POEMAS DE GÖRAN SONNEVI
Fora das janelas, atrás do televisor
mudou a luz. A escuridão
fez-se cinzenta e as árvores destacavam
os negros na clara luz cinzenta
da neve recém caída. De manhã
tudo estava nevado. Saio
para a limpeza após a tempestade.
Ouço no rádio que os Estados Unidos
publicaram um livro branco
sobre a guerra do Vietnam
em que se acusa o Vietnam do Norte
de agressão. À noite na televisão
vimos um documentário feito
na zona do Vietcong, ouvimos
o surdo levantar
dos helicópteros
do solo e o bando
dos metralhados. Há um par de semanas
noutro filme
a CBS entrevistou alguns pilotos
de helicóptero norte-americanos. Um deles
descreveu o seu orgasmo
quando por fim abateu
um Vietcong: os explosivos
atiraram-no pelo ar
para a frente, uns três metros. Seguramente
hoje nevará mais,
disse o meu vizinho, que, vestido de negro,
vai para o seu trabalho. Ele
embalsama cadáveres e é enfermeiro de noite
num manicómio. O lugar onde vivo – Lund
e arredores – vai-se transformando num livro
cada vez mais branco. Aparece o sol e brilha
com um frio ardente na páginas amplas.
Os mortos são números que descansam, revoluteiam
como cristais no vento da planície. Até agora
calcula-se que tenham morrido mais de dois milhões no Vietnam.
Aqui não morre ninguém
senão por motivos pessoais. A economia
sueca na actualidade não mata
muita gente, em todo o caso
não aqui, na nossa pátria. Ninguém faz
a guerra no nosso país para defender
os seus interesses. Ninguém
nos queima com napalm.
O sol vai subindo até ao seu meio-dia.
Estamos em março de 1965.
Morre cada dia mais gente na suja guerra dos Estados Unidos.
Na foto do presidente Johnson
aquando dos últimos bombardeamentos
ao Vietnam do Norte – ele saía
de um automóvel ou entrava, não sei –
caem os flocos de neve
intensamente sobre as brancas páginas.
Mais mortos, mais justificações,
até que tudo fica coberto de neve
na noite que definitivamente
muda luz lá fora, atrás das janelas.
ingrepp-modeller, 1965
UMA MÃE…
Uma mãe está diante do edifício inacabado
de uma central nuclear
Leva o filho como protecção
contra as raivosas imagens dentro do
seu corpo
Fora o mar é cinzento
a terra cinzenta,
o filho dentro tudo
é cinzento
A mãe cinzenta, em espera
da lenta
invisível dor
***
Alguns exigem-nos um conhecimento exacto do
Desconhecido. Um conhecimento
que eles mesmos não têm
O que sabemos com segurança
é que eles não sabem
Este é um conhecimento exacto
Sabemos com exactidão que o nosso futuro
nunca poderá ser mais que
uma série de aproximações, uma séria de probabilidades
Mas que as nossas vidas no futuro
sejam completamente exactas, completamente
dependentes de
erros irremediáveis nos
cálculos, erros
irreparáveis na construção biológica
das nossas vidas futuras
Este é uma espécie de conhecimento exacto
***
Temos poder na nossa mão para tocar
toda a humanidade
à distância
Distância também no tempo
para o futuro, tocar
os não nascidos,
os corpos
ainda não concebidos
E não sabemos
o que sabemos
mas não por isso nos vão
perdoar Ninguém.
***
Estamos todos como uma mãe
perante o filho desconhecido, aquele
de que nós
não sabíamos nada
Vemo-lo a morrer por todos
Não pode morrer
As séries de crianças inacabadas
Estarão também como uma mãe
à espera de
uma outra criança desconhecida.
