sexta-feira, 10 de outubro de 2014

UM INÉDITO

SOBRE A FIGURA DE UM DEMÓNIO PINTADO
QUE VIMOS NUMA PAREDE

Não se supõe que o demónio nos apareça num início de tarde
 na parede de uma sala desconhecida em que entramos
pela primeira vez. Mas os nossos olhos fixam-se na sua figura
para não mais o esquecermos, agradados por o termos visto
numa amenidade simples e sem remorsos, talvez porque foi
uma mulher que nos levou a ver esse demónio e se ampliou
no coração a luz dos olhos dessa mulher, que quisemos reter
como a um destino. Essa luz será sempre um mistério,
diabólica que seja por pertencer a alguém que não contávamos
que viesse perturbar a nossa vida, ou porque 
o próprio demónio se compadeceu de nós e essa luz
nos induz a que se estabeleça no nosso coração um ameno
agravo que se não há-de saber como solver, uma paixão 
que durará para sempre, breve e eterna como é próprio da luz que nos atinge:
o sortilégio de sempre quando dois poderes – o demónio, a mulher – 
nos submetem e nada podemos fazer do que entregarmo-nos,
tomando do silêncio a melhor parte do que queremos ter,
acrescentando aos sonhos esse ápice volátil em que, por um momento,
tudo é nosso, tudo em nós estremece, tudo está, ainda, ao nosso alcance.
Depois, o demónio obriga-nos a partir para a vida
sem outro alvitre que o extenso conflito com que o destino
nos sacode, fazendo-nos lembrar a luz daqueles olhos, aquela sala
remota,  essa mulher que nos chamou a atenção para a figura do demónio
na parede da sala  desconhecida enquanto nos sorria – e a quem sorrimos também,
com frágeis palavras presas na garganta e o arbítrio do coração
descompassado para que só a memória desse encontro possa valer
para sempre. Mas a memória não é não mais do que outro demónio
a perseguir-nos, nunca nos deixa em paz, nunca nos larga
nos múltiplos desencontros que nos ferem e fazem com que os sonhos
se renovem, exasperantes como um caminho que se segue e não tem fim,
ou um rio sem nascente nem foz, mas rio, apenas, na extensão do desassossego
das suas águas turvas, límpidas, convulsivas. Ama-se, então, o demónio:
ao demónio não mais que circunscrevemos as nossas preces,
os nossos desconsolos, a nossa angústia extensa, a nossa fome,
a nossa funda miséria de sabermos tão pouco do que temos
e tudo estar perdido à nossa  volta, sem outra solução do que viver-se.
E assim é que o demónio nos ampara e alimenta, e o que é impossível
acontece, e o que não é nosso nos pertence, e as noites se iluminam
pela luz daqueles olhos que apenas pressentimos demoníacos
e pacíficos na sala desconhecida em que entramos para que o arrebatamento
nos tocasse. Depois tudo nos assusta como um abalo sísmico a invadir-nos
o corpo, correm os dias como aves negras, não há esperança e tudo se reduz
ao enigma de nada ter sentido sob o impulso das correntes que ainda perseguimos,
um brilho numa árvore, a mancha de uma pedra, um bosque que se avista,
a lembrança de uns olhos que persiste nos mais recônditos precipícios do passado.
Ah, o demónio opera maravilhas, faz e desfaz, atira-nos para o mundo
como se o que nos ilude pudesse ser tangível e o demoníaco
se transformasse em beatitude, promessa que se cumpre, concerto
para o que nos atormenta, conciliação do puro com o impuro, caminho
que falta percorrer quando não há caminho e tudo em tudo se consome,
serena inquietação que nos há-de fazer voltar à amenidade de uma sala
desconhecida que uma mulher nos mostrou. E a tarde avança, a noite
alastra sobre as paredes brancas, e a figura do demónio continua a velar-nos,
vela-nos o desespero e a desolação amplia-se dentro de nós, e não é mais
o demónio que um instrumento de usura, vemo-lo como um ferro em brasa
que queremos tocar sem que nos queimemos, mas não é mais do que uma figura
entre almas penadas e chamas vermelhas, não é mais do que uma passagem
de medo que se insinua na carne, um medo arrasador  pelo que em nós anoitece,
a solidão de sempre, a perdida luz que permanece nos olhos de uma mulher
que para nosso estupor e enlevo nos invadiu o coração. Ah, noite preta, noite
de múltiplos demónios e análogos escanhoamentos, noite de sortidas perfídias
em que a morte se insinua, pugnaz, falaz, audaz, em que sempre perdemos terreno,
em que não há cortinas para abrir, a que nenhum céu pode corresponder senão
com um maior e mais amplo negrume, uma insatisfação desabrida  sobre os olhos,
tempestade que galga a treva e se eleva sobre a alma, inundada de sombras.
E a paixão permanece, entre a ruína permanece, a perfilar sobre o rosto
um sinal irreconciliável, enquanto nada há que se divise na terra a não ser
