terça-feira, 23 de setembro de 2014

Arvo Turtiainen



                                                      POEMAS DE ARVO TURTIAINEN




OS LIVROS

Os livros piedosos ensinam-nos:
Homem, faz-te melhor, melhor
Para que pareças mais com Deus.

Quando os nossos membros cresceram
e já podíamos trabalhar,
puseram-nos a ler um livro de pedra, o Livro da Vida.
Pão era a sua primeira palavra
e cada frase terminava em pão.
Aprendemos a ler aquele livro,
aprendemos a lê-lo bem.
Foi-nos revelado que a superioridade começa
quando o pão cresce; que a bondade termina
quando chega a fome,
e que qualquer se pode acercar de Deus onde
não há que lutar pelo pão.

O livro a vida fala claro.
Das suas palavras alimentam-se os que serão sábios de verdade
e nos explicam a unidade do Pão e do espírito.

                Muutos, 1936




50 GRAUS ABAIXO DE ZERO

Nas noites de janeiro
rangem os dentes das estrelas
ao morder
o pão do frio.

Nas noites de janeiro
navega a lua
como um ataúde
rumo ao seu gélido inferno azul.

Os bosques negros
estremecem.
Congelam as cortinas
da aurora boreal.

Nas noites de janeiro
resplandece
o punhal do frio
na mão da morte.

                Palasin kottin, 1944





AGRADAM-ME O PÃO E A CARNE

Agradam-me o pão e a carne,
agrada-me beber vinho e cantar,
agradam-me as crianças e as mulheres bonitas,
agradam-me os velhos e as velhas
bondosos que falam sós.

Agradam-me os juncos e as árvores,
o brilho das águas nas noites de lua,
a sábia conversação dos amigos.

Na realidade eu nasci para o amor,
por isso raramente me vedes
tal como sou.

                Minä rakastan, 1955





TRABALHA ENQUANTO VIVAS

Nasces; morrerás.
O que há entre o começo e o fim,
será a tua vida.
E a tua vida serás
tu.
A tua obra será
o que és.
Os que ficarem, dirão
Como foi.

Por isso, não te preocupes:
Bastar-te-á viver
A trabalhar.

                Minä rakastan, 1955





EU, CRIANÇA DA RUA

I
Quando nasci escreveu um poeta
sobre o mundo:
            Tão estrepitosamente como os pinheiros
            caem as antigas convicções.
            Vamos afogar-nos no fel do outono
            ou viver entre as flores do verão?
            Não sei. Eu simplesmente vejo
            como mudou o mundo
            sob lamentos, ruinas e tempestades.
            Aguentá-lo-eis, povos?

Nasci num mundo de guerra

II

Quando tinha dez anos
vi o czar

            passou num automóvel pela rua Esplanadi
            e nós estávamos à esquina do restaurante Capilla
            agitando bandeiras
            que o professor tinha distribuído

Tínhamos que gritar viva viva viva

            mas ninguém gritava
            o czar ia de pé no automóvel descapotável
            era muito pequeno
            e tinha o nariz algo azulado pelo frio


III

Quando tinha catorze anos
            um guarda vermelho ferido na cabeça esteve
            toda a tarde, e noite, até ao meio-dia seguinte
            morrendo entre estertores sob a nossa janela
            na rua Korkeavuorenkatu.
            Não sabia nada deste mundo, nem sequer
            que tinham tomado Helsínquia
            havia já vinte e quatro horas. Quando por fim morreu
            o papá guardou as suas coisas:
            uma carteira com doze marcos, um relógio de bolso
            com uma medalha na corrente com a inscrição:
            III Prémio. Campeonato de Luta, União Operária.

No verão chegou uma mulher
para recolher as suas coisas,
disse:
Paavo teve colhões.

IV

Quando tinha quarenta anos
voltamos a estar em guerra, três guerras tinham-me passado
por cima e tinha lido sobre outras trinta.
Com os que morreram nelas
podiam-se ter formado dez nações,
todas do tamanho da Finlândia.

Teriam trabalhado,
arando, semeando, segando,
construído estradas, cidades, fábricas;
teriam celebrado aniversários,
teriam ido de férias no verão,
muitos teriam lido poesia, alguém
teria escrito sobre tudo isto

V
Quando escrevi isto
Nos cinquenta e oito anos do meu nascimento
Recordei as palavras do poeta:
Vamos afogar-nos no fel do outono
            ou viver entre as flores do verão?
            Não sei. Eu simplesmente vejo
            como mudou o mundo
            sob lamentos, ruinas e tempestades.
            Aguentá-lo-eis, povos?


VI

Que rápido se levantam casas nos bairros novos,
que rápido deixam as crianças o lar e se vão,
que rápido desaparecem os velhos atrás das cortinas
e ficam vazias as janelas.
Que rápido tantos
novos cemitérios


VII

Contemplava o meu umbigo
brotaram dele umas bandeirinhas vermelhas
atirei-as para a rua
para que as pessoas as agitassem alegremente

continuei a contemplar o meu umbigo
brotou uma rosa, uma rosa

Que me entrou pelo ouvido
e me lavou os miolos



VIII

Deixei crescer a barba
é uma barba muito estranha
cor de líquen
falo atrás da minha barba
digo o que  me dá na gana
todos a olham com respeito
dizem
que barba tão sábia


IX

Sente-se numa tarde azul de abril:
as torres estremecem, um tremor corre
dos pináculos até à rocha, até às raízes
da pedra, do cimento, da terra,
sente-se no ar, na respiração ofegante dos homens.
Todos queriam fazer algo impossível:
Porem-se em pé de um salto, erguidos como torres,
entrelaçar-se uns com os outros como as ruas
ou as árvores na penumbra, entregar-se
como a tarde ao falo do farol.
Quem não quereria, perguntai ao vosso coração,
     quem não
                     quereria foder uma vez em abril.

                Minä paljasjalkainen, 1962



Versão minha - © Amadeu Baptista





Arvo Turtiainen (1904-1980). Nasceu em Helsínquia. Estudou na Escola de Estudos Sociais; foi ajudante de dentista, jornalista e tradutor. Pertenceu ao grupo esquerdista Kiila (A cunha). Nos seus primeiros livros reflectiu sobre os conflitos sociais da época e nos seguintes sobre a sua experiência na prisão. Apaixonado pela cidade, incorporou nos seus poemas a linguagem das ruas de Helsínquia e o jargão da capital.



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