domingo, 4 de agosto de 2013

Artur Lundkvist



POEMAS DE ARTUR LUNDKVIST

Deixai-me ser uma trompete em que a vida toque atoardoras marchas.

Deixai-me ser um alarido cor de cobre ao despontar a alva, quando
    todos dormitam mas os caminhos sentem a falta dos seus caminhantes.

Não me deixeis andar vacilante, amodorrado – não: deixai-me saltar de
    súbito como mola de aço comprimida!

Oh, convertei-me num flautista de mão peludas, que retira a sua
    melodia de uma madeira rica em seiva!
E que todos os pálidos ruboresçam e que dancem todos!

Cortai a carne flácida dos meus membros.
Dai-me músculos – músculos palpitantes, ansiosos, ansiosos de
    actividade, felizes por poderem trabalhar como máquinas jovens (máquinas
    com brilhantes peças de aço banhados num óleo azul!)

Glöd, 1928



DAI-NOS UM SONHO

Trabalhamos ali em baixo, nas profundezas, como numa mina.
  Temos os olhos cheios de pó de carvão. As nossas mãos apegam-se à
  picareta e ao cabo tosco do martelo.

Dai-nos um sonho luminoso que nos acompanhe como uma boa
  irmã que esteja ao nosso lado nas trevas, que nos sussurre
  palavras vivas e que ponha a sua fresca mão nas nossas frontes.

Dai-nos um sonho de um sol resplandecente na distância, de um vento
  com cheiro a flores e a terra molhada após a chuva, de árvores altíssimas
  que aprumem as suas belas copas, de casas felizes, de risos de crianças

quando se lavam pela manhã e quando os últimos balões dançam
  sob as estrelas ao entardecer.

Dai-nos um sonho luminoso – e as nossas mãos continuarão a agarrar a
  picareta e o cabo tosco do martelo. Trabalhamos ali em baixo, nas
  profundezas.
  Precisamos de um sonho. Luminoso.

Glöd, 1928



Não me obrigueis

a negar
a verdade que vi em sonhos,
os sonhos que vi na realidade.
Não me obrigueis
a acariciar os lobos
ou a encher vulcões com jornais.
Não me obrigueis
a caminhar com botas de ferro ou sapatos de pregos.
Se dependesse da erva
os que mais longe chegariam seriam os que andam descalços
ainda que se possa leva nos braços, como a uma criança,
uma árvore de cinco anos.
Nego-me a eliminar os olhos esfomeados,
nego-me a anular as palavras vermelhas das crónicas das existências.
Lançarei paus em chamas para os quartos escuros e decrépitos.
Pisarei os piolhos que avançam com o seu rei à frente
como um exército remoto.
Afogarei as máquinas caça-níqueis
com o escuro algodão das mulheres negras.
Nego-me a escutar ciclones debaixo de água
e a dar de comer peónias aos polvos.
Prefiro saltar da torre condenado à morte
e salvar uma lápide de bosques em chamas.
Pavimento um céu crepuscular com andorinhas
e bebo a beleza do rio das ratazanas de água.
Mas não me obrigueis a negar a visão
de uma justiça recta como o bambu
nem a poesia cálida, rosada como a neve nas copas dos
  pinheiros.

Liv som gräs, 1954



As formigas

estão a conquistar o mundo.
O chão cede sob o pé
e o pé afunda-se nas galerias dos formigueiros
    e é imediatamente atacado.
As formigas esvaziam as paredes e as casas colapsam.
Encham as lâmpadas até que a luz se apaga.
Introduzem-se nos orifícios do corpo humano
e devastam-no todo como um fogo negro.
Aparecem nas devoradas pupilas do retrato.
Deixam-se cair pelos ramos das árvores até às cavidades do peito
de tal modo que os cavalos disparam.
De manhã vemo-las aposentadas nos sapatos
e só se podem expulsar com fortes jorros de água.
Introduzem-se nos cofres e devoram os papéis de valor.
Atacam as impressoras e aí substituem os tipos por formigas.
Inundam os railes e fazem descarrilar os comboios.
Invadem as cidades e os refúgios não servem para nada.
Não há protecção alguma contra os exércitos de miríades de formigas.
E não há nenhum lugar para que se possa fugir.
Morrem aos milhares de milhões mas jamais se sentam derrotadas.
São mais eficazes que os maçaricos de soldadura.
O seu trabalho vai tornando-as mais fortes,
cada dia são maiores e mais irresistíveis, com corpos e olhos blindados.
Continuam a atacar ainda que tenham esmagado meio corpo.
Comem borracha como se fosse pão, bebem leite e whisky indistintamente.
São implacáveis como o céu e o fogo juntos.
Triunfam sobre todas as coisas
talvez sem sentir sequer o prazer do poder.


