2006
( ilustração da capa de Ana Biscaia)
UM POEMA DE 'NEGRUME':
estou a dizer caralho
repetidamente.
atrás de mim vejo uma
embarcação em ruínas,
o sonho assume uma
amplidão soturna, as bocas cospem fogo.
depois a cidade cai,
com estrondo.
vem uma mancha negra ou
azul, como petróleo,
e contamina as minhas
mãos. principio
a perscrutar-te os
olhos sem te reconhecer.
continuo a dizer
caralho, repetidamente.
depois o sonho
alonga-se numa queda sem fim.
vai a cabeça à frente
do corpo, coberto
por uma toalha
vermelha. da boca voam
insectos gigantescos,
maiores que a sua sombra.
a treva cobre tudo.
chega um vulto e diz que não se pode
regressar por esse
caminho, há que seguir em frente.
um caminho de longos
silêncios e longas lâminas
intimida os que querem
passar.
a mão intratável
sobrevoa-me os ombros.
tenho as omoplatas
pontuadas por uma claridade verde esmeralda.
estou a chorar, na
antiga casa, o velho alpendre.
volto a cabeça e vejo o
teu sexo, a gruta escarlate e quente.
a gruta tem um enorme poder de sedução,
sou ainda uma criança e
fico em silêncio a observar.
o meu silêncio pesa
mais do que o peso da minha alma.
passam gansos, peixes
brancos. digo repetidamente caralho e não me calo.
vem alguém e entorna
leite no chão da cozinha,
um homem vocifera e
ergue-se com uma corda ao pescoço
e uma faca na mão.
volto a repetir: caralho, caralho, caralho.
passa um carro na rua a
buzinar estridentemente e acordo, num sobressalto terrível.
depois, tudo é silêncio
avassalador. há passos surdos no corredor
contíguo ao meu quarto.
oiço um alfinete cair, a mãe a gemer.
a cama range, o pai
volta-se nos lençóis, para outro lado,
outra direcção atroz.
a casa está submersa
num silêncio sólido, irreparável.
estou muito só e tenho
frio, embora esteja um calor abrasador.
ouve-se um cântico ao
longe. o som de asas a roçar nas paredes.
digo: caralho, caralho,
caralho, num sussurro infinito, até perder o fôlego.
in Negrume,Lisboa, &Etc, 2012
2008
(ilustração da capa de Inês Ramos)
UM POEMA DE 'OS SELOS DA LITUÂNIA'
escrever pode ser,
naturalmente, ter três anos,
estar na praia num dia
muito quente
e sentir que alguém nos
apanha pela cintura
e mergulha nas ondas
violentas
de um mar revolto,
vendo num relance
a multidão em volta,
toucas amarelas,
biquínis coloridos e o
homem da bolacha
americana, de boné
enfeitado com uma âncora,
a percorrer o areal em
toda a extensão
que vai do paredão à
casa do banheiro.
vir num soluço à tona
de água e voltar
a submergir com um
grito preso na garganta
para ver do mar o
fundo, aquelas algas
ameaçadoras num bailado
aquoso
que as lágrimas ainda
mais adensam.
se não for isso, pode
ser, exactamente,
ter um profundo
conhecimento da palavra
garrotilho, ter estado
de cama com sarampo
e a janela para a rua
resguardada
por um pano vermelho
que vai do chão ao tecto,
sentindo muita sede,
sem poder
sequer molhar os
lábios. ou, então, ouvir
a tarde toda os gemidos
de alguém
a quem diagnosticaram
esclerose múltipla, a regredir
na idade e a ir
morrendo aos poucos
de drageias brancas.
escrever pode ser, exactamente,
ter um medo mortal de
ir à escola, e sofrer
os efeitos maiores da
crueldade
que os mestres
manifestam nas crianças,
as páginas à deriva
entre a baba e o ranho,
as pernas aflitas por
todo aquele pânico,
doridos nós dos dedos e
o coração
aos saltos. não sendo
isso,
escrever pode ser,
provavelmente,
um ajuste de contas com
o passado,
ou até mesmo a
lembrança dessa noite
em que o vento varreu o
nosso quarto
e destelhou as casas
circundantes, vitimando
o garboso pundonor do
gato que cruzou
a estrada e foi
atropelado por um balde
amolgado. não sendo
isso, pode ser o cavalo
inquieto que no prado,
certa vez, se vislumbrou, ou animais
degolados, com as
vísceras entrançadas
num novelo no alpendre,
perto da roupa
pendurada na corda de
secar. ou a noite,
imensa e perdurável, em
que alguém
bateu à nossa porta e
não entrou,
e nós com a lanterna
tentámos ver
sob a chuva que
vergasta ainda
as sebes que há em
volta do cercado,
o cata-vento em forma
de avião, os cardos
do baldio. se não for
isso, será, precisamente,
aprisionar o rosto a um
lugar
para não ceder, ir com
o corpo adiante procurar
o ritmo das paixões, as
mais vorazes,
as que podem produzir
assassinatos, estontear
as cabeças, irromper de
um céu de sombras
verdadeiras, mesmo que
não haja céu,
mesmo que não haja
sombras
e nas letras
resplandeça
pouca coisa.