essa figura sortílega na parede branca de uma casa desconhecida
em que o alvoroço nos arrebata talvez demasiado tarde,
talvez demasiado cedo para o temeroso fogo com que o demónio nos tenta,
esse calor que é a um tempo refrigério e admoestação, porque nada
se distingue no inextricável rumor que a vida é. Assim o vermelho represo
na figura do demónio nos suplicia, e enlouquece-nos por aquele brilho dos olhos
que nos saúda como execração e opróbrio, aquelas unhas paradas
sobre a nossa garganta, essa deposição que sobre nós se debruça, a atingir-nos
como uma desatenção vigilante, um ofensivo cuidado em que mais nada
podemos fazer do que perdermo-nos para que a nossa desventura cresça
connosco e assim nos diminua. A casa amplia-se, então, sob o auspício
de um silêncio devastador, as salas estremecem, estremece o coração,
um estalido destaca-se dos móveis e a a perturbação vem confundir-nos,
ao que éramos atentos somos agora alheados, como se o tempo
deixasse de cumprir  os seus ritmos expectantes e soubéssemos, por uma vez,
que a tempestade não vai passar e tudo se abandona ao esquecimento porque o êxtase
não é já uma prerrogativa, uma aliança que possa fundar-se. «Vai morrer»,
ouvimos o demónio dizer. «Vai morrer longe», repete ele, elaboradamente
– e há um longo exílio que começa a cumprir-se, uma pena maior, um degredo,
uma degradação que alastra nas veias e nos congela o rosto e corrói os humores,
numa invernia contínua, uma derrocada a expandir-se em sucessivas fantasmagorias
e perplexidades consecutivas. Ah, a noite é infinita, noite preta, noite negra,
de um lugar a outro nada resta senão a vacilação, o demónio olha-nos de frente
e mostra-nos a claridade de uns olhos para que a amplitude do desgosto seja essa
luz que perdemos, esse ardor que derruba, essa convulsão no peito que quisemos
manter como crença, mas nos pôs sem solução perante muros, portões, gradeamentos.
E pertence-nos o que nunca foi nosso, pertence-nos o que nunca há-de
pertencer-nos, pertence-nos a dimensão do vazio carregada de sons e pigmentações,
o que ficou desse dia em que vimos a figura do demónio na parede de uma sala
desconhecida. E, de novo, vemos o brilho dos olhos da mulher
no brilho dos nossos olhos, enquanto a imaginamos a vestir uma camisa branca,
ou a dormir, ou a pentear a serena inquietação dos seus cabelos, ou a mostrar
na boca um sorriso que interceda por nós, ou a tecer uma demorada
palavra que nos enrede e faça de nós voluntários prisioneiros da sua presença.
Ah, como todas as cargas nos exaurem, como todos os tormentos nos sitiam,
como todas as impossibilidades nos afrontam, embora o caminho se estenda
diante de nós e, como sempre, não haja caminho, nunca haja caminho de um lugar
a outro, de um coração a outro, de um refúgio a outro – o demónio está em toda a parte 
e não se cansa de se mostrar, não se cansa de nos dizer, elaboradamente, «vai morrer
longe», não nos poupa obstáculos, ciladas, destemperos, aflições, aparece-nos, 
apenas, para manifestar em nós a decepção do mundo e o seu declínio, 
a nossa desventurada condição de miseráveis sem mais remédio 
do que esperar algum instante retemperador no fulgor da claridade, algum gesto 
inesperado, algum espelho que possa devolver a transitoriedade da nossa imagem.
 Ah, foi num dia de sol, há muito tempo, que vimos a chuva bater no vidro das janelas,
e que, de súbito, a treva cingiu as cintilações que envolviam a cidade, e as casas
prenunciaram um incêndio infinito de proporções assustadoras, e os relâmpagos
deixaram fundas cicatrizes no horizonte de nuvens: tudo isto dura desde que foi
a infância, dura eternamente desde que a perda se insinuou e manteve como ferida
mortal, vara que bate nas têmporas, no coração, nas palavras, nos poemas. Oh, cheia
de graça, o sucesso da tragédia não cessa de nos acossar, é um veneno subtil
que a cada dia se instala e, lenta e pressurosamente, nos mata como se fosse 
o lenitivo que resta, a arma exclusiva contra todos os demónios que nos perseguem
e afrontam, a última vertigem consentida. Não, não se supõe que o demónio 
nos apareça num início de tarde na parede de uma sala desconhecida 
em que entramos pela primeira vez, ou que a mulher possa sorrir-nos, 
ainda que lhe brilhem os olhos, ou que desarvore no mundo o milagre da redenção 
–  o corpo progride para a imensidão, os olhos gastam-se por tanto verem, 
destrói-se o momento da centelha e do mistério e nada é sagrado,
nada é iluminado pela visão longínqua que tivemos.


©  Amadeu Baptista

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