segunda-feira, 31 de março de 2014

Fragmentos Tunisinos




Está em distribuição o meu novo livro, com a chancela da Volta D'Mar. A aquisição do livro pode ser feita directamente na editora, através do e-mail: voltadmar@gmail.com


Deixo aqui os primeiros fragmentos do livro:




BIZERTE

Sob o céu tunisino
desejo-te outra vez
– o meu crescente é fértil pelo teu.


Falo sozinho,
ou falo-te, ó ausente
– e tanto me respondes.


Vejo na estrada o nácar cor-de-rosa
que esta noite soletrarei
na tua pele.


Pelo golpe de luz na açoteia
sei o calor que está
– a minha mão na tua.


Chega ao meu coração
a tua voz
mesmo se a tua palavra é o silêncio.


Sou como o poeta
que aguarda o poema
– a qualquer momento irás chegar.


O livro arde no círculo de luz
da treva inaugural

– esquivo-me da morte.



(in Fragmentos Tunisinos. Vota d'Mar, Nazaré, 2014)


© Amadeu Baptista











sexta-feira, 28 de março de 2014

Luís Filipe Castro Mendes



Luís Filipe Castro Mendes, poeta convidado


OS LIVROS MORTOS

Alguns dizem não deixaremos a poesia,
ela atravessará connosco a miséria do mundo
e aonde quer que cheguemos ela falará por nós.
Outros pensam só num resto de decência,
para a proteger com as mãos, como uma frágil chama
se protege do vento.

Eu não sei. Todos os poemas queimados em praça pública
por louros estudantes arianos e belos,
todos os poetas exilados
em campos de trabalho e redenção pelo povo,
todos os que tiveram de passear
sob apupos e com orelhas de burro na cabeça,
porque burgueses afinal burgueses,
todos esses tiveram o seu prémio afinal.

Para os novos senhores é indiferente:
um simples jogo de linguagem sem pertinência
e sem valor acrescentado nas palavras
não lhes merece qualquer menção. Deixam-nos para trás,
porque somos todos nós afinal tão supérfluos e irrevelantes
como as palavras que caem
dos nossos livros mortos*


*(guilhotinados, sim, guilhotinados,
como a pobre Maria Antonieta
depois da gaffe dos brioches).

Ao fim de um determinado número de anos (dez a quinze), todos os exemplares não vendidos de uma edição de um livro são guilhotinados (destruídos) pelos editores

(nota do autor)



RESPOSTA

Sim, andei por fora
Sim, andei por fora,
por vezes não reconheço as ruas da minha cidade
e há rostos que me envelhecem o coração.
Mas não tenha dúvidas, não precisa de fazer perguntas,
de ficar atento aos meus mínimos movimentos,
de esboçar por dentro de si o desenho
daquilo a que chama a minha alma.
Os comboios param em estações abandonadas, noite dentro,
e nós saímos como passageiros estremunhados e engelhados pelo frio
para cidades desconhecidas, belas e desertas
como todo o tempo que passou.
Sim, eu sei, que estou a fugir ao assunto.
Importa-se de repetir a sua pergunta?



A UM JOVEM POETA

Nos versos não fica nada
do que pensamos ou sentimos:
não se iluda, senhor Kappus.
Nós só jogamos com as palavras que nos deram,
como jogadores profissionais de cartas marcadas
num filme passado no Mississipi,
dentro de um daqueles barcos com rodas a subir o rio.

Bem me pareceu estranho o seu chapéu
e os seus modos alterados, senhor Poeta.
Está em flagrante delitro, hoje não vale a pena de todo
falar consigo.

Não se zangue, senhor Kappus, ouça-me até ao fim.
Anda aí muita banha de cobra nesse negócio da poesia.
Temos muitas vezes que cantar a canção do infinito dentro de uma capoeira
e arrancar a máscara que se agarrou à outra máscara por cima da máscara
que nós próprios somos. Pense bem
se podia algum dia viver sem escrever poesia.
Pense muito na sua infância, diga baixo o Nininho quer jinhos,
e veja se é capaz de não ter a menor vergonha
de escrever sem ter nada para dizer.
Por hoje é tudo. Amanhã encontramo-nos à mesma hora,
neste mesmo café.

