terça-feira, 20 de agosto de 2013

Paul la Cour


                                               

                                                           POEMAS DE PAUL LA COUR


A ÁGUA DEBAIXO DA ERVA

Os velhos da comarca dizem que debaixo da terra magra
corre nas profundidades um enorme lençol de água.

Acontece que a podem ouvir sussurrar, quando a noite é silenciosa.
Dizem que soa longínqua como uma primavera no interior da terra.

Estão nas suas camas a escutar a pulsação, que vive
nos quartos debaixo da erva na terra que reverdece.

Talvez exista um sorriso, uma manancial secreto,
uma veia alegre de água viva enterrada em todas as coisas.

E quando das tábuas do chão da barraca escutam
                                                           a canção da veia de água,
a vida parece-lhes uma fábula e o dia menos duro.

Imaginam que vivem e se encontram num abraço escuro,
onde tudo se fecha em volta de um sonho, e ninguém tem nem idade
                                                           nem nome.

Levende vande, 1946



ENTRE A CASCA E O ALBURNO

Não digo à brisa
o que não sei,
não se o digo ao vento,
nem aos espíritos do ar e da luz.
Não os deixo ver ao meu filho,
lá onde duvidando espera
escondido entre a casca e o alburno
à espera do seu momento de perfeição.
Peço-lhes: fechai os olhos,
não o desperteis demasiado depressa,
deixai-lhe viver a sua mudez
antes que cresça e se faça palavras.
Se abris a minha vida,
se apagais a lâmpada do nascimento,
não adormece em vós,
desvanece-se no meu sangue.

Mellam bark og ved, 1950



AGORA VOU

Agora entro na pedra,
logo serei montanha e frio,
se não posso abrir a minha profundidade,
terei que ser fechadura.
Algum dia as montanhas explodirão,
algum dia as fechaduras rebentarão,
a pedra levantará o seu olho sonolento
e estranhamente rebentará em canção.
Se puder atravessar a rocha,
esquecer a minha inquietude na escuridão,
esperar o final da minha vida de pedra,

então saltará a minha fechadura,
então regressarei transformado
caído nu na erva,
então virei sem nome,
então a minha mão tornar-se-á asa,
então serei palavras mudas,
calma silêncio flutuante, inocência,
rios de inconsciência,
então terá acabado a minha vida de rio.


Mellam bark og ved, 1950



A ÁRVORE

O esquilo, os pássaros abandonaram a minha copa
quando se derrubou a rocha em que se fixava,
agora as cordas de harpa das minhas raízes suspendem-se
silenciosas no ar, apenas uma última fenda
na pedra abraça uma raiz.
Os escaravelhos no entanto continuam a trepar pelo meu tronco,
uma ténue e derradeira chama de vida,
e oculto-me atrás da minha própria folhagem.
Ofereço-o à última tormenta
oculto eu mesmo atrás da luz de longínquos horizontes
humilde e quieto, apenas existente.
Oh tu, que unes os vivos e os mortos
a este grande e estranho jogo,
faça-se a tua vontade.
Que o ar refaça o seu caminho atrás de mim,
mas antes de cair deixa-me cantar,
concede-me alguma vez na eternidade da canção o dom
de ser fiel, de viver próximo das vossas vidas
sujeito uma última vez. Completamente livre…

Mellam bark og ved, 1950




UMBRAL

Os meus quatro elementos: os pássaros, as árvores, a erva e o mar. O que oscila suavemente, a sempre fiel rocha verde da pureza, a eternidade do retorno, e o que repousa na transformação fluente. Coloquei o seu trevo sobre as nossas feridas. Poderias curá-las se quisesses. A vossa melancolia é mesquinha: nem sequer se atreve a viver em plenitude. Se vos atirais à fogueira, onde se queimou o afecto humano de Deus, eu não serei vosso cantor. Atrevo-me a rir, atrevo-me a esperar, atrevo-me a cantar o que me foi oculto. Juntai as vossas mãos. Estaremos onde se sarem os mares. O futuro brinca no nosso umbral.

Mellam bark og ved, 1950



ESPERA

Sem olhos, sem olhos,
vejo com as mãos, com a boca,
os pássaros de todos os meus olhos,
pu-los de sentinela:
oh, ver até o que a vida transborda,
confessar uma vez a sua estranha profundidade;
antes que o olho se feche ver uma única Coisa
tão intensamente implacável e pura
que saiba reunir –
e que passe o umbral.
Limpo um espelho que não se lembra de mim,
endureço à luz, afio-me na pedra.
Não encontro aquele que me espera
porque já não está em sua casa.

Efterladte digte, 1957



NOITES NO PELEPONESO

I
Aqui entrei seguindo o caminho,
ouvi o roçar dos gafanhotos,
os ligeiros pés do rio
pisando cinzentas pedras calcárias.
A luz apagou-se sobre as
diligências dos caracóis,
os fogos das abelhas,
as destroçadas colmeias
das vastas e cálidas montanhas.
Vi o falcão vespertino
no ar escuro como a resina,
voando sobre as amoras da época,
uma esfomeada espada de frio.
Derruba-me quando quiseres
enquanto ainda sou sede,
enquanto amo e sou sede,
enquanto uma mão é uma folha,
e uma folha é ainda felicidade,
colhe-me como um pássaro do bosque,
abraça-me sem frio.
Não são malvados
os velozes braços juvenis da morte,
amarga é apenas a branda
língua de areia do vazio.

II
Os pássaros emudecem, e as folhas
cujas espinhosas línguas nunca
cantaram. Os escaravelhos, as abelhas,
as toupeiras dormem
nas suas galerias. Não há brisa
que toque com dedos transparentes
nas cordas de harpa dos juncos,
não há veia que se abra, mane,
na noite, não há sons uivantes
de águas que saltam
livremente. Há muito que o rio
abandonou as suas pedras.
Alguns falcões voam ao redor
do perfumado peito da montanha
na noite. Solitário e estranho. Só.
Logo acabará a vida.
Que queres, que é o que queres de mim aqui
no reino da perfeição,
frio mar, impaciente resplandecente grito jovem de
primavera, da santa primavera
nos meus afiados
ramos invernais?


 Efterladte digte, 1957



Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 
 
 


Paul la Cour. Nasceu em Rislev, em 1902, no seio de uma influente família camponesa de origens francesas. Viveu parte dos anos 20 em França. No seu regresso à Dinamarca iniciou uma importante tarefa de crítico literário e de arte. Introduziu na Dinamarca inúmeros autores franceses. Traduziu Garcia Lorca. Faleceu em 1956.


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