segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Georg Johannesen



POEMAS DE GEORG JOHANNESEN

PROPOSTA DE EXPERIÊNCIA

Quando tu que abres o meu coração
como um rogo
não encontrares mais do que respostas
é culpa minha

Quando tu que abres o meu coração
com uma faca
não encontrares mais nada que sangue
é culpa da faca

Dikt 1959. 1959



OS MAUS TEMPOS
(Uma conversa (segundo Brecht)

Tu:
Nos maus tempos
só falam os inteligentes
Dizem: aqui podem
salvar-se uns poucos

Nos maus tempos
só cantam os tontos
Cantam assim: É formoso
que a erva seja verde

Eu não canto
Eu não falo
Os sábios calam
nos maus tempos

Eu:
Nos maus tempos
eu não sou sábio
Canto e falo
dos maus tempos

Dikt 1959. 1959



GERAÇÃO

I
Nascido quando o desemprego estava nos 33 por cento
atiro-me a todos os trabalhos
com dois terços de força, para não parecer
que nasci como um privilegiado
com uma colher de ouro na mão

II
Antes que Hitler tivesse assassinado cem judeus
já sabia eu contar até cinquenta e sessenta
Com maior rapidez que Franco a conquistar Madrid
conquistei a arte da leitura. (Tínhamos
aulas sobre Nero e os cristãos no dia
em que Lorca foi fuzilado, junto com
cinco mil culpados e inocentes
Apesar disso continuamos a estudar)

Dois anos depois vi três cadáveres autênticos:
uma velha e duas crianças vestidos de verde
numa casa sem paredes, no meio de fumo sem fogo
Mas os pirómanos de então chamavam-se a si mesmos bombeiros
a guerra chamou-se então guerra

Aprendi a ler jornais
Contei até seis milhões
e até cem mil e até zero

Assim que chegou a paz, encontrei um revólver
saquei-o na aula de história, expulsaram-me
da escola, e não voltei nunca mais
Apaixonei-me pela primeira vez
Foi pouco depois de Hiroshima e
trauteávamos uma melodia americana
para sublinhar a nossa confiança

III
A minha primeira foda
teve lugar durante a guerra da Coreia
Amava-a
Ela amava-me
e a nossa cama foram jornais:

Desde que não houvesse guerra.
Desde que não houvesse paz
com desarmamento e depressão
prometíamo-nos mutuamente

Queríamos dar-nos baixa do mundo
mas não conseguimos todos os formilários

IV
Não me recordo
de nada inolvidável.
Com antecipações e pagamentos diferidos
vou conquistando os meus anos

Logo terei a mesma idade
de Jesus quando morreu
e peço à casualidade
que me livre da cruz colectiva

Dikt 1959. 1959


MIDAS UM VELHO POETA

I
Famoso pela minha pena
pela minha juventude sábia
a pedra e água apodrecida
afasto-me agora coxeando


II
Lembro tudo o que quero esquecer:
Os escuros olhos de alguém
Sorrisos que se apagaram
Esfomeados que voltaram a casa
Sangue repentino
Irmãs que morreram quando
pariram filhos sem pai
Irmãos que se afogaram no poço
porque não lhes larguei a mão

Vejo tudo o que esqueci:
Vejo que digo adeus
a uma mulher vestida de negro
a outra mulher que se volta de costas, e a
uma terceira que me ensina
a parte detrás de uma pequena imagem

Sei tudo o que esqueci
mas não sei a quem
roubei a minha outra vida
a vida posterior ao meu primeiro suicídio.