(Franz Xaver Kappus foi o destinatário das "Cartas a um Jovem Poeta" de Rainer Maria Rilke; o personagem "em flagrante delito" que "canta a canção do infinito dentro de uma capoeira" e diz que "o Nininho quer jinhos" é reconhecível por detrás de todas as suas máscaras)

© dos poemas: Luís Filipe Castro Mendes; 
da foto abaixo: Amadeu Baptista






 Luís Filipe Castro Mendes, poeta e ficcionista, nasceu em 1950 e, ainda muito novo, entre 1965 e 1967, foi colaborador no jornal Diário de Lisboa-Juvenil. Em 1974, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa e desenvolveu, a partir de 1975, uma carreira diplomática, que o levou a viver, desde 1977, vinte e seis anos no estrangeiro, nomeadamente em funções como Cônsul Geral no Rio de Janeiro e embaixador na Hungria, na Índia, na UNESCO e presentemente junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. É autor, entre outras obras, dos livros de poemas Recados (1983), A Ilha dos Mortos (1991), O Jogo de Fazer Versos (1993), Modos de Música (1994), Outras Canções (1996), Os Amantes Obscuros (2001), Os Dias Inventados (2001),Lendas da Índia (2011), A Misericórdia dos Mercados (2014) e da ficção Correspondência Secreta (1998). Teve o Prémio Pen Clube em 1991, o Prémio D.Diniz em 1995 e o Prémio António Quadros em 2012.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Werner Aspenström



Poemas de Werner Aspenström


CARTA DE NEVE

Envio-te uma carta a ti agora
irmã da varanda azul
uma carta escrita em neve
com resposta às tuas muitas perguntas.
Um cavalo e um ginete de neve
levá-la-ão até à tua porta.

É verdade que a planície é dolorosamente livre
e que o rei se mostra implacável no seu silêncio.
Dá-me uma montanha e um eco, diz a voz
um suave horizonte estão a pedir os olhos.
A tua preocupação, irmã, é no entanto excessiva:
nestes campos podem erguer-se torres de pássaros
e brancas pombas podem cruzar a névoa da noite
as recordações construir os seus abrigos os sonhos
acender os faróis.

É certo o que perguntas sobre o vento.
Frequentemente alguns equívocos nos convidava a sair
alguém ouvia passos alguém vozes.
Era sempre o mesmo vento cortante
que misturava neve com neve.
Por isso o dia pode ser longo mas os que esperam
esperaram sempre juntos
os despertos compartilham a sua vigília os adormecidos
nomeiam-se no seu sonho.

Há evidentemente calor entre nós
ainda que nos tenhamos convertido em homens de neve
uma fogueira para que estendemos as nossas mãos
ainda que não arda com chamas.
Os que viveram muito tempo sob abóbadas de gelo
podem ser trespassados por um amor desconhecido
um imenso coral que os finos tubos do órgão do sangue
não os deixará ouvir nunca.

Escrevo-te uma carta a ti
irmã da varanda azul
umas letras dizendo-te que penso ficar
Que talvez não regresse nunca.
Bebi um vinho de neve
amo uma mulher de neve.
De neve são o ginete e o cavalo
que agora te levam a carta até à tua porta.

Snölegend, 1949



O ELEFANTE

Os cartazes. Os cartazes.
Os ardentes olhos.
Os ardentes olhos.
As perguntas. As perguntas.
Em cada esquina.
Jesus chegará em brev, estás preparado?
Não.
Adornado com plumas,
à luz dos focos
na cerca aqui perto, fuma o elefante
o cigarrinho da serena loucura.

