quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vida adulta / 25

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E OITO

Após a curva em cotovelo, a subida
íngreme.

Passo quase sem ver,
a estugar o passo.

A forte brisa levanta
os detritos de sempre,
embalagens perdidas,
jornais velhos,
preservativos usados,
a moral de soslaio sob as gelosias,
as mulheres no passeio,
na contraluz
da noite.

Aqui e ali, pequenos restaurantes,
um homem a urinar contra o muro,
as aves a dormir,
o surto de roedores a espiar
não exactamente a loja de conveniência,
mas quem entra,
quem sai,
quem pode enredar-se nas malhas
do engate ou ser, apenas,
vítima de um furto
menor.

De repente, o vulto.

O mesmo
de ontem, hoje,
a proteger com as mãos
a chama do zippo prateado,
o rosto suspeitíssimo.

À minha frente, caminha, devagar.

Reconheço-o como a alguém irreconhecível,
o promitente comprador da minha alma,
a assobiar baixinho,
para o lado,
para cima,
como se não fosse crime passar com esta luz
pela danação antiga
e gritar-me,

quando menos espero,

a bolsa,
a vida.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

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