terça-feira, 30 de abril de 2013

Jón úr Vör



POEMAS DE  JÓN ÚR VÖR


PAZ ARMADA

O velho canhão
no musgoso forte
olha o céu
com o seu olho silencioso,
e um pássaro fez
o seu primeiro ninho
e elegeu para ele
o largo tubo.

Stund milli strída, 1942



A MEIO DO INVERNO

Cri que nevavam
rosas vermelhas e brancas
e o ar cheirava suave
a meio do inverno.
Aquela a quem amava
caminhava ao meu encontro.

Stund milli strída, 1942




PARA QUE NASCESTE?

Para que nasceste?
O que se te encomendou?
Arrancas umas pedras da terra
para que cresça a erva
e o baldio da aldeia ri-se de ti
pois a montanha ainda não está nem meio erodida,
rugosos os penhascos, nuas as quebradas.
Nasceste hoje,
mas a tua cova foi cavada ontem.

Thorpid, 1946



TRANQUILA E SILENCIOSA

Tranquila vela a luz
na mão branca do candelabro,
suave e silencioso cruza o sol
as terras em penumbra.

Tanta algazarra
não apagará a miséria do mundo.
Tranquilo e silencioso e na terra
o grão faz-se pão.

Med hljódstaf, 1951



A LUZ DO DIA

A luz do dia canta nos teus cabelos
caminhas pela margem
e até as pedras amaciam
sob os teus pés nus.

O teu silêncio é a pulsação
daqueles pássaros
que perdido o seu rumo
morrem no mar.

Med örvalausum boga, 1951




SOU UM PUNHADO DE TERRA

Oh, aonde estás,
verdade do simples,
clara como o arroio
que nasce de uma fonte.

Oh, aonde está a tua terra,
pura como as lágrimas de uma criança,
clara como os olhos assombrados
que desfrutam do sol pela primeira vez.

Oh, aonde estás,
verdade do simples,
descalço escutarei a tua fria resposta.

Como pássaro só na escuridão,
longe de toda a fé,
sei que dormirei esta noite,
despertarei amanhã?

Mas aonde, oh, aonde.

Eu sou apenas um punhado de terra
e tu o vento.

Med örvalausum boga, 1951


CHINESAS

Recorda
essas pedras minúsculas,
pequena
pupilas polidas pelas ondas
da fria eternidade.

Coloca-as uma a uma
sob a raiz da língua,

até encontrares no fim
aquela
que se derreta nos teus lábios
e se faça poesia.

Maurildaskógur, 1965




GAIVOTA DE INVERNO

O mar guarda o meu canto,
igual aos demais
segredos seus,
num silêncio hermético.

No seu olho vivaz
eu criança, vigilante,
procuro uma
e outra
concha maravilhosa
e frágil.

E vejo ainda
as asas estendidas
da gaivota de inverno
sobre a onda que cai.

Vetrarmávar, 1960



O CAVALO CEGO

Os que ainda tinham olhos
em Hiroshima
viram o cavalo cego,
os flancos chamuscados,
a cauda queimada, sem crinas,
correr ao abandono
pelas ruínas da cidade,
nem a morte
ousava montá-lo.

Maurildaskógur, 1965


CHINESAS

Recorda
essas pedras minúsculas,
pequena
pupilas polidas pelas ondas
da fria eternidade.

Coloca-as uma a uma
sob a raiz da língua,

até encontrares no fim
aquela
que se derreta nos teus lábios
e se faça poesia.

Maurildaskógur, 1965



PISADAS

Outrora as pisadas
eram só palavras
nos versos de outros.

Agora que te espero,
os nervos à escuta,
todos os desenganos se juntam
num mesmo som
quando as lajes da calçada
te distanciam de mim.

Mjallhvítarkistan, 1968



GEADA

A ti,
mulher maravilhosa
com coração
de geada.

O alado corcel
cabisbaixo te aguarda
junto ao rio
com a dor por brida.

Mjallhvítarkistan, 1968



SOMENTE POESIA

A minha vida
não era
senão poesia,

dança ao som maravilhoso
que ninguém ouvia
senão eu,

os meus dias,
os curtos e os compridos,
estrofes e palavras
sem rima.