Trappan, 1964



A CABRA

A cabra cega das Tulherias
puxa um carrinho.
No carinho meninos endomingados
cavaleiritos franceses, daminhas francesas.
Num banco um senhor idoso de chapéu.
Um livro aberto:
«Reflexões introdutórias à história»
Um poeta sueco contempla o homem que lê
e é por sua vez contemplado por uma estátua.
O carrinho desaparece pela direita da fonte
e volta pela esquerda da fonte,
cuja coluna de água se inclina ao vento
sem colapsar.
Paz com a Rússia!
O plano de Napoleão era forçar a Rússia à paz
com um «um só raio»,
500.000 homens não regressaram jamais.
O general Joffre «cuidava dos seus homens».
700.000 soldados que estiveram nas trincheiras do Somme
desejam falar com o general Joffre,
o que «cuidava dos seus homens».
O leitor vira uma página.
Os castanheiros que o rodeiam encarquilham as suas folhas,
já que é essa época do ano
em que os castanheiros encarquilham as suas folhas.
Uma cabra cega caminha pelas Tulherias.
Vai a puxar um carrinho.

Trappan, 1964


O LIBERTADOR VIVE

No lugar livre que deixou o Pai
aparcou um Mercedes.
O vazio da Mãe na cozinha
ocupa-a um congelador.
Cadeirões giratórios substituem
a Irmãos e Irmãs.
O tapete:
erva.
A luz da lâmpada de leitura ilumina
mais adequadamente que a do Sol.
A voz gritada da Rádio silencia as Vozes.
A televisão mostra imagens do Mundo.

Por fim livre.
O teu umbigo é uma ferida cicatrizada.

Under tiden, 1972


NA ESQUINA, A CAMINHO DOS CORREIOS

Desligou o ferro?
A ela acontece-lhe esquecer-se.
Fechou bem a torneira da água?
Nisso é bastante descuidada.
Escreveu a carta?
Pagou a renda?
À esquina,
o caminho dos Correios,
parece-lhe um trigal,
ela crê ver claramente a saudação das espigas.
Percorre-a com o olhar,
mói-a com a sua ânsia,
amassa na sua cabeça um grande pão
e come-o lentamente.
Depois entra e paga o aluguer.

Ordbok, 1976

AMOR

Ela perguntava-se se podia acariciar o defunto.
A enfermeira respondeu-lhe que sim, que podia.
Não se envenena alguém de cadáver?
Não, não se envenena.
Tinham estado a ver uma reposição na televisão,
ele tinha dado uma profunda inspiração
 então tinha… acontecido.
O ideal seria que os dois nos fôssemos juntos
tinham dito muitas vezes.
Agora ficava ali só
como uma fatia de pão esquecida na torradeira.
A senhora, enfermeira, entende-me?
Entendo-a.
Talvez pudesse lavar-me a mão depois?
Claro que podia.
Mas não é necessário realmente?
Não, não é necessário.
Então vou acariciar, sim, o defunto.

Sorl, 1983


LEOPARDO DAS NEVES

O rastro do leopardo das neves leva sempre a uma gruta.
Na gruta está sempre um homem santo a murmurar
«Isto não é isto»
O monte Chomolungma pode ser outro monte.

Até entre nós, em alturas mais modestas,
o sol cega com a sua obra de dia
e a lua luta com o seu resplendor de noite.
A cidade é talvez outra cidade.

Do que eu preciso não é um leopardo das neves
Mas de um cão pastor que mantenha o limite aos meus fantasmas,
um sólido gradeamento em volta de algo incontestável:

«Isto é isto»

Assim fosse a mais pequena das montanhas,
um grão de silício.

Sorl, 1983


PODES DIZER-MO?

Se Deus está em toda a parte
e tudo repousa em Deus…
Se a borboleta diurna esvoaça
numa luz divina
e a borboleta nocturna voa às cegas
na divina escuridão,
se o hipopótamo se rebola
num barro divino…
Por que se aferra o preguiçoso
com tão convulsa firmeza
ao ramo propriedade de Deus
na árvore enraizada em Deus…

Podes dizer-mo?

Se o nada é tudo
e tudo está no nada…
Sim, como Leonardo nos ensina,
fluem forças,
surgem obstáculos,
emergem redemoinhos,
e esses redemoinhos do rio Arno
ou os prismas da alma
dançam apenas o seu tempo
e logo se apagam…
Por que imita Leonardo
aos pássaros do nada
na Toscana?
Por que sonham as pedras do Arno
com soltar amarras e navegar
até um porto inexistente?

Podes dizer-mo?

Sorl, 1983


PRATA

Com o meu cão de caça
que era um gato,
e a minha espingarda,
uma escada,
saí
para reconquistar
aos corvos
as bagatelas de prata da minha infância.