in Os Selos da Lituânia, Lisboa, &Etc, 2012
2009
( ilustração da capa de António Ferra)
UM FRAGMENTO DE 'ESCALPE':
Há uma seda sensual no
teu cabelo
que apetece
incandescer.
Os dedos deslizam
nessas pequenas cascatas
e apuram-se
a encontrar-te a nuca,
o seu recôndito
côncavo.
Molho um dedo com
saliva
e, da nuca,
atinjo-te as costas,
sinto as pequenas
saliências da tua coluna
como se tocasse
um instrumento antigo,
quase harpa,
quase alaúde,
e dessa música silenciosa vejo
que te arrepias,
e que o teu corpo pulsa
ternamente,
e freme como o ramo de
uma árvore
que a brisa inebriasse.
Depois, procuro-te os
seios com a mão esquerda,
e belisco-te os
mamilos,
sem suavidade,
sem serenidade.
Tudo é inquietação na
procura do corpo,
mesmo quando o corpo a
outro corpo
se rende e se conforma.
O corpo sabe como nada
se apazigua
no momento da posse
e que, carícia após
carícia,
há sempre novos
montantes
de enigmas a descobrir,
a despertar.
A minha boca procura a
tua boca,
os meus lábios afloram
os teus lábios,
com os dentes aprisiono
a tua língua
e mordo,
mordo demoradamente,
enquanto o dedo,
o
dedo que está livre a explorar-te as costas,
desce ao teu cóccix
e desce às tuas
nádegas
e não se perde, afeito.
Eis os orifícios
valiosos,
as furnas a penetrar:
a mão espalma-se e
arranha-te
e são já dois dedos os
que te possuem
– um sonda o teu ânus,
o outro a tua vulva,
no exacto momento em
que tu és já
um estremecimento
subtil a atravessar-te,
a atravessar-te as
coxas,
os joelhos,
os pés nus.
A tua boca desprende-se
da minha
e dá início à viagem:
agora és tu quem morde,
és tu quem arrasta os
dentes e a língua no meu peito,
és tu quem amotina
– na minha pele
a tua língua espalha um
rastro de fogueiras,
de pequenas manchas
incendiárias,
e eu deixo-me ir na
embriaguez
que os teus cabelos
negros,
soltos no meu ventre,
ampliam no meu tórax.
Assim acede
a tua boca ao meu sexo,
enquanto tudo arde no
teu sexo.
No teu ânus,
na tua vulva,
afundo os meus
dois dedos,
palpita a tua língua no
meu escroto,
e lambe,
e chupa,
e é o momento da minha
língua uivar
sobre o teu peito
e te procurar o sexo.
E há a mansidão e a
selvajaria
no modo como afundas
o meu pénis na garganta
e a minha língua separa
a tua carne
e te penetra o túnel
húmido,
luminoso:
aqui é o teu centro,
esta protuberância onde
o infinito se adensa,
esta fonte em que todos
os paroxismos se acumulam,
exactamente como, na
minha glande,
está o meu centro
propulsor,
o dínamo da vida.
Agora, arfas.
in Escalpe, Lisboa, &Etc, 2009
2010
(ilustração da capa de Ana Biscaia)
(...)