III
Famoso pela minha morte
que me permitiu sobreviver
aos parentes das minhas vítimas
famoso por aquela ceia
em que me comi a mim mesmo
famoso por aquela ceia
em que o sangue se fez vinho

entrei agora no deserto para
tocar a campainha do leproso

daí que os meus gritos:
Não venhais aqui
Não vos aproximeis
Não me escuteis

atraem os pássaros
atraem os esquilos
atraem as crianças
atraem todas as boas pessoas
até onde estou a tocar

famoso pelas minhas
melancólicas melodias
famoso pelos meus
gritos de aviso

famoso por um eco
de um tambor de crânio
que imita um
palpitante coração humano

famoso e solitário
porque os meus lábios
sabem a ouro

porque as minhas palavras são
incuravelmente belas

Dikt 1959. 1959



SEMANA PEDAGÓGICA

Segunda-feira (saudação do bobo, segundo Confúcio)

Esqueci as minhas penas
Recordo que ninguém pode voar
Eu sou bom se tu és bom

Eu sou forte se tu és débil
Não corras, não pares, não fales
não te cales, tudo é demasiado perigoso

O meu cajado escreveu, o meu pé apagou
que ninguém pode agarrar a luz
e ninguém pode livrar-se da sombra


Terça-feira (segundo Safo)

Os de Lesbos dormem
A lua pôs-se
As Plêiades desapareceram

Logo terá passado a noite
A vida passa depressa
Estou na cama só

Foi um disparate pensar
que poderia tocar o céu
com as duas mãos


Quarta-feira (segundo Palladas)

Um pagão em Alexandria
pensa sobre a vida enquanto a multidão cristã
aniquila a velha cultura:

  É certo que nós, os gregos, realmente morremos
e só parecemos vivos depois da morte
porque cremos que os sonhos são vida? Ou:

somo nós quem vive enquanto a vida é assassinada?
O grego que escreveu isto viu
queimar a maior biblioteca da antiguidade.


Quinta-feira (segundo Blake)

Qual é o preço da experiência?
Compram-na os homens por uma canção?
Ou a sabedoria por uma dança na rua?

Não, compra-se com tudo o que tem um homem:
Casa, lar e família
A sabedoria vende-se no mercado deserto

a que nunca vão os clientes
e no pedregoso campo em que o camponês
ara em vão em busca de pão


Sexta-feira (segundo Brecht)

Nem sequer o Dilúvio durou eternamente
No final as águas negras retiraram-se
Na realidade, poucas coisas duram tanto tempo

A árvore explica por que não deu fruto
O poeta explica por que escreveu maus poemas
O general explica por que perdeu a guerra

Quadros pintados em telas podres
Diários de expedições, confiados ao esquecimento
Arrojada conduta de quem ninguém se deu conta.


Sábado (segundo Brecht)

Deve-se usar o vaso rachado como urinol?
Deve-se interpretar a tragédia ridícula como farsa?
Deve-se pôr a amante velha a lavar os pratos?

Abatidos sejam os que abandonam as casas em ruínas
Abatidos sejam os que fecham a porta a amigos perdedores
Abatidos sejam os que são capazes de esquecer um projecto irrealizável


A casa foi construída com os materiais disponíveis
A rebelião levou-se a cabo com os rebeldes disponíveis
O quadro pintou-se com as cores disponíveis.


Domingo (segundo Brecht)

O salgueiro prateado: uma beleza local
Hoje: uma velha bruxa
O lago: um prato de água de esfregar, não lhe toqueis

Fúcsias e dentes-de-leão: baratos e berrantes
Por quê? À noite em sonhos vi dedos
que me apontavam como a um leproso

Estavam gastos e quebrados
Não sabeis nada! gritei
com consciência de culpa

Ars Moriendi eller de syu dødsmåter, 1965




LI PO

«Mas o meu poema dura eternamente
eu sei-o, Li Po!»

O sol dura mais do que um olhar
A árvore dura mais do que o meu corpo
A roupa dura menos do que a pele
Os sapatos duram menos do que o meu caminho

O relógio dura mais do que o meu pulso
O poema dura mais do que a minha boca:
O calendário é o único livro
que teria gostado de escrever.

Nye dikt, 1966


Versão minha - © Amadeu Baptista



Georg Johannesen. Nasceu em Bergen, em 1931. Licenciado em História da Literatura. Professor Universitário. Estreou-se em 1957, com o romance Høst i mars. Além de poesia, escreveu também teatro e preparou diversas antologias poéticas. Traduziu Eurípedes e Brecht. Faleceu em 2005.


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