PROVA DE VIDA DE GABRIEL CELAYA, UM POUCO ANTES
DO SEU FALECIMENTO
Está um estouvamento de cães que se
riem
ao longo da estrada. Um poeta deve
alisar
as rugas que a vida lhe impõe, por
isso
paro para pensar e sei que aquele
riso
é infecundo, como a asfixia que me
levou
à miséria. Paro para pensar e volto
atrás
no tempo, ainda que o tempo seja o
termo
em que tudo se vence, e reencontro
os meus pais
nas estradas de Espanha, e os
mortos
que foram desarmados para a
extradição
da vida nas montanhas do País
Basco, tal como eu
vítimas da fome intemporal que
acompanha
os povos, esta gente circundante
que não tem
senão lençóis de esparto como
última mortalha.
Paro para pensar e procuro a última
força
da minha alegria, e vejo as árvores enegrecidas
do meu país, um desvario de
luas infatigáveis
que sobre as nossas cabeças pulsa
como uma tormenta,
uma agonia sanguinária que desde
sempre alongou
o silencioso vazio dos caminhos, a
treva que estoura
as cabeças dos homens e os reduz a
não mais que ânsia
e medo sob a força torrencial do
sol e dos campos em volta.
Paro para pensar e pergunto-me o
que é a miséria
sem que saiba o que possa
responder-me, embora a veja
sempre, e estendo os olhos para o
infinito da terra onde nasci,
a sua gesta brutal, e sei que
hei-de ter sempre fome
de poesia e de luz neste
emparcelamento da dor,
e que as ramificações da infâmia
sempre afligirão
as minhas entranhas, a minha luta
diária,
a minha mágoa irretorquível sobre
este mundo
de palavras sitiadas pela aridez
envolvente.
Paro para pensar e vejo-me capitão
da república
e o voluntário que em Bilbao foi
feito prisioneiro,
corria a guerra civil pelo meu
mundo, com as ruínas
de Guernica a elevarem-se do fogo
como uma denúncia
– ah, em verdade vivemos uns pelos outros, a luta enrijece
a cada dia que passa, ainda que os
cães riam e seja
a estrada longa e acidentada, e
vasta a miséria
para quem vive de versos, e por
eles morra
à fome, ao frio, ao abandono. Sobre
mim crescem
estorvos inabaláveis, pela afronta
da míngua obrigaram-me a vender a
biblioteca,
é inexprimível o pesar de me ter
visto afastado dos meus livros,
às vezes demoramos o uso das navalhas
e a aprendizagem que delas
carecemos,
mas é pela vertigem que vamos,
enquanto
não ocorre o degelo e os nossos
corações
estiolam por tanta desonra, tanta
iníqua tristeza
a fluir infinitamente pelas ruas de
Madrid.
É uma pátria que escrevo quando
escrevo
o meu optimismo carregado de
futuro,
o que tomei entre mãos é ao amor
que se deve,
um amor de serenas pegadas e nomes
magnificentes,
o amor da mulher que amei sem
condições
e que sempre vislumbro no
sortilégio das noites,
Amparitxu Gastón, que nunca deixou
de incitar
a que viessem a nossa casa os mais
preciosos amigos,
Blas de Otero, Pablo Neruda,
Dolores Ibarruri,
e todos os que me ensinaram a
avaliar
o crepúsculo e a manhã
concomitante.
Paro para pensar e sei que o riso
dos cães é infecundo,
talvez de pouco mais saiba neste
tempo em que
a dignidade de um poeta de Espanha
é tocada
pela selva negra da afronta, no
fundo dos bolsos
não resta dinheiro para bálsamos e
maçãs,
mas possuo uma boa quantidade de
mortos
que de cara levantada vão como as
estrelas
no firmamento sem fim, a luzir,
sempre a luzir
porque é da luz que nos alimentamos
e da ferocidade incontornável de
mesmo mortos
permanecermos vivos. Oh, sim,
riam-se os cães
na iniquidade suprema, riam-se pela
maldade
que sempre revelaram, riam-se pelas
execuções
sumárias e arbitrárias, riam-se dos
fuzilamentos,
do garrote, das perseguições, das
detenções prepotentes,
da miséria, riam-se que o fim da
estrada está próximo
e não há-de tardar a que nos
libertemos.
(in 'Um pouco acima da miséria, Culluredo, Espiral Maior, 2014)
© Amadeu Baptista
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