POEMAS DE PAAL BREKKE
QUEM É O DESCONHECIDO
Quem é o desconhecido
que abre a porta da cela para dar um
passeio ao ar livre de dois segundos, e logo
a volta a fechar –
e o entardecer
do pátio da prisão entre altos muros
recordamo-lo com visões deslumbrantes.
Quem são –
o médico com a sua bata branca
que impessoal
traça a curva da febre nos nossos rostos,
e o director que do seu escritório,
sem levantar em nenhum momento a voz,
arranca os nossos pensamentos lendo-os do arquivo.
Entretanto joga-se esta partida de póker connosco
como aposta
no salão dos espelhos opacos.
Olha, o ar condensa-se húmido sobre o rosto,
e o porte aumenta hora a hora.
Enchem-se todos os impressos, joga-se
com as cartas todas.
Aqui joga-se cientificamente e sem
trunfo. Sem batota
despojam-nos de tudo.
Aqui cada um é o seu próprio
carcereiro, irreconhecível
e anónimo.
Skyggefektning, 1949
ÁRVORE NA PRAIA
O escuro sussurro nos ramos do sangue.
Morte, recordando-se a si mesma
recordando nesta folhagem
a fuga da sua asa para a luz, para a luz
enquanto a noite, cinzenta de escutar, lentamente
levanta a cabeça sob os ramos vermelhos
da árvore, directamente para o céu
reflectido num mar de cegueira –
Levanta a minha copa, vento do nada
em busca de uma árvore na praia
as folhas respondem quando tu chamas
a árvore empresta-te a sua voz.
Løft min krone, vind fra intet, 1956
DÉJÀ VU
Apanhado pela tua lança. Morto
e atirado do cavalo
volto-me a levantar da areia.
Mas tudo é silêncio.
Vejo-os sentados, vestidos de um verde alegria
com incrustações de orgulho bordadas a ouro
atrás da barreira vermelha, forrada de veludo –
silêncio, sem um movimento
como que encerrado em gelo no ar transparente
com a impotência dos estandartes e o mudo grito
das trombetas.
Uma porta abre-se lentamente.
E eu passo a mão pelo rosto
perguntando-me, buscando confuso uma esquecida
recordação
como se tudo me tivesse acontecido antes.
Løft min krone, vind fra intet, 1956
UMA CONCHA A NOSSA CASA
I
Desenho as tuas sobrancelhas com o dedo
e as teus finos zigomas. Quanta presença tua aqui!
Levanto os teus seis retirando-os da obscuridade
e a sua canção de amplitude de planetas estranhos
sussurra no meu rosto.
Levanto do mar as brancas praias dos teus quadris
resplandecentes à luz da lua.
A tua pele contra a minha
as pulsações do coração contra os meus – quanta presença tua
aqui!
quanta presença minha!, sou eu, sou real
E juntos nos alongamos para uma realidade maior
balançando-nos neste eu-tu-nós, como num barco sobre as ondas
onde tudo é encontro, tudo é espelho contra espelho, luz contra luz.
II
Arcos, vertiginosos até ao espaço: uma concha a nossa casa –
nós não dormimos, não velamos, simplesmente esperamos
num branco quebra-mar da praia. O sussurro dos nossos poços
de distantes recordações abre-se a sussurros de tons elevados
Oh tu que existes, como música no espaço existes
e que esperas, esperas como nós
até que as coroas denteadas da concha se soltem
lentamente à nossa volta e a forma da nossa franqueza
fique nua, tremulamente liberta
Que abertos estamos, que abertos todos os lugares aqui!
neste encontro com um tu, tão sem limites todos os lugares tudo –
enquanto passam árvores de azul nocturno zumbindo através de
nós
Oh, mantemo-nos ainda na profunda rede
como fosforescências sobre a escura dança das ondas
em ar e terra e céu. Detém
a nossa fuga para trás –
ainda, ainda
até que nós simplesmente voltemos a velar ou a dormir.
Løft min krone, vind fra intet, 1956
ONDE SE PERDEM TODOS OS CAMINHOS
O homem que assassinou terça-feira
era um assassino na segunda?
E se desperta quarta-feira em frente a uma janela cinzenta
e a névoa vagueia solitária através dela
quem é agora?
o homem de ontem?
quando a pedra levantou a sua mão para golpear
ou o que era anteontem
quem
quando foi anteontem
Recorda ele a luz da lâmpada do piano
e as mãos sobre as teclas
sim, Händel.