Varelser 1988



O CARACOL

Apesar do seu escasso talento para dançar em pontas
e a sua natureza geralmente viscosa
o caracol sonha, também o caracol sonha
em participar em obras deslumbrantes
que suspendam a lai da gravidade
–  como o pássaro de fogo.

Quem entre os seres vivos quer cada instante do dia
estar onde está, ser quem é?
Até a lua, que no entanto consideramos morta,
se sente incomodada pelo sonho de chegar a conhecer aqueles
cujas torres e praças e baías ilumina

e uma noite às três desce aqui abaixo
– e encontra-se com todos o que desapareceram.
passeia pelos cais e ruas principais,
procura nas ruas em volta a Igreja Alemã,
olha através das frinchas das cortinas…
Aqui não estão! Aonde?

Muito longe. À deriva, em brancas jangadas de almofadões,
Esparramadas numas águas maiores
Que o pequeno mar Báltico…

Até que amanheça e o dever os volte a chamar
e se metam nas suas apertadas roupas de trabalho
e os seus sapatos de borracha aderente
e o sol obrigue o sol a retroceder
até à invisibilidade…

e além no campo, no jardim,
o caracol arrasta-se no sue esconderijo sob os ruibarbos
para com as suas antenas se adestrar
e se habilitar com as suas ânsias de ingravidez.

Varelser 1988


Versão minha - © Amadeu Baptista





Werner Aspenström (1918-1997). Nasceu em Norrbärke. (província da Dalecarlia). Teve várias profissões enats de se licenciar em Filosofia e Letras em 1945. É uma das figuras da «geração dos 40». Escreveu ensaio, conto e númerosas peças teatrias num acto, e também crítica literária. Traduziu Maiakovski e vários poetas húngaros para a sua língua, o sueco. Em 1981 foi eleito para a Academia Sueca, que abandonou em 1989.


sexta-feira, 21 de março de 2014

DIA MUNDIAL DA POESIA





APONTAMENTO, ENTRE AS PÁGINAS 
DE UM LIVRO DE JORGE DE SENA



Bem mais que a expressão do inefável
seja a expressão do amor a poesia.
Mais longe ainda que o silêncio denso
onde tudo se amplia e se concentra,
seja o amor a expressão mais simples
do que se escreve e passa para o mundo
como mais nítida transparência entre os sinais
que nos entregaram um dia e soubemos
guardar inexoravelmente. Pode o vazio
vir despedaçar-nos, encher-se o coração
de solidão, enegrecer-se a alma
de não haver sentido, desesperar-se
o espírito por não ouvir o anjo,
seja a expressão do amor a poesia.
Onde quer que estejamos há-de estar o indizível,
mas não menos insondável há-de ser o nosso nome
se entre o infinito em que estivermos
for a expressão do amor a poesia.
Bem mais que a expressão do inefável
seja a expressão do amor a poesia.


(in Desenho de Luzes. Amigos de Azertyuiop, Corunha, 1997)





                                                                        © poema e fotos: Amadeu Baptista



quinta-feira, 20 de março de 2014

Cintilações da Sombra / 2



Acaba de ser dada à estampa a antologia poética, coordenada por Victor Oliveira Mateus ', Cintilações da Sombra / 2', com a chancela da Labirinto e do Núcleo de Artes e Letras de Fafe, com um extenso número de colaboradores. Deixo aqui o poema com que participei:



agora é noite e tu estás longe.
nos oceanos andam as estrelas,
tigres pequenos que irradiam luz.
os peixes são do céu, se é primavera.
no mundo o teu retrato se mistura,
indo ver-se mais fundo o que reluz.
assim deve ser sempre, se me olhares.

retratos há que estão em movimento,
intangíveis, perenes, sempre à mão.
bem posso assim dizer-te, desdizer-te.
és a minha beleza porque assim
invoco a tua sombra e o teu brilho,
rumando às tuas mãos e à tua boca.
o que de mais feminino há em mim.


e, contudo, tenho uma jóia na cabeça.
do rio chegam brilhos, incandescências,
enquanto são as sombras musaranhos,
príncipes nem sei de que revolta.
o mais que há em volta
adensa-se desses lumes espontâneos,
sendo que é certa a nossa natureza.

olhando vejo essa nudez estreita
em que o corpo se deita sobre a relva.
dentes pequenos que irradiam brilho.
e tudo se amplia. tudo é lume
nas árvores e nos ramos e nas folhas
onde os nomes se inscrevem para sempre,

ainda que sequer nomes existam.

