quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Mais um poema de 'Um pouco acima da miséria'





PROVA DE VIDA DE GABRIEL CELAYA, UM POUCO ANTES
DO SEU FALECIMENTO

Está um estouvamento de cães que se riem
ao longo da estrada. Um poeta deve alisar
as rugas que a vida lhe impõe, por isso
paro para pensar e sei que aquele riso
é infecundo, como a asfixia que me levou
à miséria. Paro para pensar e volto atrás

no tempo, ainda que o tempo seja o termo
em que tudo se vence, e reencontro os meus pais
nas estradas de Espanha, e os mortos
que foram desarmados para a extradição
da vida nas montanhas do País Basco, tal como eu
vítimas da fome intemporal que acompanha
os povos, esta gente circundante que não tem
senão lençóis de esparto como última mortalha.

Paro para pensar e procuro a última força
da minha alegria,  e vejo as árvores enegrecidas
do meu país, um desvario de luas  infatigáveis
que sobre as nossas cabeças pulsa como uma tormenta,
uma agonia sanguinária que desde sempre alongou
o silencioso vazio dos caminhos, a treva que estoura
as cabeças dos homens e os reduz a não mais que ânsia
e medo sob a força torrencial do sol e dos campos em volta.

Paro para pensar e pergunto-me o que é a miséria
sem que saiba o que possa responder-me, embora a veja
sempre, e estendo os olhos para o infinito da terra onde nasci,
a sua gesta brutal, e sei que hei-de ter sempre fome
de poesia e de luz neste emparcelamento da dor,
e que as ramificações da infâmia sempre afligirão
as minhas entranhas, a minha luta diária,
a minha mágoa irretorquível sobre este mundo
de palavras sitiadas pela aridez envolvente.

Paro para pensar e vejo-me capitão da república
e o voluntário que em Bilbao foi feito prisioneiro,
corria a guerra civil pelo meu mundo, com as ruínas
de Guernica a elevarem-se do fogo como uma denúncia
 – ah, em verdade  vivemos uns pelos outros, a luta enrijece
a cada dia que passa, ainda que os cães riam e seja
a estrada longa e acidentada, e vasta a miséria
para quem vive de versos, e por eles morra
à fome, ao frio, ao abandono. Sobre mim crescem

estorvos inabaláveis, pela afronta
da míngua obrigaram-me a vender a biblioteca,
é inexprimível o pesar de me ter visto afastado dos meus livros,
 às vezes demoramos o uso das navalhas
e a aprendizagem que delas carecemos,
mas é pela vertigem que vamos, enquanto
não ocorre o degelo e os nossos corações
estiolam por tanta desonra, tanta iníqua tristeza
a fluir infinitamente pelas ruas de Madrid.

É uma pátria que escrevo quando escrevo
o meu optimismo carregado de futuro,
o que tomei entre mãos é ao amor que se deve,
um amor de serenas pegadas e nomes magnificentes,
o amor da mulher que amei sem condições
e que sempre vislumbro no sortilégio das noites,
Amparitxu Gastón, que nunca deixou de incitar
a que viessem a nossa casa os mais preciosos amigos,
Blas de Otero, Pablo Neruda, Dolores Ibarruri,
e todos os que me ensinaram a avaliar
o crepúsculo e a manhã concomitante.

Paro para pensar e sei que o riso dos cães é infecundo,
talvez de pouco mais saiba neste tempo em que
a dignidade de um poeta de Espanha é tocada
pela selva negra da afronta, no fundo dos bolsos
não resta dinheiro para bálsamos e maçãs,
mas possuo uma boa quantidade de mortos
que de cara levantada vão como as estrelas
no firmamento sem fim, a luzir, sempre a luzir

porque é da luz que nos alimentamos
e da ferocidade incontornável de mesmo mortos
permanecermos vivos. Oh, sim, riam-se os cães
na iniquidade suprema, riam-se pela maldade
que sempre revelaram, riam-se pelas execuções
sumárias e arbitrárias, riam-se dos fuzilamentos,
do garrote, das perseguições, das detenções prepotentes,
da miséria, riam-se que o fim da estrada está próximo

e não há-de tardar a que nos libertemos.


(in 'Um pouco acima da miséria, Culluredo, Espiral Maior, 2014)

 ©  Amadeu Baptista



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