Gott era d lofa, 1984


Versão minha - © Amadeu Baptista


Jón úr Vör nasceu em 1917 e faleceu em 2000. O seu terceiro livro, Thorpid (A Aldeia),
causou sensação no panorama literário islandês pelo uso do verso livre, algo insólito na lírica da época. Os seus versos cantam, sobretudo, o fazer quotidiano, em tom reflexivoe ponderado, matizado, por vezes, de ironia. Publicou doze colectâneas de poesia.




domingo, 28 de abril de 2013

Alfredo Ferreiro escreve sobre dois dos meus livros

Sempre atento e generoso o meu amigo galego Alfredo Ferreiro escreve sobre dois dos meus livros, tal como a seguir se transcreve, por cortesia do blog http://olevantadordeminas.blogaliza.org/



ventrículo atormentado



A lectura dun novo libro de Amadeu Baptista sempre supón enfrontar unha experiencia que non me deixará impasíbel. Por iso cando comecei a ler O ano da morte de Xosé Saramago (2010) e os niveis da máquina estético-intelectual subían até máximos raramente atinxidos na lectura, nada me resultou estraño.
Posúe este libro un estilo que boga entre a tormenta da imaxe sorprendente e o mar en calma do discurso directo sobre os asuntos vitais máis vulgares. Non oculta, neste sentido, unha marcada ideoloxía naquelas cuestións da rúa que todos pisamos, nunha actitude de outsider tan habitual nel, sen obviar unha crítica mordaz das políticas ultraliberais que o pobo despoxan do que é en xustiza froito do seu suor; hai mesmo unha denuncia dos gobernos que levan a cabo o indigno espolio dunha sociedade non ben acabada de matar:

« A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder
à esperança dos seus habitantes, o deserto especializa-se quando a crise
se amplia, chegam os usurpadores e o equilíbrio das emoções descontrola-se…»

«… o Nuno vem de Viseu, onde tão bem notou que é o crucifixo
um punhal que se usa à cintura,
e fazemos uma grande fogueira disto tudo,
lume puxado a tudo o que seja comburente,
com excepção, talvez, de L’Obsservatore Romano
que no Inferno arderá com maior jurisdição».

Ofrece, ademais, poderosas referencias a unha infancia obscura e de difícil asunción que xa percibimos noutras obras do autor, e que resaltan coa dureza daquilo que sempre nos doe e á vez nos impele a realizar un esforzo permanente na procura da felicidade, algo que no poeta se manifesta como unha caza pertinaz da beleza e a verdade, dúas faces da mesma moeda:

«… era eu criança e procurava em vão
a tumba de um irmão,
e uma pedra bastou para me serenar a angústia,
ainda que do meu irmão nunca mais soubesse,
nem de minha mãe,
a quem beijei pela última vez a notar-lhe um ferimento no rosto,
um ferimento que só a terra cicatrizará,
uma terra compacta para tantos cães,
uma cicatriz igual à que tenho na alma,
se alma é o que na minha cicatriz se incrustou».

Mais estas ramas, a crítica política e a áspera lembranza do pasado, son aspectos do poemario que acompañan un tronco principal, unha liña vertebral de contido que fai referencia á poesía mesma, ou mellor á arte escrita en sentido amplo. Esta é a razón pola que con frecuencia aparece a reflexión sobre a propia escrita, e pola que en varias ocasións se citan no poemario José Saramago (xa no título), Herberto Helder e Nuno Dempster. Porque a experiencia da escrita, sendo íntima e estando ligada a experiencias persoais, posúe no ámbito da publicación unha vinculación co alleo, sexa o lector, os outros autores, o mundo editorial ou en xeral o sistema literario.



A pesar de ter un tamaño máis reducido, quero tamén resaltar outra obra do autor, máis recente: Atlas das Circunstâncias (2012), que gañou o Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage en 2009. Utilizando de forma moi libre o soneto, presenta Baptista a figura do poeta como un ser convulso, complexo e paradoxal, facto debido á súa función de espello do mundo, esa realidade que só pode ser representada mediante unha elocuente contradición de imaxes e sons:

« O poeta deseja a clareza e é afoito a perscrutar
o magma das palavras e os seus grumos.
Um enigma, ao fim da tarde, reitera-lhe o poder
indemonstrável das palavras…»

Presenta o libro tintes de gnosticismo laico, cunha perspectiva poética que resalta como instrumento útil para o coñecemento interior, para a perscrutación de todo aquilo que no ollar cotidiano non pode ser revelado.
E, como non podía deixar de ser na obra de Baptista, aparece a infancia retratada como un estadio de alta percepción do mundo nas súas grandezas e nos seus misterios, unha sabedoría natural que non debe ser esquecida para non caermos na soberbia de nos sentir o centro do universo.
Por todo o explicado atrévome a recomendar a lectura destas dúas extraordinarias obras. Mais hei de recoñecer que, se isto non fose unha actitude inxusta, contemplaría a hipótese de impoñer a súa inoculación por decreto poético a toda persoa afeccionada á poesía, convencido de que non habería moitas vacinas máis eficaces contra a falta de sentido artístico. E se cadra unha transfusión de urxencia para aquelas persoas que aseguran non entender o xénero.

