quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Outro poema de 'Um pouco acima da miséria'

MEMÓRIA DE EMILIO SALGARI SOBRE O SENTIDO DA MORTE

(para José Colaço Barreiros)

Está o mundo todo cheio de electricidade e a neurastenia
vem a golpes de vento dizimar-nos. O que se escreve
não é senão um modo de partir, tudo nos chama
para longe, as perturbações, as dúvidas, o soluço
que dentro do meu peito se amplia até ao infinito
e não me deixa a paz suficiente para tomar
das coisas a libertação que um dia há-de chegar,
fatídica e estranha como o soberbo furacão que assolou Génova
em 1899 e arrebatou o meu deslumbramento.
A luz há-de ser sempre escassa, assim como escassa é
a alegria nestes tempos de invulgar desgaste e sacrifício
para quem trabalha, mal se bastando de pão e de minestra
para enganar a fome e ter a ilusão de que procede
de outras dores a vigília prolongada e a tarefa 
de ao universo acrescentar mais universo.

Sento-me à pequena mesa desmontável, bebo um gole
de marsala para dissipar o efémero, e assim percorro
a confusão de papéis onde nunca me debelo
para escrever o homem que quis ser. Com os meus heróis
dou o corpo às balas e estou nos confins de mim mesmo,
estou na Malásia, no Bornéu, em Ceilão, na Cochinchina,
e confronto-me com os mil perigos dos mil horizontes,
e todas as sombras se reúnem e conjuram
para que seja avassaladora a derrota e a derrota
seja a salvação enquanto esgrimo com o destino
e os meus editores me roubam por  me pagarem
não mais que o pouco combinado, e me enterneço
pela pequena labareda que nos olhos de Ida ainda brilha,
sendo que ao nada sempre hei-de voltar por este odor a chuva
no meu leito ou pelos meus filhos, muito em breve, órfãos.

Temos que levar uma pá à frente de nós
e, no final, é essa mesma pá que nos sepulta:
nada mais é a morte do que este trânsito
entre as pedras da terra e os lugares
por onde nos perdemos, sejamos capitães
ou cavaleiros, faça ou não faça parte
a nossa arte da expiação possível.
Sucede que escrevi o quanto me exauriu
e nunca houve dinheiro que abundasse
para tanta copiosidade de romances.
Sucede que a felicidade não existe.
E que, a haver contentamento, só a limpa
probidade me há-de atravessar
desde a nascença até ao obscurecimento,
esconjurado que seja pelos numes.

Descem e sobem as águas, pelos corredores solitários
da tristeza vou com os meus tigres, será insípida a vida
se na mágoa não ranger os dentes, vulgares e irreparáveis
todos somos, mas nas trincheiras de Mompracem
tudo se aguenta, tudo se aguenta nos espaldões de Maracaíbo,
só a falta de liberdade é insuportável, a falta de ar
livre nos pulmões, como vi nas oficinas de Turim,
com os pobres desgraçados a serem triturados prematuramente.
Ah, eu cuspo sangue para manter os meus, esta é a obstinação,
vai comigo Sandokan e o marajá de Lahore,
vão comigo o Corsário Negro e o Corsário Vermelho,
vão comigo centenas de figuras que se dão à aventura
para que se esquadrinhe o resgate e todos nós estejamos
na dimensão do sonho para prevalecer, ainda que mortos,
ainda que abandonados, ainda que celerados na multidão dos cegos.

E há-de ser a vida esta cegueira ímpar, a de irmos cegando
para vermos melhor, a confirmar no corpo a extenuação
e abrindo com ele um trilho para o espírito, este fogo, esta estirpe,
este furor. Oh, sim, talvez o sangue se detenha se abrirmos as veias,
como vi ser feito com pauzinhos de alúmen de rocha,
talvez o sangue de súbito se deslace e logo estanque
para que tudo tenha sentido, a minha escrita vertiginosa,
a minha macaca Peperita, o meu cão Niombo, a tartaruga Lampo,
a galinha Nini, o meu gato Tigrote, os ministros de Yanez,
que não tardou em fazer-se imperador, a minha sagaz amiga Angiolina,
as moscas famélicas desta casa impossível, onde coalham
as estranhezas do mundo e os vaga-lumes transitam
como almas penadas. Oh, sim, talvez o meu suicídio venha a amparar
os meus, e eu do céu os veja a viajar nos meus livros, 
a recobrar da incómoda sensação de estarem vivos.

Foi a noite, surgiu a alvorada, é agora manhã clara.
Chegada está a hora de suprimir-me, já que me sai
ao caminho a primavera e ficou Ida fechada na asfixia
das lúgubres paredes do hospício. Nem sei como
não rebentou comigo o nó que me entupiu a garganta
por vê-la assim,  a um tempo afoita e aflita, comigo
a afogar-me num choro de lágrimas convulsas
e no mesmo mal de sempre: parcas moedas para ressarcir
o internamento que a depressão reclama. Ao sossego
do bosque levo os passos do meu desassossego
e faço o que há a fazer, com golpes eficazes sobre a carne
e o meu último fôlego. Agora sei como está a transparência
posta nestes campos em que desabrocha o jasmim
e a magnólia acende brilhos magníficos.
Agora sei como a estrela procurada me arrebata.

E eis que a morte chega, e com ela sobrevêm os sinais
do que é duradouro e extravasa as jornadas precárias
e as navegações. Cheio de electricidade o mundo há-de
desconjuntar-se mais cedo do que tarde, passe ou não passe
um estorninho sobre a minha campa, ou encontre-se ou não
oiro no Alasca. E esses sinais serão, talvez, uma vingança.
Uma vingança como uma vitória num duelo, ou numa prova
velocipédica. Uma vingança de que sairei ileso, por ultrajes
e penas dirimidos nesse momento exacto. Já sem obséquios,
no caixão de madeira clara, terei o rosto calmo, num corpo
descansado, com a redingote abotoada até ao último botão
e a cruz de Cavaleiro sobre o peito. E sorrirei ao ver os estudantes
a ornamentarem a minha urna com as primeiras flores
que na vizinhança de Corso Casale recolherem, chorando alguns,
e uns poucos devolvendo-me a deferência.

 (in 'Um pouco acima da miséria, Culluredo, Espiral Maior, 2014)

 ©  Amadeu Baptista















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