A desgraça de um país
mede-se na distância que vai das instâncias do poder
à esperança dos seus
habitantes, o deserto especializa-se quando a crise
se amplia, chegam os
usurpadores e o equilíbrio das emoções descontrola-se,
a ciência columbófila
ressente-se por esse condicionamento,
eiva-se de sinecuras e
compadrios,
especializa-se em
apreciações,
distingue-se entre os
méritos e os desméritos
por simonia,
favorecimentos,
invejas comezinhas
E é então que a saudade
se expande como palavra portuguesa
e eu volto à infância,
enquanto tu, Dempster das Irlandas que não há,
revives e oficias o K3
dessa Guiné repulsiva para que o fascismo te mandou,
como se houvesse uma
nova crónica do descobrimento e conquista da Guiné a ampliar
a que o Zurara
escreveu, e nada se cria ou se perde, e tudo se transforma,
como a antiga lei nos
disse, e de versos se inça o exílio que jamais projectamos
e, sem mais, o acaso da
vida, pelo seu ábaco infeliz, nos ordenou –
e sabemos que os poemas
sujam tudo,
tal como os pombos, as
pombas, os ratos, os pais que nos traíram,
e todos os que traíam
as infâncias que, como as nossas,
foram vividas a golpes
de marcas nos costados pela sovas iníquas
que nos deram
Falemos de exemplares
vivos e pios de aves,
o centro da cidade é
uma loja chinesa na ordem geral do mundo,
nós estamos a viver
algures entre a rua Formosa e a rua da Paz
e o dia de hoje, claro
como há muitos dias não havia, enche-se de sombras,
e eis que acabam de
bater as doze e quarenta e cinco e morre, em Lanzarote,
José Saramago, tão
pombo como nós na refrega das coisas que nos escapam
entre os dedos como se
não fossem mais que jangadas de pedra onde nenhum
ente divino se senta à
nossa mesa por um café – falemos
da inexprimível solidão
dos poetas, esse luto
Vejo-me como um homem
calado, vejo assim os poetas,
vemo-nos como homens
calados que não podem estar calados,
ou que estão cegos e
não podem estar cegos,
ou que não podem deixar
de deambular na cidade,
porque há uma pedra a
levantar do chão,
um povo a levantar,
uma infância a levantar
É, foi na infância que
o descontrolo se arrostou,
aquele odor a sal e a
vinagre palpita ainda no meu cérebro,
ligamo-nos assim à
terra, a olhar o interior das mercearias,
dos pomares,
a surpreender a alegria
que se faz pela interposição do silêncio
com as palavras vitais,
o rego de sangue que se abriu
na via do caramanchão
quando ficou determinado o lugar das alucinações
e se abriu a porta para
um determinado ponto da cidade,
esse mesmo onde caímos
pela primeira vez
O que lá está é nosso e
não nos pertence nunca, o olhar
deslumbra-se por esses
cavalos, essa estátua, esses pombos,
provera a Deus e
seríamos meninos para sempre com essa brisa no rosto,
os barcos estão cheios
de carvão, discorrem sobre eles as mulheres
que pelas tábuas passam
e carregam à cabeça largos cestos de vime,
e é como se fossem
podoas a escandir o ar, como se fossem
a nossa misericórdia
irremissível
Depois a tarde
alonga-se, vem a noite, e as mulheres repartem-se
pelas inúmeras tabernas
das suas circunstâncias,
bebem à nossa memória,
e nós permanecemos transidos
nesse desvendamento,
atrás de nós está o
Jardim da Cordoaria, está o António Nobre com uma camisola
de pescador e uma
Bíblia sob a cabeça, está o Raul Brandão na pedra do lume
como uma árvore sem
poda, estão as putas, está a árvore da forca,
está a nossa vontade
férrea pelo eterno, está o Hospital de Santo António
onde a minha avó
morrerá de uma cirrose,
está Caim, estão os
pássaros, a celebrada cadeira do nosso barbeiro comum,
aqueles frascos
alinhados nos seus torpores azuis e verdes, e grenás, e roxos,
está a Foz Velha, onde
tu, Nuno, como eu, não muito longe de ti,
aprendeste o desusado
rumor dos versos,
essa penumbra
(...)
in O Ano da Morte de José Saramago Lisboa, & Etc,
2010
2012
(ilustração da capa de Bárbara Assis Pacheco)
UM POEMA DE 'AÇOUGUE':
DOIS
MIL E OITO
(para Baptista-Bastos)
Sou um homem do norte e
um homem do norte
continuarei a ser até
que a morte me separe.
As minhas
circunstâncias são exactamente
as mesmas
circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das
vielas e das ruas empedradas
a granito, os
vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os
rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a
que possam
subir para começar uma
aventura
que não tenha fim. Na
minha memória
o que está mais
marcadamente aceso
tem a ver com o
mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo
choques inimagináveis,
com homens no trabalho
a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia
permanente por não haver
o que dar de comer a
velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir
para os braços de alguém
que me atenuou as
faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a
saber mais tarde,
como um garoto sem saber
de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para
celebrar.
