe tocasse a cabeça.

A tarde há-de passar e o chão gelar
e o velho irá permanecer ali,
sem mais remédio do que eu o observar
como alguém que de nada já se fia
por estar tudo calcinado à nossa volta
e não haver caminho para nenhum lugar.

A escuridão caiu e o velho nela
é alguém de cócoras que de uma cadeira
intensifica o nosso olhar a fim de que se possa
saber que víbora há-de, mais dia menos dia,
atingir-nos no esforço incomparável de durarmos.

Oh, está a babar-se, de novo, o velho absorto.
A aflição é já não haver aflição, mas tão-só
um energúmeno que não saberá de mais vitórias,
já nem vivo, nem morto, na cadeira de rodas.


in: Piolho, nº. 11, Porto, Agosto de 2013

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