Liv som gräs, 1954


Sou um homem que olha de uma ponte e se vê reflectido na água
  que corre,
não me reconheço, poderia ser qualquer caminhante,
sou um filho que tentou ser o seu próprio pai, uma blasfémia contra toda
  a origem,
tal como uma árvore eu não tenho história, simplesmente cresci à minha
  maneira, com o vento e contra ele,
por todo o lado tentei amar as pedras e encontrar a mesma
  cor de olhos em todas as águas,
talvez seja a fome a minha verdadeira herança, uma fome sem consolo ou
  confiança,
fome em si que é fome em mim, um lobo que encontra a sua neve em
  todo o lado.

Sou um enteado deste país, nunca volto a casa, ando errante,
  em círculos,
enteado sem tubérculo algum que desenterrar da terra, só
  a neve se abre um momento
e fecha um portão, silhuetas tisnadas sobre um dia leitoso,
vozes irreconhecíveis ensurdecem na distância sem produzir eco,
o céu deixa que se fundam as pedras com um suspiro como quando
  o ar sai da massa que está a fermentar,
mas é um suspiro que não se dirige a mim.
O pacote de agulhas do pensamento brilha como se eu estivesse
  na margem de um lago à contra-luz,
mas a terra esconde-se sob as árvores, até que o bosque não me deixa
  ver as árvores,
o caminho avança alto como um dique, o tráfego alvoroça entre as
  copas das árvores,
a quinta está lá em baixo, entre o matagal verde e lambe as suas feridas,
  como uma menina que tivesse envelhecido,
e o vento silva no trinco de uma dobradiça sem cancela.

Ögonblick och vägor, 1962



Milhares de deuses rastejam pelo solo, elevam-se em espiral, enchem o ar
  de redemoinhos e de penas,
um conjunto de deuses que do cume da montanha se precipita
  para o mar,
deuses que comem e vomitam, ordenam furtivamente, pisam a terra,
  pegam fogo aos bosques,
escondem roupas, derramem leite, carbonizam colmeias, desbaratam açafrão,
constroem os seus templos de raios sobre a cidade, deixam que as
  serpentes piquem os anzóis e os tubarões chorem como
  crianças nos bancos de areia.
Que difícil é viver com os deuses, que impossível é viver contra eles!
Quem será o pobre herói humano que empreenda o combate com os deuses,
que machado chegará às suas raízes, as raízes dos deuses inumadas em cada
  homem,
quem as arrancará da carne, do fundo da água dos sonhos e das
  trevas do sangue,
deuses que fogem para voltar por lugares imprevistos,
deuses com a sua perigosa felicidade e as suas chaves de fogo,
deuses com umbigos de ar e olhos que flutuam como borbulhas na água.
Mas, arranca-o, arranca do ninho das entranhas o deus que grita,
como se arranca a dor da raiz do dente!
A primeira liberdade é libertar-se dos deuses, depois vêm as demais
  liberdades, também a libertação do tirano,
que é o mesmo que libertar-se do medo (o homem que se deixa morder
  por uma cobra
é um tirano, o homem que se senta no meio do fogo pintado de cal
é um tirano, o milagre é poder e o poder é vida subjugada):
arranca as sangrentas raízes dos deuses ainda que gritem
  como as mandrágoras das lendas!

Ögonblick och vägor, 1962



O poema
é inimigo do poeta como o filho do pai,
o poeta deve morrer para que o poema viva.
O poeta é a alta rocha
de onde a vida se contempla a si mesma
duvidando entre precipitar-se ou não para o fundo do abismo.
O poema mostra-nos que uma grande montanha
é sempre um mistério,
tal como a pena de um pássaro.
O poema tem asas que não precisa de usar,
talvez o que mais se lhe assemelhe seja um cavalinho verde.
No poema uma tonelada não pode escravizar um grama,
nem tão pouco um grama pode escravizar uma tonelada.

O poema é o único anjo que cai
velando tanto aos que dormem como aos que velam.
O poema tem mãos largas que chegam à meta
que outros não alcançam.
O poema desce às cloacas subterrâneas,
um salvador com altas botas de água.
O poema sente o esqueleto
em que delicadamente descansam os altos edifícios
(também ouve falar na cave o carvão ventrículo).

O poema suspende o seu farol de vaga-lumes no desfiladeiro,
é a ratazana de pele prateada que corre entre os montes de lixo.
O poema abre os olhos à criança que há no adulto,
escreveu-se na palma da tua mão antes de teres nascido.
O poema sai com foices e gadanhas à colheita da revolução,
o seu jovem corpo está tatuado com imagens
que abrem os seus mil olhos para o mundo.

Texter i snö, 1964



Uma máquina na neve.
Lá está negra e quente a meio da brancura.
Um indomável corpo negro entre montões de neve.
Em flocos silenciosos, em bandos, agrupados, cai sobre ela a neve,
impotente contra a máquina.
Crepitando ligeiramente, a máquina devora a neve.
O desafio da neve pô-la com um humor excelente.
Segura da sua vitória, confiante em si mesma, quente e negra.
Anda, atreve-te, velha e estúpida neve!