A vida era dura nesse
tempo,
que eu fui vigiando
quase por instinto,
fazendo o que fazem os
que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro,
consolidam, sem mais,
o que passaram a saber,
porque o sofreram.
A vida era dura nesse
tempo, sobretudo
para quem me estava
próximo
e eu via viver sem mais
remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em
estoicismo feroz,
capaz, se necessário,
de abalar montanhas.
Em volta, quem estava,
pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas
era gente que, ainda assim,
andava de cara
levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas
ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos
meus progenitores.
Quem me criou foi disto
que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me
entregou para me livrar da miséria comum
– por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura
uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas
nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha
predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus
pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui
era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a
interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta
e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma
linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos
nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que
somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também
somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que
esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de
prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que
nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela
intensidade do nosso regozijo
ou o alento que
alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a
infância, a minha infância,
me entregou ao duro
acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda
inocente, com a morte.
E tive que cuidar de
uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu
amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e
disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta,
uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua
bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria
rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para
me dar,
além da sua eterna
progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita
paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias,
sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu
encantamento.
Não havia professor de
que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e
a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro
mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre
a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e
do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado,
falava-me das flores – as brancas, as
vermelhas –,
falava-me da praia e da
floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das
princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia
estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o
via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade
absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra
existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não,
a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo,
pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de
comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que
as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível
de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta
mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi
que há,
entre os vários planos
em que existimos,
outros planos cruéis
que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca
mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia
comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em
catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela
surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu
a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a
uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos
existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho
ao desacato
das meninas que perto
voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali
jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva
pela vida circundante.
Não traumatizemos as
crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a
consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba
e exaltante,
tanto mais que sempre
quis ser poeta,
e para se ser poeta é
sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o
fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como
se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra
sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção
vier e a deslembrança
tiver que ser a última
recompensa.
Assim cresci, assim
empreendi a aprendizagem,
a constatar como na
alma os passos se abismam
se a pura
incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior
for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o
abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num
troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de
sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do
que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi
que a enxertia resultava
em algo mais sensível
do que alguma vez supus,
sem que soubesse por
que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita
e bravia,
se pela razão que toca
o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em
multidões inúmeras,
com as suas botas
grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas
púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro
e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem
que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o
verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os
quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los
a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a
combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta
e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade
arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita
o meu sonho maior,
e das palavras tomei o
que podia para encontrar
o ardor e a harmonia,
sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e
incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa
e obscura,
que sabemos e não
sabemos como existe,
mas sentimos na alma e
no espírito,
e nos enche o olhar
como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não,
interessa pouco.
O que escrevo é só um
tempo breve,
em que os mortos e os
vivos se procuram
para que haja
testemunho e não seja longa a espera
do fim que há em tudo.
Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça
o que é o norte,
e onde fica.
in Açougue, Lisboa, & Etc, 2012
2014
(capa de Alex Gozblau)
UM POEMA DE 'UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA':
GUNVOR
HOFMO FALA, EM SONHOS, À SUA AMIGA
JUDIA
RUTH MAIER
(para Vítor M. S. Rodrigues)
A casa está contida no
abismo esquizofrénico
e as loucas uivam, com
as bocas cheias de árvores.
Por mim, vou na esteira
das sombras, sempre a cantar,
como se cantar fosse
uma revelação e o sol
o aconchego possível
para a predestinação
da sobrevivência, nos
dias em que a solidão nos submerge.
De onde vim havia um
trabalho de crepitações,
a neve enrolava-se-me
nas mãos, e o meu olhar abrangia
a beleza periférica em
que nada mais somos do que uma rasura
na espessa paisagem. E
os olhos recebiam essa luz duradoura
que me fascinava e
abria o peito, talvez à ilusão, talvez ao frio,
mas, com certeza, à
circunstância de fazer do entendimento
das coisas uma visão do
sagrado, um rastro de luz interminável.
E assim foi que chegou
a ordem dos arianos e eu retrocedi
na minha idade, e a
minha boca ardeu pelo teu nome
na densidade da noite
– chegou a ordem dos arianos com os
carros
blindados e os camiões
negros, como se o mundo
fosse já sem qualquer
saída e tu não fosses mais do que o sinal
de que nada há a
esperar, embora o canto
predomine sobre tudo. A
casa está contida
no abismo
esquizofrénico e eu lembro-me de ti,
a tua mão sobre a minha
poderia ter sido a redenção,
mas os arianos chegaram
a Dalsbergstien 3
e a luz de Oslo nada
mais atenuou, a amarga
expectativa de que a
angústia acabasse sem demora
gorou a esperança e o
alento, e tudo se malogrou sobre o silêncio,
com as suásticas a
perder de vista sobre o campo de visão
do nosso descontentamento.