Alfredo Ferreiro

segunda-feira, 22 de abril de 2013

2º. Aniversário

Este blog completa hoje dois anos de actividade.
Fica a comemoração assinalada com um dos meus poemas preferidos, com um abraço para todos os visitantes e amigos.





A CONSTRUÇÃO DE NÍNIVE

Toca-me o sangue. Peço-te que me toques
o sangue. Escuta este rumor
dentro do meu peito, esta palavra enlaçada
a uma pedra que arde dentro da terra.

Toca-me o sangue. Ordeno que me toques
o sangue. Este rio que corre nos meus olhos,
a música silenciosa que o mar vem entregar
quando os homens regressam do crepúsculo.

Vê como estou vivo. Vê como sabem a terra
as minhas palavras. Vê como tenho ensanguentadas
as minhas palavras perdidas, esses barcos
que a tempestade teme e as aves anunciam.

Amo-te. Toca-me o sangue. Sente que venho
da noite, que é com angústia que chamo
pelo teu nome, sonho os teus sonhos,
espero as tuas mãos.

Toca-me o sangue. Toca os fios de dor
que me rasgam a boca. Toca o fogo dos meus cabelos.
Toca-me o sangue, a escuridão
em chamas do meu peito.

Sou o que espera na noite. Sou o que chora
na sombra. Sou o que espera a tua passagem
silenciosa, os teus quadris ardentes
navegando na noite impassível.

Espero-te. Espero-te. Um perfume ergue-se
das tuas mãos, um punhal. Toca-me o sangue.
Sou o que espera na solidão inquieta
e toma a luz pela luz dos teus cabelos.

Espero um rio, é uma praia que espero, o azul
penetrante da tua tristeza secreta, esse bosque
rugindo um nome e precipitando a fuga
dos que temem e estão intranquilos.

Toca-me o sangue. Toca o arco de fogo
que cai das minhas mãos, as sílabas perdidas na treva
por que uma criança cresce para o sono
e toca a limpidez de uma lágrima.

A vida vem com a brisa. Um astro
aproxima-se do teu rosto. Uma canção desprende-se
da árvore de espuma que a sombra engendra.
Toca-me o sangue. O febril sangue do meu peito.

Amo-te, mulher desconhecida. Amo-te.
Amo o jorro de luz da tua boca,
as tuas cálidas palavras, a orla secreta
dos teus lábios onde o mar vem beber.

Amo o lume inesperado dos teus olhos, o teu corpo
nervoso, as tuas mãos perdidas no vazio.
Amo as caladas cintilações da tua boca,
a pequena mancha de tule que dança nos teus olhos.

Como a luminosidade descobre uma sandália na areia,
o sinal recente de um beijo no contorno de um rosto,
como um coração de pedra arde dentro da pedra
e uma nuvem transfigura para sempre o horizonte, amo-te.

Toca-me o sangue porque te amo. Toca-me o sangue
porque trago comigo uma palavra sagrada. Porque estou
inocente. Porque te amo. E uma ponta de luz
entrega a claridade invisível dos teus dedos.

Um rumor de água ou de lume vem das tuas mãos.
Pulsa nas veias da noite o vento do teu nome.
Um pássaro queima a tristeza inextinguível.
Um grito, um grito rebenta finalmente no meu e no teu peito.


(in A Constução de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001)

© Poema e foto: Amadeu Baptista




quarta-feira, 17 de abril de 2013

Paal Brekke



POEMAS DE PAAL BREKKE



QUEM É O DESCONHECIDO

Quem é o desconhecido
que abre a porta da cela para dar um
passeio ao ar livre de dois segundos, e logo
a volta a fechar –
                                               e o entardecer
do pátio da prisão entre altos muros
recordamo-lo com visões deslumbrantes.

Quem são –
o médico com a sua bata branca
que impessoal
traça a curva da febre nos nossos rostos,
e o director que do seu escritório,
sem levantar em nenhum momento a voz,
arranca os nossos pensamentos lendo-os do arquivo.

