segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Joaquim Cardoso Dias


Joaquim Cardoso Dias, poeta convidado



Notícia para uma carta de José Agostinho Baptista

3.
Estou a pensar nos amigos que amei e
lembrei-me que a poesia não é feita de
palavras, mas
da cólera de não sermos deuses. Por isso,
falo do perigo de escrever
para encontrar o segredo dessas palavras.
E escrever é sempre aquele desejo demasiado
inocente. Às vezes,
fazia-me falta o mar
e a sabedoria das lâmpadas que despem
as cidades
e que enlouquecem esta profecia. Mas eu
digo
escrevo
oiço
com a certeza de que o amor absoluto é
ao mesmo tempo necessário
e impossível. Como a amizade.
Sei-o há muito tempo.
Lembro-me do milagre de curar uma mentira
com este mar por detrás dos vidros da janela
ao longe
descendo
na inquietação dos dias
neste exacto momento,
como um filme,
o barulho do mar é uma noite infindável
erguida do sono e cega pela escuridão.
Hoje a chuva é um segredo que o meu corpo
guarda para o meu corpo
depois
do lume dos pássaros e dos gritos desiguais
das crianças no pátio da escola.
Hoje ainda nada sei da trovoada ou dos anjos
caídos
devagar
e eu não tenho culpa. Eu
poderia até construir uma casa
numa árvore grande e depois ficar no céu
a pensar para ter coragem de dizer tudo isto
assim
à flor da boca entre a Rua dos Caminhos de Ferro
e o Arco das Portas do Mar
à mesa de café em Santa Apolónia entre tantas partidas
e chegadas e sentir o olhar a cada instante
como um girassol na inclinação dos mastros,
um perfil doce e triste em mármore branco
movendo-se com a velocidade de uma doença fixa,
torturado em ouro com mãos que matam
a minha alma nómada.



Primeira Parte

Nesta página recomeço a partir de muito pouco.
Pergunto-me
como foi possível um livro
sonhar numa gaveta desarrumada,
no interior dos dias
sem ninguém,
como se simples fosse o modo de
ir para longe,
o silvo dos comboios,
a música do mar,
o rasto dos aviões à volta de
uma ilha
e as mãos tristes
completamente sós.
Pergunto-me para que serve a infância
e os hábitos que nos aproximam uns dos outros,
esses significados sem defesa possível
a trair a vida
toda,
os degraus da frente da casa como uma
palavra justa
demasiado perto
de tantos nomes imóveis
(a inocência
ou este perigo)
e olhando nos olhos uns dos outros,
quase
com as mãos nos bolsos,
podemos viver
com água nos pulmões,
e dizer que à força da respiração
escrever
é como viajar à boleia,
procurar este trabalho onde
fulguram os pêlos da nossa masculina morte
e continuarmos outra vez
inertes a um vício sincero
de esconder o peso da boca
em redor da cabeça
ao fundo da rua que
mediu o mundo,
que é todo assim
por baixo do fogo,
no fundo do mar
e dos números nos cascos dos navios,
e das paredes do quarto
à deriva.






Registo horizontal

Querido amigo,
A distância dos braços é também
uma asa mordida sobre a pele
na primeira casa em que nascemos.
Eu escrevo livros para pulsar
no mundo,
para a felicidade de todos ser mais diferente
e nunca mais acontecer.
Ontem reconheci o mar rente à janela
e as cidades envolvidas pelo nevoeiro,
a alma que a luz em luminosa sombra
rouba sinais e desejos.
Por mim,
nunca saberei dessa palavra

que ergue o nome
do que não vem mais.
E a minha casa,
digo-te agora,
a minha casa é onde tu
estás. Além-mar.
Não esqueças.
Adeus.
Abraço-te muito.




                Joaquim Cardoso Dias nasceu num mês de Junho em Castelo Branco e vive em Lisboa. É licenciado em Sociologia e não entende para que serve ser licenciado neste país e num tempo assim. Publicou livros de poemas e muitos poemas em antologias, revistas e jornais (em Portugal e no estrangeiro). Gosta de fotografia e já expôs fotografia e publicou fotografias em tantos "lugares" que nem se lembra bem de todos.



Fotos (que ilustram os poemas): © de Amadeu Baptista; Poemas: © de Joaquim Cardoso Dias

2 comentários:

  1. Gosto muito das palavras de Joaquim Cardoso Dias!!
    "a minha casa é onde tu
    estás." (JCD)

    Obrigada!!

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  2. Já conhecia uns dois poemas deste poeta. Gostei muito de mais estes.Obrigada.

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