Lembro-me como se desvaneceu
o teu sorriso,
lembro-me como vi sobre ti os anjos negros,
lembro-me como a
perseguição foi obstinada sobre a rapidez dos teus passos,
e como te arrastaram
pelas escadas do lugar onde moravas,
e te apanharam pelo
cabelo,
e te forçaram a
ajoelhar,
e apoiaram a arma
sobre a tua nuca até
que dentro de ti
mais nada houvesse que
a jurisdição do terror,
quem sabe se o único
promontório que ainda resta.
É tarde, sobre o céu
baixo desta noite infinita repiso
os versos da minha
ignorância, as loucas uivam
com as bocas cheias de
árvores, sob os lençóis contorço
as mãos por tanta
aflição, e toda a inexorabilidade
se inscreve nas minhas
palavras, e não sei de mim, nem de ti,
nesta extensão de
trevas que se transmite à ressonância dos séculos,
de quando mais não
éramos do que crianças a inquirir os bosques,
o vento pelos abetos,
os animais pacíficos,
a neve imaculada de
Biri. A enfermeira passa no corredor,
a ronda completa-se, eu
prendo os cabelos nas mãos a pensar em ti,
e digo que o asseio
deste lugar me assusta,
tal como me assusta a
cegueira circundante,
tal como me assustam os
soldados que povoam
este espaço como
fantasmas iníquos
que me entregam, a cada
hora, notícias da tua deportação,
do teu sacrifício, em pesadelos
terríveis.
Não, não somos mais do
que uma rasura na espessa paisagem,
mas creio que, ainda
assim, somos uma rasura de origem divina
– dos camiões os detidos foram impelidos para o
comboio de mercadorias,
longa foi a viagem pela
Alta Silésia onde as unidades SS são ubíquas,
a trepidação dos vagões
levou-te ao sacrifício, nem concebo o teu horror
perante os mastins
excitados, a ameaça das metralhadoras, as vozes ofensivas, o zunir dos chicotes
sobre a carne vulnerável, a longa espera na fila
de aniquilamento, a tua
nudez branquíssima a iluminar a câmara de gás,
a cinza do teu corpo a
subir aos céus de Auschwitz, conjuntamente
com outros milhares de
corpos impacientes por retornar à vida, divinos
como sempre foi o teu
corpo, Ruth Maier.
Não, aqui nada é
inacessível, o sofrimento não é inacessível, não é
inacessível o rumor da
tua voz no meu ouvido, não é inacessível
o teu riso cristalino
na primavera fugaz, no medonho silêncio que está dentro
de mim como uma luz com
o teu nome quando lembro o teu destino,
uma rosa solitária como
a serenidade expansiva da memória que conservo
de ti, a olhar-me nos
olhos, a perscrutar a lâmpada de azeite
que em cima da mesa
alguém acendeu para que voltemos
a ver na discrepância
dos tempos, e seja limpo o que virmos,
como uma migalha de pão
ou uma estrela nítida no firmamento obscuro.
O que seja o
extermínio, sempre nos há-de encontrar inocentes,
e eu sempre
acrescentarei mais versos aos versos que escrevi,
e zurzirei a noite com
o mesmo esforço com que te inscrevo
nas minhas orações, no
meu silêncio, no meu desamparo,
enquanto estou contigo
à roda de uma fogueira, a subentender
os pássaros que
gravitam sobre as nossas cabeças, juntas uma vez mais
no desassossego que nos
coube entretecer, sempre a cantar,
mesmo que cantar não
valha mais a pena ou seja o nosso último reduto.
Ah, as loucas uivam com
as bocas cheias de árvores, os meus versos
expandem-se pelos céus
da Noruega, tudo está por dizer sobre a união
do corpo e da luz,
relembro-te e relembro o que alguns humanos
já esqueceram, ou
querem que esqueçamos, mas não há perder-se do tesouro
da vida, não há-de
deixar de gritar o teu e o meu nome nesta casa inabalável.
in Um Pouco Acima da Miséria, Lisboa, &Etc, 2014
© Amadeu Baptista
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