DOIS MIL E OITO
Sou um homem do norte e um homem do norte
continuarei a ser até que a morte me separe.
As minhas circunstâncias são exactamente
as mesmas circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas
a granito, os vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a que possam
subir para começar uma aventura
que não tenha fim. Na minha memória
o que está mais marcadamente aceso
tem a ver com o mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo choques inimagináveis,
com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia permanente por não haver
o que dar de comer a velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir para os braços de alguém
que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,
como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para celebrar.
A vida era dura nesse tempo,
que eu fui vigiando quase por instinto,
fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro, consolidam, sem mais,
o que passaram a saber, porque o sofreram.
A vida era dura nesse tempo, sobretudo
para quem me estava próximo
e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em estoicismo feroz,
capaz, se necessário, de abalar montanhas.
Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,
andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos meus progenitores.
Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum
– por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo
ou o alento que alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a infância, a minha infância,
me entregou ao duro acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.
E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para me dar,
além da sua eterna progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu encantamento.
Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado, falava-me das flores – as brancas, as vermelhas –,
falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não, a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi que há,
entre os vários planos em que existimos,
outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho ao desacato
das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva pela vida circundante.
Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba e exaltante,
tanto mais que sempre quis ser poeta,
e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção vier e a deslembrança
tiver que ser a última recompensa.
Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,
a constatar como na alma os passos se abismam
se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi que a enxertia resultava
em algo mais sensível do que alguma vez supus,
sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita e bravia,
se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em multidões inúmeras,
com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,
e das palavras tomei o que podia para encontrar
o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa e obscura,
que sabemos e não sabemos como existe,
mas sentimos na alma e no espírito,
e nos enche o olhar como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não, interessa pouco.
O que escrevo é só um tempo breve,
em que os mortos e os vivos se procuram
para que haja testemunho e não seja longa a espera
do fim que há
em tudo. Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça o que é o norte,
e onde fica.
(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
Foto: © de Amadeu Baptista