MIL NOVECENTOS E NOVENTA E OITO
Após a curva em cotovelo, a subida
íngreme.
Passo quase sem ver,
a estugar o passo.
A forte brisa levanta
os detritos de sempre,
embalagens perdidas,
jornais velhos,
preservativos usados,
a moral de soslaio sob as gelosias,
as mulheres no passeio,
na contraluz
da noite.
Aqui e ali, pequenos restaurantes,
um homem a urinar contra o muro,
as aves a dormir,
o surto de roedores a espiar
não exactamente a loja de conveniência,
mas quem entra,
quem sai,
quem pode enredar-se nas malhas
do engate ou ser, apenas,
vítima de um furto
menor.
De repente, o vulto.
O mesmo
de ontem, hoje,
a proteger com as mãos
a chama do zippo prateado,
o rosto suspeitíssimo.
À minha frente, caminha, devagar.
Reconheço-o como a alguém irreconhecível,
o promitente comprador da minha alma,
a assobiar baixinho,
para o lado,
para cima,
como se não fosse crime passar com esta luz
pela danação antiga
e gritar-me,
quando menos espero,
a bolsa,
a vida.
( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
Foto: © de Amadeu Baptista
por entre os detritos humanos... gostei muito, Poeta.
ResponderEliminarabraço.