sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Tatiana Faia


Tatiana Faia, poeta convidada



Dois poemas inéditos:


sibila

facilis descensus Averno;
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed revocare gradum superasque evadere ad auras,
hoc opus, hic labor est.
Vergílio, Eneida 6

o desconforto dos ombros
contra a porta 
os óculos partidos no chão
as coisas tornam-se às vezes
a noite que as contém
não emergem 
em perfeita corola 
branco sorriso
mas quebradas 
a beleza mais difícil
é a que fica imperfeita
sugerida apenas
no momento em que um gesto
a desfaz e a leva para longe
essa teimosia condenada
ao fracasso

a canção dele atravessa-te
por fim pelo cansaço
a visão do céu em plena tarde
está fora do teu desconforto
uma cor que não sirva
para falar de ti

voltas-te contra a janela
inclinas o corpo para a rua
o final de julho
desce lentamente 
sem lâminas
e está nas pedras
que compõem 
o desenho no chão
há uma precisão nas palavras
que te ensinou primordialmente a ver
talvez seja esta a tua justificação
 
sobre isso
outros te contaram histórias no escuro
quase que te sentes grato 
por esses efémeros seixos
guardados nos bolsos
em jeito de armas de defesa
mas que de nada
te têm trazido a salvo

essas palavras que te escolheram
e que pululam pela solidão 
algumas voltam mais tarde
perfuraram-te 
ou
quase distraídas
afastadas do seu centro
estabelecem uma medida
para o que fica em volta

ou foram 
a energia no momento 
em
que pára:
vergílio 
ao escrever
ibant obscuri
sola sub nocte 
per umbram

assim
um verso perfeito
para dizer que eneias
desceu ao inferno
levado pela mão
de uma rapariga
cumas
um lugar dito por uma mímica 
de pontos ardendo na noite
e o rumor do mar preso às folhas

reconstruir a partir dos estilhaços
o caminho de volta
como dizias
o amor que tens a essa teimosia
fracassada
assim dirás apenas 
que foste deixado 
para uma imagem imperfeita 
e o som com que essas palavras te dizem
distrai-te 
nas horas 
de soturnos dormitórios
na solidão de longas viagens
em salas de espera

trouxeram-te de volta
até este desconforto mínimo
de ombros contra a porta
a canção da sibila
fica fora do círculo
sons que se articulam
num eco que recua 
e se prende longe no tempo
convoca apenas
um rosto debruçado sobre o teu rosto
isso que talvez não exista
ou exista muito pouco
uma ternura que não fala de nós
uma ternura que nos salva
sem absolvição







pequenas ilhas

A lei que sou
Não me submeterá
Odysséas Elytis, Maria Neféli

poucas moedas
num bolso que se rasgou 
ruas que se explicadas
de verdade se tornam
máquinas 
imprecisos
instrumentos
que agora
deviam servir
alguma espécie de cálculo

de verdade ruas 
que são novelos desfeitos 
dédalos amarrados
a fios de sol subindo
até aos vidros das janelas
mais altas os braços
sobre os seus caixilhos
respirando sobre elas
por entre os dedos
um toque de veludo

deixaste a bicicleta 
entornada no chão
a corrente desengatada
pendendo entre os pedais
entre chuva e rumores de vento
fechas-te na cabine
os sapatos contra os aros vermelhos
da porta
o vento assobiando 
a última nota a colher:
o telefone
em suspenso
sobre a cabeça

agachas-te 
tapas de novo os ouvidos
fechas os olhos
cerrados cerzidos
completamente noite 
aquilo que de verdade és
não volta à casa de partida
esconde-se intermitente
é uma sirene rodopiando
no vento vem 
com passos de gato de telhado 
pela calada da noite
matéria insone
incandesce
sobe por entre cinza

não está para lá
desse vício
pequeno lambda
escrito
com um pauzinho ridículo
contra o bojo imenso
do mar 
nada nenhuma palavra
se pode fixar em água

nem tu pairas acima
da tentação das falésias
flor rodopiando tonta
e purpúrea
contra a porta 
mal fechada 
em que outubro pousa a cabeça
a sua mão contra a tua
através do vidro 
podes adivinhar
repetir o tempo
e não podes dizer essa hora

clássica
onde te corta
rasurando-te de areia 
e tu tornas a cair na armadilha
o tracejado amarelo 
limitando 
o asfalto contra os passeios

há sempre uma linha
por atravessar
a tentação de uma linha por atravessar
talvez por isso 
a lei que és não te submeta
não totalmente
não para já
mais tarde sim
inevitavelmente
há-de encontrar-te mais tarde

o teu rosto
um pouco erguido
tentando ver por entre a neve
prolongando o tempo
na sua medida de coisa
sobre si fechada
tu 

agachado contra o chão
na cabine as últimas moedas
espalhando-se
tudo de novo contado 
também
a tua história

e podes emergir 
tentar 
funâmbulo
cantar acima da destruição
passar de um ponto
a outro do muito alto
sem cair
sem o golpe da vertigem

cantar mesmo
porque mais nada fica
acima da destruição
excepto
isso

essas vozes 
somando-se 
a melhor metáfora
para poema é ainda esse tom de luz
ela
arrastando consigo tudo
num modo de suspender
o silêncio
o medo 
as pequenas ilhas
que o mar cortou 
de terra 
os lugares para onde não podemos passar





Tatiana Faia (1986) é editora, em conjunto com André Simões e J. P. Moreira, da revista Ítaca, Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (n.º3, Junho de 2011). Nos últimos tempos tem colaborado dispersamente com outras revistas (Modo de Usar & Co., A Sul de Nenhum Norte). Está prestes a publicar o seu primeiro livro (Lugano, Edições Artefacto, Out. de 2011). Prepara uma dissertação de Doutoramento em Literatura Grega. 

Fotos (a ilustrar os poemas) © de Amadeu Baptista; Poemas: © de Tatiana Faia

2 comentários:

  1. Meu deus, estoy fascinada con estos poemas, no se como expresar gratitud suficiente para usted por compartir esta maravilla.

    Muito obrigada =)

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  2. gostei muito dos poemas de Tatiana Faia (que desconhecia) que aqui nos deixou. obrigada e um abraço para si.

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