(in Cintilações da Sombra / 2. Labirinto e Núcleo de Artes e Letras de Fafe, Fafe, 2014)






O lançamento desta antologia ocorrerá no próximo dia 21 de Março (Dia Mundial da Poesia), pelas 18H30, na Sociedade Portuguesa de Autores, cf. as indicações que se seguem:









terça-feira, 18 de março de 2014

Música da Poesia / 2914



Realiza-se amanhã, dia 19 de Março, pelas 19H00 horas, no Museu Grão Vasco, com organização do Conservatório de Música José Azeredo Perdigão, a já habitual leitura de poemas e festa da música, alusiva ao Dia Mundial da Poesia: «Música da Poesia».

O recital com a participação, na leitura dos poemas, de: Amadeu Baptista, Inês Ramos e Isabel Costa.
A música estará cargo da Orquestra de Cordas do Conservatório de Viseu.

Na ocasião será promovido o relançamento da Antologia de Poesia: «Divina Música».

Entrada grátis.


quinta-feira, 13 de março de 2014

Eila Kivikkaho



                                               POEMAS DE EILA KIVIKKAHO


MULHER

Se fosse uma árvore
arrancaria as minhas raízes
de sob a tua janela.
Sou uma mulher. Esperar-te-ei
sob a tua janela.

Niityltä pois, 1951



FORA DO PRADO

Borboletas azuis, olhos de crianças,
procuram a doce flor do ranúnculo.

Mas as escadas dos anos
conduzem-nos para fora do prado
e os nossos olhos têm que se acostumar a outras flores,
linhas em que pensamento se retorce
antes de se converter em destino.

Niityltä pois, 1951



SÓ UMA GAZE

Boas noites
num quarto escuro
como que escavado em carvão.

A noite é cinzenta,
lá há luz,
ainda que seja apenas uma gaze.
Só o quarto é escuro, mais escuro que a noite.

Nem sequer a minha melancolia é uma imagem da vida.
Lá há alegria
ainda que seja só um velo.
Contigo delimitei o meu pensamento
e olha, tudo é melhor na vida
que em mim.

Niityltä pois, 1951



GOSTARIA

I
Gostaria de me sentar no cais
quando o lago está
só e escurece,
quando o vento acalma
e ascende a névoa.
Gostaria de me sentar no cais,
a casa cheio de risos, deslumbrante.

Levanta-te névoa e envolve a casa,
os seus duros sons, o resplendor das suas lâmpadas.
Gostaria de me sentar no cais
até que a noite esteja calma.


II


Dá-me uma passagem suave,
noite que contemplo,
noite que frui.
O orvalho chega silencioso
e a névoa e a manhã.

Uma só passagem suave!
Escondo-a e levo-me

da vida à morte.
Não ao passado, não ao futuro ~
nem sequer de mim a ti.

Niityltä pois, 1951


NA NOITE

Ouço – como não ouvi-lo –:
o pássaro, o pássaro dos pássaros.
Árvore e erva querem dormir.
Acende-se uma estrela, desperta o coração
e canta o pássaro dos pássaros.

Niityltä pois, 1951



RECORDAÇÃO

As palavras não podiam mover montanhas,
as palavras não serviam sequer para abrir uma porta.

Mas quando te foste
salvei-as metendo-as no calor
como passarinhos desvanecidos ao bater contra a janela.

E nunca se cansam de cantar.
E sempre as estou a escutar.

Niityltä pois, 1951


OCULTAR O MAIS ÍNTIMO
Como um insecto imóvel na ramagem
quero imitar algo que ninguém
procure, veja, persiga.  

Venelaulu, 1952


CÂNTAROS

Eu não dependo
mais de fragmentos.
Deram-me uma felicidade inteira.
O que guardo no vaso?
– Os fragmentos do velho cântaro.