Entretanto joga-se esta partida de póker connosco
como aposta
no salão dos espelhos opacos.

Olha, o ar condensa-se húmido sobre o rosto,
e o porte aumenta hora a hora.
Enchem-se todos os impressos, joga-se
com as cartas todas.
Aqui joga-se cientificamente e sem
trunfo. Sem batota
despojam-nos de tudo.

Aqui cada um é o seu próprio
carcereiro, irreconhecível
e anónimo.


Skyggefektning, 1949


ÁRVORE NA PRAIA

O escuro sussurro nos ramos do sangue.
Morte, recordando-se a si mesma

recordando nesta folhagem
a fuga da sua asa para a luz, para a luz

enquanto a noite, cinzenta de escutar, lentamente
levanta a cabeça sob os ramos vermelhos

da árvore, directamente para o céu
reflectido num mar de cegueira –

Levanta a minha copa, vento do nada
em busca de uma árvore na praia

as folhas respondem quando tu chamas
a árvore empresta-te a sua voz.

Løft min krone, vind fra intet, 1956



DÉJÀ VU

Apanhado pela tua lança. Morto
e atirado do cavalo
volto-me a levantar da areia.
Mas tudo é silêncio.
Vejo-os sentados, vestidos de um verde alegria
com incrustações de orgulho bordadas a ouro
atrás da barreira vermelha, forrada de veludo –
silêncio, sem um movimento
como que encerrado em gelo no ar transparente
com a impotência dos estandartes e o mudo grito
das trombetas.
Uma porta abre-se lentamente.
E eu passo a mão pelo rosto
perguntando-me, buscando confuso uma esquecida
recordação
como se tudo me tivesse acontecido antes.

Løft min krone, vind fra intet, 1956


UMA CONCHA A NOSSA CASA

I

Desenho as tuas sobrancelhas com o dedo
e as teus finos zigomas. Quanta presença tua aqui!
Levanto os teus seis retirando-os da obscuridade
e a sua canção de amplitude de planetas estranhos
sussurra no meu rosto.
Levanto do mar as brancas praias dos teus quadris
resplandecentes à luz da lua.
                                                                       A tua pele contra a minha
as pulsações do coração contra os meus – quanta presença tua
    aqui!
quanta presença minha!, sou eu, sou real
E juntos nos alongamos para uma realidade maior
balançando-nos neste eu-tu-nós, como num barco sobre as ondas
onde tudo é encontro, tudo é espelho contra espelho, luz contra luz.


II

Arcos, vertiginosos até ao espaço: uma concha a nossa casa –
nós não dormimos, não velamos, simplesmente esperamos
num branco quebra-mar da praia. O sussurro dos nossos poços
de distantes recordações abre-se a sussurros de tons elevados
Oh tu que existes, como música no espaço existes
e que esperas, esperas como nós
até que as coroas denteadas da concha se soltem
lentamente à nossa volta e a forma da nossa franqueza
fique nua, tremulamente liberta
Que abertos estamos, que abertos todos os lugares aqui!
neste encontro com um tu, tão sem limites todos os lugares tudo –
enquanto passam árvores de azul nocturno zumbindo através de
    nós
Oh, mantemo-nos ainda na profunda rede
como fosforescências sobre a escura dança das ondas
em ar e terra e céu. Detém
a nossa fuga para trás –
ainda, ainda
até que nós simplesmente voltemos a velar ou a dormir.

Løft min krone, vind fra intet, 1956



ONDE SE PERDEM TODOS OS CAMINHOS

O homem que assassinou terça-feira
era um assassino na segunda?
E se desperta quarta-feira em frente a uma janela cinzenta
e a névoa vagueia solitária através dela
quem é agora?

o homem de ontem?
quando a pedra levantou a sua mão para golpear
ou o que era anteontem
quem
quando foi anteontem
Recorda ele a luz da lâmpada do piano
e as mãos sobre as teclas
sim, Händel.
E uma pesada pedra cinzenta, crocante
Olha fixamente para dentro
onde velhos pontos de referência se dissolvem na névoa
modificam a sua forma e mudam de sítio
E ele olha essas mãos
de quem são!
uma pedra que elas lançam a um pontão
ou Händel, Händel

que se levantou do piano
sem o olhar
deixa que a porta volte a fechar-se
E só restam as mãos
usadas emprestadas
Como cães da rua estão
por lá a uivar num pântano deserto
até quinta, sexta-feira

