MEMÓRIA DE EMILIO SALGARI SOBRE O SENTIDO DA MORTE
(para José Colaço Barreiros)
Está o mundo todo cheio de
electricidade e a neurastenia
vem a golpes de vento dizimar-nos.
O que se escreve
não é senão um modo de partir, tudo
nos chama
para longe, as perturbações, as
dúvidas, o soluço
que dentro do meu peito se amplia
até ao infinito
e não me deixa a paz suficiente
para tomar
das coisas a libertação que um dia
há-de chegar,
fatídica e estranha como o soberbo
furacão que assolou Génova
em 1899 e arrebatou o meu
deslumbramento.
A luz há-de ser sempre escassa,
assim como escassa é
a alegria nestes tempos de invulgar
desgaste e sacrifício
para quem trabalha, mal se bastando
de pão e de minestra
para enganar a fome e ter a ilusão
de que procede
de outras dores a vigília
prolongada e a tarefa
de ao universo acrescentar mais
universo.
Sento-me à pequena mesa
desmontável, bebo um gole
de marsala para dissipar o efémero,
e assim percorro
a confusão de papéis onde nunca me
debelo
para escrever o homem que quis ser.
Com os meus heróis
dou o corpo às balas e estou nos
confins de mim mesmo,
estou na Malásia, no Bornéu, em
Ceilão, na Cochinchina,
e confronto-me com os mil perigos
dos mil horizontes,
e todas as sombras se reúnem e
conjuram
para que seja avassaladora a
derrota e a derrota
seja a salvação enquanto esgrimo
com o destino
e os meus editores me roubam
por me pagarem
não mais que o pouco combinado, e
me enterneço
pela pequena labareda que nos olhos
de Ida ainda brilha,
sendo que ao nada sempre hei-de
voltar por este odor a chuva
no meu leito ou pelos meus filhos,
muito em breve, órfãos.
Temos que levar uma pá à frente de
nós
e, no final, é essa mesma pá que
nos sepulta:
nada mais é a morte do que este
trânsito
entre as pedras da terra e os
lugares
por onde nos perdemos, sejamos
capitães
ou cavaleiros, faça ou não faça
parte
a nossa arte da expiação possível.
Sucede que escrevi o quanto me
exauriu
e nunca houve dinheiro que
abundasse
para tanta copiosidade de romances.
Sucede que a felicidade não existe.
E que, a haver contentamento, só a
limpa
probidade me há-de atravessar
desde a nascença até ao
obscurecimento,
esconjurado que seja pelos numes.
Descem e sobem as águas, pelos
corredores solitários
da tristeza vou com os meus tigres,
será insípida a vida
se na mágoa não ranger os dentes,
vulgares e irreparáveis
todos somos, mas nas trincheiras de
Mompracem
tudo se aguenta, tudo se aguenta
nos espaldões de Maracaíbo,
só a falta de liberdade é
insuportável, a falta de ar
livre nos pulmões, como vi nas
oficinas de Turim,
com os pobres desgraçados a serem
triturados prematuramente.
Ah, eu cuspo sangue para manter os
meus, esta é a obstinação,
vai comigo Sandokan e o marajá de
Lahore,
vão comigo o Corsário Negro e o
Corsário Vermelho,
vão comigo centenas de figuras que
se dão à aventura
para que se esquadrinhe o resgate e
todos nós estejamos
na dimensão do sonho para
prevalecer, ainda que mortos,
ainda que abandonados, ainda que
celerados na multidão dos cegos.
E há-de ser a vida esta cegueira
ímpar, a de irmos cegando
para vermos melhor, a confirmar no
corpo a extenuação
e abrindo com ele um trilho para o
espírito, este fogo, esta estirpe,
este furor. Oh, sim, talvez o
sangue se detenha se abrirmos as veias,
como vi ser feito com pauzinhos de
alúmen de rocha,
talvez o sangue de súbito se
deslace e logo estanque
para que tudo tenha sentido, a
minha escrita vertiginosa,
a minha macaca Peperita, o meu cão
Niombo, a tartaruga Lampo,
a galinha Nini, o meu gato Tigrote,
os ministros de Yanez,
que não tardou em fazer-se
imperador, a minha sagaz amiga Angiolina,
as moscas famélicas desta casa
impossível, onde coalham
as estranhezas do mundo e os
vaga-lumes transitam
como almas penadas. Oh, sim, talvez
o meu suicídio venha a amparar
os meus, e eu do céu os veja a
viajar nos meus livros,
a recobrar da incómoda sensação de
estarem vivos.
Foi a noite, surgiu a alvorada, é
agora manhã clara.
Chegada está a hora de suprimir-me,
já que me sai
ao caminho a primavera e ficou Ida
fechada na asfixia
das lúgubres paredes do hospício.
Nem sei como
não rebentou comigo o nó que me
entupiu a garganta
por vê-la assim, a um tempo afoita e aflita, comigo
a afogar-me num choro de lágrimas
convulsas
e no mesmo mal de sempre: parcas
moedas para ressarcir
o internamento que a depressão
reclama. Ao sossego
do bosque levo os passos do meu
desassossego
e faço o que há a fazer, com golpes
eficazes sobre a carne
e o meu último fôlego. Agora sei
como está a transparência
posta nestes campos em que
desabrocha o jasmim
e a magnólia acende brilhos
magníficos.
Agora sei como a estrela procurada
me arrebata.
E eis que a morte chega, e com ela sobrevêm
os sinais
do que é duradouro e extravasa as
jornadas precárias
e as navegações. Cheio de
electricidade o mundo há-de
desconjuntar-se mais cedo do que
tarde, passe ou não passe
um estorninho sobre a minha campa,
ou encontre-se ou não
oiro no Alasca. E esses sinais
serão, talvez, uma vingança.
Uma vingança como uma vitória num
duelo, ou numa prova
velocipédica. Uma vingança de que
sairei ileso, por ultrajes
e penas dirimidos nesse momento
exacto. Já sem obséquios,
no caixão de madeira clara, terei o
rosto calmo, num corpo
descansado, com a redingote abotoada até ao último botão
e a cruz de Cavaleiro sobre o
peito. E sorrirei ao ver os estudantes
a ornamentarem a minha urna com as
primeiras flores
que na vizinhança de Corso Casale
recolherem, chorando alguns,
e uns poucos devolvendo-me a
deferência.
© Amadeu Baptista
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