INSCRIÇÃO NUMA PEDRA
«Converto-me em pedra e a minha dor permanece.»
Traduzir. Mas, para que idioma? E como?
Pedem-me que traduza. Algo pede para ser traduzido,
como se não estivesse já escrito. Há outras palavras?
Tudo está já escrito. E com a mesma escrita.
En resa till jordens medelpunkt och andra dikter, 1966
POEMA SOBRE O REVISIONISMO
Mosca incerta
fechada num expresso nocturno
trata no entanto de voar
e descobre que pode continuar a fazê-lo perfeitamente
Quando chega do extremo sul do vagão ao norte
já é uma mosca muito mais inteligente
e o comboio afundando-se cada vez mais veloz na noite
Varma rum och kalla, 1972
SOBRE O BOM GOVERNO
As pedras do moinho moem; quando se acaba a moenda
começam a polir-se mutuamente, implacavelmente,
com um rechinante som que é difícil suportar.
Tem que haver um enigma, sempre tem que haver
alguma coisa que caiba entre as pedras. E ainda melhor
se está lá sem que se mencione o seu nome.
Nas cidades cada vez mais atarefadas, tarde na noite,
ressoam entre superfícies de azulejo ou de metal leve
gritos de raiva ou desespero, o ruído rechinante
da pedra quando resvala nua contra outra pedra,
e alguém parte com as suas mãos uma porta de vidro,
de modo que os estilhaços riem alegremente pelo chão
embora o chão permaneça igual, casas brancas e negras, pelo outro lado.
Um dos lados é só a imagem do outro.
Quando o moinho se mói a si mesmo ouve-se claramente o ruído,
distante estrépito, uma tempestade de pedra aproxima-se,
rajadas de ar podre e pó de pedra percorrem as divisões
num mundo subterrâneo onde voa um pássaro recluso
por labirintos de túneis baixos, sem dia nem noite.
Lá onde não há governo, não tem saída o pássaro,
lá onde não há Enigma, existe no seu lugar o Poder.
E reflecte todos os sons em paredes demasiado brilhantes.
O bom governo dá-nos boas estradas, burros e camelos
puxam com paciência e sem cansar-se, ao meio-dia
também, carruagens pesadas com rodas revestidas de ferro
sobre o amarelo cereal dos caminhos, ordenado, à sombra,
precisamente onde passam os carros, para que o separem as rodas.
O bom governo proporciona bons regadios, canais,
por onde a água flui rápida e transparente,
sobre pedras unidas artisticamente, sem algas,
poços profundos onde as grandes carpas brancas
que já não aparecem, se escondem nas trevas
e de novo se vêem lançadas à sua sensatez
quando alguma vez são içadas para o balde. O bom governo
permite que as carpas continuem a viver nos poços, as andorinhas
sob os beirais, os camponeses junto aos seus campos,
os velhos lenhadores nos bosques, os livros
continuam impunemente nas estantes, e no bosque
ninguém castiga os cogumelos, um bom governo
mostra a sua boa vontade também para com essas plantas diferentes,
essas que surgem do subsolo, tacteando
com dedos brancos ou castanhos, guarda-chuvas enrugados,
cobertos de viscosidades ou secos e com aromático perfume,
com cabeças que são tenras membranas fetais,
e no entanto duras o bastante para perfurar o córtex da terra.
O filósofo Mo Ti via o governo como uma geometria,
um desenho de campos em volta de cada poço,
terra comum, a terra privada, a terra dos governantes
os campos dos soldados e dos juízes, a totalidade
organizada num conjunto em equilíbrio natural,
sob os longos e flamejantes estandartes de seda,
adornados de dragões que movem as suas asas
quando chega o vento. Mo Ti era um bobo, esqueçam-no!,
Onde há um modelo há apenas vazio.
Sabemo-lo agora. Sabemos que o Enigma cresce em nós
e surge quebrando lentamente o córtex da terra,
como os tenros e estranhos cogumelos no bosque.
Todas as portas se constroem para poderem fechar-se.
Todas as portas se constroem para poderem abrir-se.
Quem fecha? Quem abre? Quem pergunta?
Todo o bom governo começa no eu, nas trevas,
no enigma que há em cada ser humano.
Estende-se da obscuridade do poço,
onde não pode ver nem ouvir nada,
até ao horizonte, e sabe que segue os navios.
Sabe que não sabe nada. Assim governa o Enigma:
Aqueles que não estejam dispostos ao maior respeito a si mesmos
não podem ter tolerância com os demais.