Roerne fra Itaka, 1960


A SITUAÇÃO

A situação experimentou uma mudança que está carregada de
orgias sexuais e bebedeiras entre crianças de 12 anos negras recebidas
com clavas e chicotes eléctricos para vacas só os que
crêem em Deus podem obter a nacionalidade canadense

Era uma manhã exactamente igual às outras e acordei
com a mesma sensação com que sempre acordo que
alguma coisa se extraviou não sei a minha mulher preparou
um desjejum eu desci para recolher o jornal coloquei-o
sobre os joelhos e pus-me a barbear-me disse bzzz

À merda a ONU grita Sukarno deixou
o cadáver na vala os pequenos diabos se chama
esta secção dos académicos chineses duas crianças encontradas
mortas após uma invasão de arruaceiros monge budista pega fogo

Que dizes estou a ler o jornal não não te ouço
estou a barbear-me faz bzzz já o sabes alguém está
metido no som encerrado no bzzz poderiam fazer explodir
uma bomba de hidrogénio fazer uma chamada interurbana mas não
estava ninguém eu estou em bzzz como nessa vez que saí de viagem só
e duas garrafas de bolso de whisky compradas no avião e eu
abracei-as estava só e bebi até entrar em bzzz
um quarto fechado mas sem paredes as paredes eram como
se fossem eu também Eram mamã? era bzzz

Todavia há muitas lâmpadas feitas de pele humana na
Alemanha Vaporizador bocal com válvula de dosagem de alento
fresco os soldados sul vietnamitas que interrogam prisioneiros sabem
que manter-lhes a cabeça debaixo de água é o que espera
o mundo livre.

Soprei os pêlos da máquina de barbear eléctrica
e subi a persiana e fora a manhã
estava estupenda era Fevereiro tão claro e azul escuro
como vinho! Oh meninos meninos! tinha querido gritar
mas tolhi-me como uma grávida tenho que vomitar
antes do pequeno-almoço e à merda o pior é naturalmente
despertar pensei e vesti-me e sentei-me
à mesa do desjejum estendi o jornal porque só ia
a meio ler Silêncio rapazes disse

O que vedes à vossa esquerda é uma cebola radioactiva

Det skjeve smil I rosa, 1965



ECCE HOMO

Ecce Homo, recitou o poeta
decorativamente apoiado no piano de cauda
Vi o meu rosto
reflectido numa colher de sopa
Uff
Aparta de mim este cálice

Det skjeve smil I rosa, 1965



COMO NUM CINEMA

Como num cinema, mas sem
que eu mesmo saiba como cheguei
aqui, e a meio da projecção
De que se trata? chiu
Mas como se chama o filme? chiu
E o arrumador acende a lanterna,
dirige-a para mim, esquadrinha-me
Mas por que não se senta? Que se passa
com estas maletas?
São minhas. Chiu, empurra-me
Está bêbado? Esteja
quieto, se não terá que sair

E distante está a recordação de que uma vez
protestei? não gritei? pateei
Pouco lembro, apenas que tropeço a subir
a escada com números que brilham
verdes até à Saída (vermelha)
e do medo. Do ecrã que está atrás de mim
vozes metálicas gritam como através de uma trombeta
sussurram como se fossem guinchos irregulares
e rodeadas de uma trevas sepulcrais
só as cabeças, tão brancas
que somente sobressaem  dos apoios da cadeiras
e quando lhes falo
Chiu! Impelem
Saio de cabeça pela porta
mas só para entrar noutro cinema, idêntico
e com o mesmo filme
Projectam a película para a frente e para trás
Chiu. E o arrumador e o mais repete-se
outra vez, subir as escadas
sair outra vez, mas sempre apenas para voltar a entrar.

Det skjeve smil I rosa, 1965



Versão minha - © Amadeu Baptista




 


Paal Brekke. Nasceu em Røros, a 17 de Setembro de 1923. Esteve refugiado na Suécia durante a ocupação alemã. Estudou na Universidade de Upsala. Romancista, jornalista e crítico literário. Estreou-se como poeta na Suécia e está considerado o pioneiro do modernismo poético norueguês. Traduziu Eliot e Ezra Pound. Faleceu em 1993.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O Bosque Cintilante # 79

Felix Mendelssohn: Canção da Primavera

Sou eu o rio primaveril, eu que sigo
parado sobre o curso do tempo,
eu que vejo flutuar nas minhas margens
alguma dessa esperança que o homens procuram
com o sentido indizível de existirem
na senda de um caminho intranquilo.
Em mim flutuam pouco mais que brilhos.
Pouco mais que alguns poetas cantam hoje
o que é mim suavidade, essa frescura
de haver em cada árvore um doce oásis
onde permanecer para sempre
a memória de haver no mundo a luz
que descreve a doçura que no meu leito adormeceu.