E uma pesada pedra cinzenta, crocante
Olha fixamente para dentro
onde velhos pontos de referência se dissolvem na névoa
modificam a sua forma e mudam de sítio
E ele olha essas mãos
de quem são!
uma pedra que elas lançam a um pontão
ou Händel, Händel
que se levantou do piano
sem o olhar
deixa que a porta volte a fechar-se
E só restam as mãos
usadas emprestadas
Como cães da rua estão
por lá a uivar num pântano deserto
até quinta, sexta-feira
Roerne fra Itaka, 1960
A SITUAÇÃO
A situação experimentou uma mudança que está carregada de
orgias sexuais e bebedeiras entre crianças de 12 anos negras recebidas
com clavas e chicotes eléctricos para vacas só os que
crêem em Deus podem obter a nacionalidade canadense
Era uma manhã exactamente igual às outras e acordei
com a mesma sensação com que sempre acordo que
alguma coisa se extraviou não sei a minha mulher preparou
um desjejum eu desci para recolher o jornal coloquei-o
sobre os joelhos e pus-me a barbear-me disse bzzz
À merda a ONU grita Sukarno deixou
o cadáver na vala os pequenos diabos se chama
esta secção dos académicos chineses duas crianças encontradas
mortas após uma invasão de arruaceiros monge budista pega fogo
Que dizes estou a ler o jornal não não te ouço
estou a barbear-me faz bzzz já o sabes alguém está
metido no som encerrado no bzzz poderiam fazer explodir
uma bomba de hidrogénio fazer uma chamada interurbana mas não
estava ninguém eu estou em bzzz como nessa vez que saí de viagem só
e duas garrafas de bolso de whisky compradas no avião e eu
abracei-as estava só e bebi até entrar em bzzz
um quarto fechado mas sem paredes as paredes eram como
se fossem eu também Eram mamã? era bzzz
Todavia há muitas lâmpadas feitas de pele humana na
Alemanha Vaporizador bocal com válvula de dosagem de alento
fresco os soldados sul vietnamitas que interrogam prisioneiros sabem
que manter-lhes a cabeça debaixo de água é o que espera
o mundo livre.
Soprei os pêlos da máquina de barbear eléctrica
e subi a persiana e fora a manhã
estava estupenda era Fevereiro tão claro e azul escuro
como vinho! Oh meninos meninos! tinha querido gritar
mas tolhi-me como uma grávida tenho que vomitar
antes do pequeno-almoço e à merda o pior é naturalmente
despertar pensei e vesti-me e sentei-me
à mesa do desjejum estendi o jornal porque só ia
a meio ler Silêncio rapazes disse
O que vedes à vossa esquerda é uma cebola radioactiva
Det skjeve smil I rosa, 1965
ECCE HOMO
Ecce Homo, recitou o poeta
decorativamente apoiado no piano de cauda
Vi o meu rosto
reflectido numa colher de sopa
Uff
Aparta de mim este cálice
Det skjeve smil I rosa, 1965
COMO NUM CINEMA
Como num cinema, mas sem
que eu mesmo saiba como cheguei
aqui, e a meio da projecção
De que se trata? chiu
Mas como se chama o filme? chiu
E o arrumador acende a lanterna,
dirige-a para mim, esquadrinha-me
Mas por que não se senta? Que se passa
com estas maletas?
São minhas. Chiu, empurra-me
Está bêbado? Esteja
quieto, se não terá que sair
E distante está a recordação de que uma vez
protestei? não gritei? pateei
Pouco lembro, apenas que tropeço a subir
a escada com números que brilham
verdes até à Saída (vermelha)
e do medo. Do ecrã que está atrás de mim
vozes metálicas gritam como através de uma trombeta
sussurram como se fossem guinchos irregulares
e rodeadas de uma trevas sepulcrais
só as cabeças, tão brancas
que somente sobressaem dos apoios da cadeiras
e quando lhes falo
Chiu! Impelem
Saio de cabeça pela porta
mas só para entrar noutro cinema, idêntico
e com o mesmo filme
Projectam a película para a frente e para trás
Chiu. E o arrumador e o mais repete-se
outra vez, subir as escadas
sair outra vez, mas sempre apenas para voltar a entrar.
Det skjeve smil I rosa, 1965
Versão minha - © Amadeu Baptista
Paal Brekke. Nasceu em Røros, a 17 de Setembro de 1923. Esteve refugiado na Suécia durante a ocupação alemã. Estudou na Universidade de Upsala. Romancista, jornalista e crítico literário. Estreou-se como poeta na Suécia e está considerado o pioneiro do modernismo poético norueguês. Traduziu Eliot e Ezra Pound. Faleceu em 1993.
No conocía al autor ni su poesía pero las versiones que haces me parecen bellísimas.
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