Com o agradecimento devido, aqui transcrevo o que Henrique Manuel Bento Fialho escreveu no seu blog sobre o meu livro 'Açougue':
( ver link: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/ )
«Ando há anos para escrever sobre Açougue, provavelmente desde 2008. Data desse ano a primeira edição, na colecção de livros vencedores do Prémio de Poesia Espiral Maior. Reeditado pela &etc em Junho de 2012, numa versão acrescentada, Açougue é um dos meus livros de poesia preferidos. Não é apenas um dos livros de Amadeu Baptista (n. 1953) que mais aprecio - poeta sobre quem António Cabrita já disse o que havia a dizer ( ver link: http://raposasasul.blogspot.pt/2013/06/mon-ami-amadeus.html) -, é mesmo um dos meus livros de poesia preferidos, porque nele encontro uma capacidade expressiva que transcende o nevoeiro sobre o qual paira a constelação de lamentos da contemporaneidade. O maior defeito que encontro em muita da poesia portuguesa contemporânea é, precisamente, não correr riscos, não procurar ir além da constelação de lamentos que ilumina a cabeça dos poetas com mais ou menos jeito para dançar.
Açougue, título fortíssimo, sobretudo para um conjunto de poemas explicitamente autobiográficos, é uma síntese violenta do comércio das carnes a que a vida nos sujeita. Vejamos: são, neste preciso instante, uma hora e cinco minutos da manhã do dia 28 de Agosto de 2013; nos jornais portugueses as notícias dão conta de cada vez mais alunos a abandonarem o ensino, com as universidades numa competição desenfreada por futuros doutores; o desemprego e a precariedade crescem; a Cinemateca está em risco de fechar, cúmulo de uma tragédia cultural que, de Norte a Sul, vem descaracterizando mais o país do que a especulação imobiliária conseguiu fazer à paisagem; há vários fogos acesos, mas nenhum me aquece o suficiente para que afaste esta lúgubre constatação de que, perante a morte de Elmore Leonard e tantas outras notícias, quem podia ler Leonard, ou quiçá Amadeu Baptista, prefere perder tempo a discutir as entrevistas da Judite de Sousa.
Quando digo que vivo num país naufragado sem qualquer salvação não o digo da boca para fora, sinto-o cada vez mais inequivocamente. Sobretudo porque não vislumbro alternativa em quem teve oportunidade para acrescentar alguns milímetros à testa. O Facebook é só a face caricata destes tempos onde ninguém se importa de nivelar os seus dias pela mediocridade, um açougue de encontros e de aproximações onde nos vamos comercializando sem darmos conta disso. Gostamos tanto de um vídeo de jazz como de uma fotografia ridícula, de um bom poema como de uma péssima anedota, gostamos não necessariamente por gostarmos mas para mostrarmos a quem partilhou que vimos, estivemos ali, esperamos que também venha a gostar de nós. Imposturice. Que tem isto que ver com o livro? Suponho que tudo, porque este é um livro que nos confronta com os domínios latentes da vida.
«Logo no primeiro ano / estou só / e não me consigo manter de pé» (p. 9). Estes três primeiros versos do primeiro poema (Mil Novecentos e Cinquenta e Três – cada poema remete para um ano de vida do autor) fazem da solidão uma espécie de oráculo que perseguirá todos os outros poemas, mesmo quando neles se recordam momentos dignos de um afecto que não se deixa circunscrever pela condição existencial indicada no título do conjunto. Geralmente, perduram imagens violentas e intensas, separações, mortes, ausências, a pobreza, as privações, um frio que toma conta das mãos e passa para os versos, amarguras, «circunstâncias indeclaráveis». Mas, como referi, o sofrimento que aqui se escuta transcende a lamentação, adquire nos últimos poemas, torrenciais, uma raiva desmesurada, aquele excesso de que a poesia deve deixar-se contaminar para se libertar definitivamente de todos e quaisquer constrangimentos.