O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista



quinta-feira, 11 de abril de 2013

Tom Kristensen



POEMAS DE TOM KRISTENSEN



A ATLÃNTIDA

Um símbolo


O universo volta a ser caótico.
De novo se entoam acordes violentos.
Fora, sicofantas! E fora, parasitas!
E fora vós, os que de joelhos adulais aos muitos!
O tenor peganhento emudece –
Escutai a canção do agitador!

Rouca é a sua voz. Vê-se a flamejar o vermelho explosivo
dos seus lábios sob as negras pontas do bigode.
Escutai como ruge falando a favor da Atlântida,
a juventude, a força, de nunca retroceder,
a dizer que unicamente por intermédio da Atlântida
chegaremos ao reino da beleza.

Formosa como um período devastado é
a nossa juventude, a nossa força, as nossas ideias veementes,
bela como a estrela verde gelo do revólver,
que nasce no instante com contradições que estalam
nas montras do estridentes cafés
da revolução e do seu cristalino retinir.

Vermelha é a gasta pelúcia dos compartimentos de comboio,
que ondeia em estandartes em marchas impetuosas.
As capas vermelhas dos carteiros fazem excelentes bandeiras.
Os saios dos lacaios, pesados estandartes
que se desdobram, sangrentos, ao vento.
Sorte para as nossas bandeiras bastardas!

A batalha tem que ser ganha com fuzis enferrujados,
barras de cortinas, machetes, barricadas de paralelepípedos.
Celebraremos a vitória com fanfarras estridentes
em fonógrafos de folha-de-flandres e com o chocalho do leiteiro
e ouvir-se-ão trompetas de latão
chamar tentadoramente.

A Atlântida, que tanto ansiamos,
tem rutilantes pirâmides de fuzis nas suas ruas.
As fogueiras resplandecem para os soldados dos becos
que esfomeados se apoiam nas fachadas
e devoram vorazmente
o nutrimento das latas de conserva.

As ruas estão vazias e o vento uiva azedamente
e converte em flautas os olhos das fechaduras e silva,
cadavérico, a valsa dos esqueletos,
que se dança nas noites de festas nas casas em ruínas
enquanto os vidros partidos das janelas
gargalham com o riso sarcástico das caveiras.


As fogueiras projectam o seu agitados resplendor
de incêndio e de sangue para as casas e os tugúrios.
As caixas de lata reluzem com as tampas ao contrário.
O vento esmaga contra o muro pedaços de jornal.
Afia-se uma faca no sulco brilhante como aço
das linhas do comboio.

Assim é o país das nossas ânsias, a Atlântida,
onde todo o preconceito da harmonia falha.
As cores explodem, e explodem também as formas,
e a beleza surge de violentas discórdias.
No caos, levanto o meu fuzil
para a estrela da beleza e aponto.

Fribytterdrømme, 1920



O MEU CACHIMBO

Eu não sou mais do que um pequeno poeta,
metade pensador, metade bufão,
adoro sobretudos imponentes,
os grandes chapéus, os grandes charutos.

O destino ofereceu-me grandes sobretudos,
deixou-me também um charuto;
mas quanto a amor ardente
comeu-me as papas na cabeça fodidamente.


Gosto de sair à noite
para ventilar o velho pó
que se acumula no cérebro
durante a ruminação quotidiana,

acendo um pequeno cachimbo;
mas quando o vento se torna impertinente
protejo a cálida chama do meu fósforo,
com a mão encurvada carinhosamente,

vendo-a lamber a madeira
lanço-lhe sorriso ladino
e então aplico-me a chupar
devotamente a haste do cachimbo.

O destino ofereceu-me este cachimbo
e um enorme pacote de tabaco
a modo de compensação
pela minha falta de paixão.

Fribytterdrømme, 1920



A EXECUÇÃO

Olha, pela terceira vez o verdugo
limpa do sangue e dos humores a sua espada,
e acendem-se três chamas vermelhas
no trapo que usou;
mas eu não tenho cabeça e estou morto
quando pela sexta vez uma chama
se ilumina, se ilumina
no trapo do verdugo.