Bodin viu o sangrento caos das guerras religiosas europeias,
e elegeu, voltando a rosto para não ver, o absolutismo:
Melhor, dizia, um verdugo, um machado, um sentença
do que horizonte por onde vagueie o fumo dos incêndios,
como quer o vento, mas esqueceu-se do mais importante:
Que nunca poderemos dar o que nunca foi nosso.
Não somos nós que queremos a liberdade. Há algo,
escuro e surpreendente, em nós, que a quer
e a quer mais quando menos o esperamos. Chega
sempre inoportunamente. Algo escuro e impreciso
que existe em nós quer ser sempre outra coisa.
O ser humano. A peça que não encaixa
em nenhum quebra-cabeças. Sobretudo não no próprio.
E nisso que consiste a liberdade:
que algo em nós sempre quer outra coisa.
O bom governo é o que nos esqueceu.
Encerrados neste doce esquecimento
crescemos como crescem os cogumelos;
com humildade e sem limites, profundamente
sobre as caladas sombras das árvores.
N. do T. Mo Ti: filósofo chinês (472-391 a.c.) cuja doutrina, baseada no amor universal, desafiou, durante baste tempo, o Confucionismo; Bopin (Jean): destacado intelectual francês do séc. XVI.
Artesiska brunnar cartesianska drömmar, 1980
PÁTRIA
Andrea Mantegna pintou na Camera degli Sposi
em Mântua a origem e a glória da família Gonzaga.
No canto inferior esquerdo do quadro,
conduzidos por um afável jardineiro,
dois adustos cães, dogues alemães,
do pesado tipo que se introduziu então em Itália.
A rígida coleira com os seus cravos forjados,
as orelhas ansiosamente afiladas,
esses focinhos a um tempo nobres e gananciosos,
Isso, é a Europa. É a minha pátria.
Världens tystnad före Bach, 1982
Excursão de bicicleta durante a tarde:
A oeste levantam-se nuvens de temporal
e de repente começa a florescer o sabugueiro.
Oh, filha minha
nos meus verãos tive tantas aventuras
que nunca se realizaram,
entrego-tas a ti.
A ti dou este vento
em que os lilases mudam de aroma perante a tempestade
a ti dou estas encruzilhadas de caminhos
pelas quais nunca me aventurei
Sobre tudo isto cai agora uma suave luz,
a suave luz da distracção, da excentricidade.
Oh filha minha
é bom não fingir tanta tristeza
tão pouco fingir tanto medo como eu uma vez.
É bom não fingir tanto.
É bom andar sempre de bicicleta
envolta no suave vento do mês de junho,
no aroma dos lilases,
também quando o inverno estender os seus gelos.
É bom estar sempre a caminho.
Världens tystnad före Bach, 1982
Passadas as quinze primeiras páginas do meu conto
dou de caras com
o que as Notícias costumam chamar
«enérgica resistência».
Bem entrado na paisagem da minha narrativa
há alguém que resiste
que não quer ver o seu torrão natal assolado
por estes destacamentos de palavras.
Quem é?
Não sei.
Tem que morrer para que viva a minha narração?
Nisso creio.
Tem direito a defender-se?
Claro que sim.
E amanhã eu continuarei
na página que com tanto valor ele hoje defendeu.
Ingressando
cada vez mais dentro
e isto não tem fim.
Världens tystnad före Bach, 1982
A ENGUIA E O POÇO
Na velha Escânia havia um costume:
Nos negros e profundos poços
deitavam crias de enguias marinhas.
Essas enguias ficavam toda a sua vida
cativas nas trevas dos profundos poços.
Mantêm a água limpa e cristalina.
Quando alguma vez sobe a enguia do poço,
branca, horrorosamente grande, capturada no balde,
cega, retorcendo-se, entrando e saindo
do mistério do seu corpo, sem saber, inconsciente,
todos se apressam a deitá-la de novo à água.
Frequentemente creio estar
não só no lugar da enguia do poço,
mas ser o poço e a enguia à vez.
Prisioneiro em mim mesmo, mas esse eu
é já algo diferente. Estou lá.
E lavo-o com a minha serpenteante,
lamacenta, esbranquiçada presença nas trevas.
Världens tystnad före Bach, 1982
Versão minha - © Amadeu Baptista
Foto - © Amadeu Baptista
Lars Gustafsson. Nasceu em Västerås, a 17 de Maio de 1936. Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Upsala. Além de poesia, escreve também contos e romance.
O seu trabalho como crítico literário, na revista BLM, teve grande importância para os escritores da sua geração. É professor na Universidade de Austin (E.U.A.). Foi galardoado com o prémio Carl Emil Englund.