No último poema, já acossado pela morte, escreve o poeta: «Quer a morte que eu deixe de escrever, que o latido do poema / se não ouça, que eu rebente as têmporas por não o encontrar, consumido / pelo esquecimento a que me vejo destinado, neste silêncio iníquo / que a idiotia vigente força, este ultraje que o crapuloso impõe, sanciona, justifica» (p. 89). Ora bem, da solidão essencial à idiotia vigente pode o leitor apressado pressupor uma qualquer tendência para a presunção (não de inocência, mas porventura de superioridade face aos demais). Se assim for, resta-me dizer que discordo. Entre a solidão essencial, comprovada pelas circunstâncias, e a idiotia vigente, pelas circunstâncias comprovada, existe apenas um profundo desencanto. Dói como se estivéssemos a ser cortados às postas. E na realidade estamos, por dentro. E essas postas damos para troca e comércio, num mundo que a tal nos obriga e exige. Porque o cenário é de sobrevivência, sobrevivência num ambiente de pocilga que dói ainda mais por sabermos não ter que ser assim.»
Açougue, título fortíssimo, sobretudo para um conjunto de poemas explicitamente autobiográficos, é uma síntese violenta do comércio das carnes a que a vida nos sujeita. Vejamos: são, neste preciso instante, uma hora e cinco minutos da manhã do dia 28 de Agosto de 2013; nos jornais portugueses as notícias dão conta de cada vez mais alunos a abandonarem o ensino, com as universidades numa competição desenfreada por futuros doutores; o desemprego e a precariedade crescem; a Cinemateca está em risco de fechar, cúmulo de uma tragédia cultural que, de Norte a Sul, vem descaracterizando mais o país do que a especulação imobiliária conseguiu fazer à paisagem; há vários fogos acesos, mas nenhum me aquece o suficiente para que afaste esta lúgubre constatação de que, perante a morte de Elmore Leonard e tantas outras notícias, quem podia ler Leonard, ou quiçá Amadeu Baptista, prefere perder tempo a discutir as entrevistas da Judite de Sousa.
Quando digo que vivo num país naufragado sem qualquer salvação não o digo da boca para fora, sinto-o cada vez mais inequivocamente. Sobretudo porque não vislumbro alternativa em quem teve oportunidade para acrescentar alguns milímetros à testa. O Facebook é só a face caricata destes tempos onde ninguém se importa de nivelar os seus dias pela mediocridade, um açougue de encontros e de aproximações onde nos vamos comercializando sem darmos conta disso. Gostamos tanto de um vídeo de jazz como de uma fotografia ridícula, de um bom poema como de uma péssima anedota, gostamos não necessariamente por gostarmos mas para mostrarmos a quem partilhou que vimos, estivemos ali, esperamos que também venha a gostar de nós. Imposturice. Que tem isto que ver com o livro? Suponho que tudo, porque este é um livro que nos confronta com os domínios latentes da vida.
«Logo no primeiro ano / estou só / e não me consigo manter de pé» (p. 9). Estes três primeiros versos do primeiro poema (Mil Novecentos e Cinquenta e Três – cada poema remete para um ano de vida do autor) fazem da solidão uma espécie de oráculo que perseguirá todos os outros poemas, mesmo quando neles se recordam momentos dignos de um afecto que não se deixa circunscrever pela condição existencial indicada no título do conjunto. Geralmente, perduram imagens violentas e intensas, separações, mortes, ausências, a pobreza, as privações, um frio que toma conta das mãos e passa para os versos, amarguras, «circunstâncias indeclaráveis». Mas, como referi, o sofrimento que aqui se escuta transcende a lamentação, adquire nos últimos poemas, torrenciais, uma raiva desmesurada, aquele excesso de que a poesia deve deixar-se contaminar para se libertar definitivamente de todos e quaisquer constrangimentos.
No último poema, já acossado pela morte, escreve o poeta: «Quer a morte que eu deixe de escrever, que o latido do poema / se não ouça, que eu rebente as têmporas por não o encontrar, consumido / pelo esquecimento a que me vejo destinado, neste silêncio iníquo / que a idiotia vigente força, este ultraje que o crapuloso impõe, sanciona, justifica» (p. 89). Ora bem, da solidão essencial à idiotia vigente pode o leitor apressado pressupor uma qualquer tendência para a presunção (não de inocência, mas porventura de superioridade face aos demais). Se assim for, resta-me dizer que discordo. Entre a solidão essencial, comprovada pelas circunstâncias, e a idiotia vigente, pelas circunstâncias comprovada, existe apenas um profundo desencanto. Dói como se estivéssemos a ser cortados às postas. E na realidade estamos, por dentro. E essas postas damos para troca e comércio, num mundo que a tal nos obriga e exige. Porque o cenário é de sobrevivência, sobrevivência num ambiente de pocilga que dói ainda mais por sabermos não ter que ser assim.»
Henrique Manuel Bento Fialho
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