Ajoelhamo-nos, nós, vinte homens,
com a cabeça estendida,
e terei que ver a reluzente espada
cortar a cabeça a cinco;
mas sexta, à sexta vez,
quando o tempo se vai fazendo mortalmente longo,
o olho fechou-se,
tudo passou.

Agora pela quarta vez o verdugo
limpa a sua espada com o mesmo trapo,
enquanto o número quatro é derrubado
e o sangue jorra
e o verdugo se aproxima mais:
entrevejo o punho da sua espada,
a asa de um dragão no
anel da empunhadura.

Então volto um pouco a cabeça
e vejo-o ameaçadoramente grande e cinzento
cabeça raspada com não mais que uma trança
contra o céu azul.
Noto cada simples pêlo que nasce
no nariz e nas sobrancelhas do verdugo.
Agora vejo e vejo
cada vez mais e mais.

Agora pela quinta vez o verdugo
livra do sangue e dos humores a sua espada,
e a cabeça do número cindo
deteve-se junto ao seu pé;
mas o tempo protela-se infinitamente
antes da sexta vez, a sexta.

Parou o mundo para sempre?
Está a espada cheia dos humores?
Estará a dar-lhe brilho o verdugo eternamente
para que não tenha que a usar mais?
Dói-me a nuca sem parar e a dor
lança-me uma vertiginosa auréola
à carne do pescoço.
Estarei já morto?

Não, o verdugo ainda está a olhar
o cortante e resistente fio da espada.
Então dá o passo seguinte
e detém-se – mede – retrocede um pouco.
Vejo um escaravelho a progredir confiado
do seu verde metálico das suas abobadadas costas,
vai a progredir para 
o pé do verdugo.

Paafuglefjeren, 1922



ERVA

A erva parece-me estranhamente alta,
deitando-me com o nariz colado à terra.
Se me dobro para baixo tudo o que posso,
o meu mundo torna-se muito grande.

Sob os verdes portais pontiagudos
me detenho. Aqui ficarei.
Não me atrevo a perder-me na brilhante escuridão!
Não me atrevo a perder-me entre as folhas.

Dento dos vestíbulos amanhecente das ervas
há uma voz que acorda e chama
em crescendo: vens, vens agora,
vens, vens, vens agora,
tu, agora?

E como resposta
soa dentro de mim,
maravilhosa, uma voz clara como a de uma criança:
Não, ainda não! Não, ainda não!
Mas quando tenha passado a minha loucura
quando tiverem os meus sonhos de grandeza passado,
então irei então irei,
então serei pequeno e muito feliz.

Verdslige sange, 1927



ANGÚSTIA

Asiática no seu poderio é a angústia.
Amadureceu durante anos de imaturidade.
E sinto diariamente no meu coração
como se a cada dia morressem continentes.

Mas a minha angústia tem que libertar-se em ansiedade
e em visões de horror e aflição.
Ansiei catástrofes de barcos
e vandalismo e morte repentina.

Ansiei cidades em chamas
e raças humanas em fuga,
e também uma jornada que afecte todo o mundo
e um sismo chamado castigo Divino.

Hœrvœrk, 1930

Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 


Tom Kristensen (1893-1974). Nasceu em Londres e viveu em Copenhaga. Licenciado em Letras. Foi um dos críticos mais importantes na Escandinávia no séc. XX. Apresentou na Dinamarca e traduziu T.S. Eliot, Ezra Pound, James Joyce, E. Hemingway, etc. 


 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Arto Melleri


POEMAS DE ARTO MELLERI





XANGAI BLUES

Estou muito longe de casa, vagabundeio
                só na noite de Xangai
quando os cristais quebrados do inverno cobrem as ruas
Estou muito longe de casa: os dragões,
                a névoa e o abrótano sobem como plantas trepadeiras
a escrita indecifrável das
luzes da cidade, e a palpitante imagem especular do mundo
                funde-se!

A aguardente, deslumbrantemente clara,
tira a vista dos olhos e a razão da cabeça...
A lua envolve a cidade em seda húmida.
Em todos os salões de baile a música estridente
calou-se, e um milhão de chineses adormecidos pela aguardente
jazem na neve de papel com a boca aberta.

