Tiago Nené, poeta convidado
3 POEMAS
COMUNICAÇÃO
pões uma pausa à volta de cada palavra.
em cada pausa circular colocas uma porta.
convidas outras palavras para irem ao encontro
dessa pausa, dessa porta.
cada palavra tem, então, dentro de si
outras palavras.
ninguém sabe. mais tarde, pões uma distância
à volta de cada palavra.
algures a meio, colocas uma janela. desafias
outras palavras para taparem essa janela
com os seus significados mais primitivos, de modo
a se não permitir a interrupção dessa distância.
ao longe ninguém dará por isso.
erradicas do teu vocabulário a palavra
«nomeadamente».
sabes que os poemas secundam a vida
e por vezes vão para além dela.
mais tarde, comunicas com o teu amor
mais distante.
envias uma carta. telefonas. mandas mail.
és experiente e superior porque te soubeste
condicionar de múltiplas maneiras.
sabes que o amor é a menor distância possível
entre dois seres vivos.
in 100 poemas para Albano Martins, 2010
O TERRAMOTO
[a uma pessoa intemporal]
querida joana, o terramoto apanhou pessoas que faziam amor,
pessoas que morriam de uma causa lenta e dolorosa,
pessoas que celebravam contratos com apertos de mão,
pessoas com instrumentos na terra fértil,
pessoas que faziam de conta, pessoas sem relógio.
os que faziam amor perpetuaram-no, os que morriam
viram a sua morte impedida por uma colectiva e mais bem aceite,
os que celebravam contratos perderam as mãos coladas,
os que trabalhavam na terra fértil foram soterrados,
os que faziam de conta procuraram cumprir uma promessa,
os que não tinham relógio escaparam ao tempo.
meu amor, sermos egoístas é tentar impedir que as coisas mudem,
sermos intensos é não respeitar causas e efeitos,
espero-te no meu futuro, ainda que ele não seja
o efeito directo de um presente que ainda treme muito.
in Polishop, 2010
O BOM POETA
a António Ramos Rosa
o poeta inventa um leitor abstracto,
a sua extensão lível.
o poeta não consegue ler os seus poemas,
o bom poeta apenas escreve os seus poemas;
escrever poemas sem ler os poemas que se escreve
é perfeitamente possível
se o poeta estiver demasiado perto de cada palavra.
o grande poeta dorme dentro de cada palavra,
e eu não me conheço quando escrevo isto.
dentro de que palavra estarei?
que sílaba servirá de travesseiro aos meus sonhos?
creio que as primeiras palavras que escrevi
diziam que o poeta inventa um leitor abstracto,
não me lembro da versificação certa.
não importa.
apenas exponho permissões em cada sentimento,
e é isto o poema:
um grande sentimento amplificando
a inconfundível prosa de toda a vida.
in Relevo Móbil num Coração de Tempo, 2012
Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
Poemas: Tiago Nené
Tiago Nené é um poeta da nova geração nascido em Tavira a 29 de Março de 1982. Publicou “Versos Nus” em 2007, “Polishop” em 2010, e “Relevo Móbil Num Coração de Tempo” em 2012. Está representado em variadas revistas, jornais e antologias literárias entre as quais se incluem “Os Dias do Amor” (ed: Ministério dos Livros, 2009), “Cem Poemas para Albano Martins” (ed: Labirinto 2012) e “Algarve – 12 Poetas a Sul do Século XXI” (ed: Livros Capital, 2012). Tem também traduzido livros de poesia em língua espanhola na colecção Palavra Ibérica (ed: Ayuntamiento de Punta Umbria) e nas chancelas da Linguagem de Cálculo, associação cultural que dirige com o escritor Fernando Esteves Pinto. Licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, é advogado em Faro, cidade onde reside. Alguma da sua poesia pode ser lida no blogue pessoal: tiagonene.blogs.sapo.pt
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