Del omöjliga, 1975
A imagem das cabeças cortadas
sobre o brilhante papel da revista
um trevo de quatro folhas
contrapostas, as cabeças de Rimbaud
descansando, sanguinolentas
É
a imagem do terror, desta
vez de S. salvador
no ano da rebelião aberta
1981 Isto
Encurta a linha
Abreviatura
extrema é esta imagem de
uma cabeça mais curta, uma
razão mais curta, um
coração mais curto
Somos mais
Små klanger en röst, 1985
Isto é loucura Isto
é
dar-se por vencido de antemão, num
desfrute da aniquilação. Deixai-me
olhar isto também cara a cara, parte
do processo Tão
pouco a vergonha pode
ser completa
Destruído, toco
o teu coração
Pulsamos então
numa dupla pulsação, numa mútua
destruição
Pediste-me que visse a tua
pobreza Pedi que
viesses que eu não sabia
nada Os restos da
linguagem destruída
movem-se dentro de mim
Só existe este
movimento, aqui. Até à água. Para a vida
Små klanger en röst, 1985
EU NÃO QUERO
Eu não quero estar
em situação de superioridade em relação
a ninguém
e tão pouco de inferioridade
Porque é o limiar
da superioridade
Dikter utan ordning, 1985
ANO NOVO 1990
A luz do céu abre-se
É o sol
que sai, resplandece nos cristais da árvores
O sol inferior sai debaixo
de dentro do interior, da sua clara treva
É o mesmo sol, nós somos seus filhos
Quando se encontram os sóis nós já não existimos
Olho agora no tempo da nova luz O que espero
não sei, tão pouco quase sei
o que desejo Somos
feitos de utopias, todavia
ainda não nascidas, no real, resplandecentes na dupla luz
Os conflitos podem começar aqui, sem violência, simplesmente
nada retendo Tão
simples?
Não! Como o pudeste acreditar? Os conflitos existem no real
Também intrincados, e com violência oculta, também sob
o aberto Quando se
tira o aberto surge o oculto
Também deve desaparecer
Podemos falar uns com os outros
O canto é solitário, excepto na extrema voluntariedade, ou a
sua
Aproximação, porque também nós somos seres humanos Tu
ajudas agora a minha mãe a lavar a cabeça; alegra-me
Esse impulso de ternura
O não criado A
criança
Estamos no aberto; mas só enquanto não
está fechado, por fora ou por dentro Nós não decidimos
Não há libertação que possa ser controlada; nem sequer a
nossa
Dormimos um ao lado do outro, o sonho da primeira noite
Acreditei por instante ter compreendido algo mais
das estruturas da cegueira, em mi, fora de mim Logo
compreendi que não tinha compreendido Que não era
suficiente Como se a
cegueira escura
fosse sempre maior
Mas a luz vem então de dois lugares pelo menos
uma e outra vez, no seu movimento circular Recolhemo-la,
em novas voltas incessantes
Como calculamos não importa
Soma-se em nós, na integral de cada instante Como
vivemos juntos na realidade, com que cegueiras
com que visão Com
que espelhos que levantamos uns ante os outros
O sol inferior retorce-se em mim Estou tenso em torno do seu universo
Talvez haja palavras mais pequenas Olhei os rostos dos mortos,
uns sorriem na morte, e com os olhos abertos. O que antes
havia
era pior, aquela
utopia Como se pudéssemos eleger
Mas podemos, todos, também no sol comum Uma eleição livre?
Não! Nenhuma eleição
é livre, mas apesar disso podemos eleger
Se algo estiver aberto, ainda que por instantes, entre os
regimes
Todos estamos informados do que não existe, o instante
anterior ao real Mas
então temos que estar vivos Estamos na
luz solar aberta
Na sua torrente, e também debaixo, em todas as partes. Na
árvore
Trädet, 1991
Versão minha - © Amadeu Baptista
Göran
Sonnevi, nasceu a 3 de Outubro de 1939 em Lund, onde cursou Filosofia e Letras.
Inciou a sua actividade literária com a tradução para sueco de Ezra Pound e
estreou-se como poeta em 1961. O seu poema Sobre a guerra do Vietnam marcou o
início da explosão da poesia comprometida no seu país. Recebeu os prémios Carl
Emil Englund e Bellman.
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