Estou muito longe de casa, um marinheiro
                que atrasou do barco naufragado,
permaneceu demasiado tempo no abraço da mulher,
húmido e nutritivo
                como o limo do rio Amarelo. Estou muito longe de casa,
e o azulado nevão de esperma
cai sobre o País do Crescente Vermelho...
                no abismo que se abre sob a cama de ferro
sussurram-se mutuamente a mulher e a serpente.

A aguardente, deslumbrantemente clara,
Tira a vista dos olhos e a inteligência da cabeça...
O remoinho suga violentamente entre as pernas da mulher.

As suas ligas tangem uma ária
da ópera revolucionária, abre as pernas...
apaga as luzes!
E a palpitante imagem reflectida do mundo 
                funde-se.

Deixai que se funda!

                                                                              Mau-Mau, 1982


REBEL WHITOUT A CAUSE

Nestas fogueiras de acampamento
                escrevo com tinta invisível
                               uma escrita que é a sua imagem especular
a mesa dos ciganos estendida
                sobre a seda cambiante da erva,
                               naipes de Marselha,
le Pendu, o Enforcado, essa é a minha carta

                e agora repicam os cascos dos cavalos
                               os filhos das concubinas do rei
                                               cavalgam para afogar a revolta,

a minha comprida cabeleira ficou presa no ramo do carvalho
                quando a mula ficou com o freio nos dentes,
                               repique de cascos,
desce-me daqui e solta-me
                não vale a pena, pai, destroçar
                               as tuas preciosas vestes por mim,

desce-me
daqui.

                                                                                              Vuden aistin todistus, 1990


JUSTAMENTE QUANDO O CÉU GASTA AS SUAS ESTRELAS

Justamente quando o céu esta noite
estiver a gastar as suas estrelas connosco,
atira a tua casa pela janela, deixa que a copa
                se derrame, se o que queres é transbordar,
ganhar ou perder é o mesmo:
                               dada uma vida
para gastar, uma só vida,
amemos acima das
das nossas possibilidades.

Estão abanando a cabeça
os croupiers do Casino do Amor,
mas esquece essa montanha de caspa:
                aposta tudo numa carta,
                               que arda o dinheiro,
que cheire a Chanel, o mais caro
obviamente.

As velhas donzelas de ambos os sexos têm
olhos atentos... mas esquece-o;
                a inveja que palpita atrás dos seus leques
                               está a pôr-nos loucos
Deixa que o suor escorra sobre os rostos
                dos homens famosos cunhados nas moedas,
                  o cálculo dos benefícios
ficam longe deste sentimento.

Justamente quando o céu esta noite
está a gastar as suas estrelas connosco,
amemos acima das nossas possibilidades
o resto é dinheiro falso:
O amor não está à venda
no bazar dos quasares.

                                                                                              Elävien kirjoissa, 1991 

A SURATA DA SOMBRA

O que não possui
uma sombra no seu interior
uma Sombra para que alguém se possa retirar
da multidão humana
uma Sombra, uma penumbra, um manancial secreto
que murmure pacificamente
um Manancial cujas águas curem
a febre da alma

encontra-se desamparado no deserto,
cego pelo sol,
condenado a crer
em todo o espelhismo
e a areia do deserto muda
constantemente de forma,
a cidade, riscada do mapa,
continuará como alheia

O que não possui
uma sombra no seu interior
uma Sombra, uma penumbra, um manancial secreto
um Manancial cujas águas curem

Desgraçado aquele que não tem uma Sombra no seu interior.

                                                                              Elävien kirjoissa, 1991


NONATO

Não, não quero
nascer, não quero mudar o doce rumor do
líquido amniótico
pela luz, o grito que desgarra os pulmões

Não quero que me meçam,
me pesem, me subordinem ao Tempo
nem jogar às escondidas com a Morte
nisso a que chamam
                vida
Assim está-se bem:
viajar para qualquer parte
levado pelo cordão umbilical

Não é que eu não saiba:
berrando
consegue-se o mamilo na boca, eu não quero abrir
os olhos
em frente à torturadora luz, ver tudo
como se eu não
tivesse existido antes, voltar a ouvir
algum novo nome
da boca de algum sacerdote

Quando os diques da carne
se fecham
começa tudo de novo
do berro às secundinas

O filho do homem nunca é tão velho
como o recém-nascido.

                                                                              Elävien kirjoissa, 1991


Versão minha - © Amadeu Baptista

Arto Melleri (1956), nasceu em Lappajärvi e estudou na Universidade e na Escola de Teatro de Helsínquia. Escreve poesia e teatro.