A máquina continua a aquecer-se, a barriga cheia
de chamas e de brasas, sente-se bem
como um enorme pastel de ferro fermentado.
As rodas gozam da sua quase imperceptível velocidade
e a neve deve ter cuidado para não queimar os dedos.
Os eixos riem a girar no seu oleado brilho,
superiores, mais perigosos que uns nus braços de mulher.
Os cilindros campeiam no seu poder,
estômagos de ferro que são, também, músculos.
As bielas preservam o seus ritmo desapiedado,
mete-tira, mete-tira, que coito mais excitante!
Que jogo de forças que não se aniquilam!
Não há qualquer piedade para a neve angelical.
A máquina trabalha impertérita entre os montões de neve,
dança sem sair do sítio, goza excitada pela violência.
A máquina é ao mesmo tempo mais ou menos que um ser vivo,
escravo que goza de si mesmo
enquanto escraviza o seu tirano.

Mas, foi derrotada a neve pela máquina?
A neve tem à sua disposição espaços incomensuráveis,
lapsos de tempo ilimitados, paciência infinita.
Não trabalha da mesma forma da máquina,
a sua força é diferente, obedece a outras leis,
extensas, ilimitadas, impossíveis de abarcar com a vista.
Na sua estratégia calcula em milénios,
um trabalho ameno em favor do silêncio e da brancura.
A neve contempla-se a si mesma de todos os lugares
com o seu branco olhar imperturbável,
sem paixão, abaixo de zero,
um poder cuja suave moderação é o seu mistério.

Texter i snö, 1964



Caminho entre raios, a mim não me deterão!,
entre raios que arrojam o seu laço sobre os rebanhos e fazem arder
    as pedras,
raios cujas línguas de víbora brotam das gargantas das garças,
raios como fendas nas lousas dos alunos,
raios como cabelos em chamas e angélicos rostos carbonizados,
raios com o seu alfabeto árabe sobre o asfalto da noite,

enquanto jogam a canasta no chão com os tapetes desviados,
jogam a canasta dentro dos roupeiros com as portas fechadas,
ou na copa de um pinheiro gigante que está para ser abatido pela
   moto-serra,
jogam a canasta voltados do avesso no grande espelho do tecto
e na cave onde a água já chega a meio da perna,

caminho entre raios que plantam árvores em flor e bebem mananciais
    num único beijo,
raios que levantam pó como os colchões de inverno quando são
    sacudidos no pátio,
raios como ferramentas sem cabo, raios sem firmeza,
raios que se retorcem como saca-rolhas no topo das chaminés
    das fábricas,

enquanto jogam a canasta no inóspito cimento que no entanto não
    gastaram os corpos dos homens
e nas escadas, sobretudo nas escadas, acima e abaixo, e também
    no meio,
jogam a canasta nas cozinhas entre chamas de gás e panelas,
entre peixes recém pescados que ainda mexem de vez em quando,
jogam a canasta os mendigos sob as pontes e os mergulhadores na água,

entre raios como paliçadas postas de lado, raios como os cravos
    torcidos das ferraduras,
como o lançamento do pescador de cana com a sua colher de ouro,
    como bétulas sem casca,
como placas de zinco arrancadas por um redemoinho do telhado de uma
    igreja, como uma meada de aterrorizados vermes brancos,
como uma estria de nata derramada num poço, raios, raios,
enquanto os pilotos jogam a canasta na cabina do avião que
    procura um caminho no névoa,
jogam a canasta na erva antes que tenha secado o orvalho,
no enorme ventre da mulher à hora do parto,
nas bancadas do estádio quando se está a decidir a partida de
    futebol,
diante do tractor de colheita que sega o trigo,
nas fumegantes crateras das bombas durante as tréguas dos
    combates,

entre raios peludos como panças de gatos e palpitantes como nervos
    arrancados a um corpo surpreendido,
raios como roscas no parafuso das nuvens,
como arame farpado molhado em leite,
como espigas de trigo cortadas com navalhas de barbear,
como a queda da lâmina da guilhotina,
como jactos de água lançados contra poços de petróleo em chamas,
raios como a secção de uma pedreira de cal,
como pestanas trémulas no orgasmo e tigelas que se sobrepujam,

raios, caminho entre raios, estou rodeado de raios,
a mim não me deterão!,
(mas em toda a parte jogam a canasta, jogam a canasta).


Besvärjelser till tröst, 1969


Versão minha - © Amadeu Baptista





Arthur Lundkvist (1906-1991). Nasceu em Oderljunga tendo, a partir de 1926, vivido em Estocolmo. Publicou o seu primeiro livro em 1928. Poeta, romancista, ensaísta, autor de livros de viagem, crítico e tradutor de vários idiomas, dedicou especial atenção a autores de língua castelhana: Pablo Neruda, Miguel Ángel Astúrias, César Vallejo, Octavio Paz, Jorge Luís Borges e Vicente Huidobro. Foi eleito membro da Academia Sueca em 1968.




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