Venelaulu, 1952


O BANDO

As aves migratórias voam em cunha
quando partem,
quando começas a viagem.

À chegada
desfaz-se o bando.

Parvi, 1961

COM MUITA CONVERSA

Com muita conversa calo o que calo,
mas as pausas falam,
e a cicuta, as ervas venenosas.

O que não fale
é o espinho mais veneno
que pode crescer na esquina de qualquer tugúrio.

Parvi, 1961


OS PODERES

O calcanhar ferrado
aniquila a açucena ardente
fazendo-a seu escudo.
Parvi, 1961


CRIANÇAS

Arrancaram asas de moscas
porque não eram
asas de borboleta,
asas de borboleta
porque não eram
asas de anjo.

Parvi, 1961

SOBRE A MATÉRIA PRIMA

Até a palavra
impronunciada
devasta
 o bloco de silêncio.

Parvi, 1961



VISÃO

Sem se demorar nos sóis
sem se deter junto às estrelas
acendeu-se uma luz na noite
nas pontas dos dedos
do cego.
Parvi, 1961


ESBOÇO A CARVÃO

O carvão enche o papel
de imagens da sua árvore queimada

milhares de folhas
sombras de folhas

vês?,
assim era verde!


Runojai, 1961-1975


Versão minha - © Amadeu Baptista






Eila Kivikkaho. Nasceu em Sortavala. Trabalhou como empregada de escritório até 1947. Depois, dedicou-se completamente à literatura. Tradutora de literatura infanto-juvenil.

segunda-feira, 10 de março de 2014

CINCO SALTOS COM OS SURREALISTAS # 5



GIORGIO DI CHIRICO: CANÇÃO DO AMOR

é verdade que uma névoa nos cobre os olhos
quando, ao fim da tarde, distinguimos nas coisas
invisíveis os nossos mistérios maiores e mais profundos,
sobretudo se as estátuas são brancas e o silêncio

chega da ordem sobrenatural do mundo, meu amor.
é também verdade que o céu vívido e azul
nos entrega às promessas de tudo quanto queremos
e a morte nunca é residual, sobretudo se as nossas mãos

se apertam e há um aroma etéreo a esfumar-se
sobre as nossas cabeças e os nossos corações
se apaziguam de vez, mesmo sob a ameaça do terror,
mesmo sob a fantasmagoria que sitia as nossas vidas.

é verdade que o amor é uma esfera, um edifício
em chamas, um arco voltaico, uma luva que se vai liquefazer
e que vem de muito longe o pó que aqui repousa,

nesta cidade suicida e ausente, meu amor.

in A Ideia - revista de cultura libertária, nº. 71/2, Évora, Nov. de 2013)
© do poema: Amadeu Baptista

quarta-feira, 5 de março de 2014

Rui Tinoco

4 POEMAS DE RUI TINOCO
(poeta convidado)


o leitor afinal sou eu

o leitor afinal sou eu
a rever o texto: mão
a massajar a cara em
frente ao papel. farrapos
de infância. a memória
longínqua do espanto
das coisas. o leitor afinal sou
eu a erguer-me do texto
a dizer-me: «isto é
solidão». eis uma outra
perspectiva para
a escrita.
sobra, porém, a dança
imperceptível das palavras e,
claro, a anotação meticulosa
dos lapsos.

(inédito)


Tanto sou leitor como …

Tanto sou leitor como
escritor. gosto de brincar
em frente ao espelho, rasgar
o branco com a caneta
para me descobrir, do outro
lado, sentado num cadeirão,
a ler atentamente o texto.
como será esse texto?

(in revista Diversos, nº. 17 )



a vernissage atraiu altas…

a vernissage atraiu
altas individualidades. sentia-se
um cheiro difuso a perfume
as roupas caras amaciavam
o olhar. compareci munido
apenas de uma interrogação.
vi-te a conversar no meio das pessoas
e dos gestos. parecias estar
convencida. os copos de champagne
erguiam-se em hastes esguias
os copos de champagne pareciam
espadas para intimidar. Foi
então que me dirigi ao bengaleiro
deixei a minha pergunta
a troco de uma ficha com
número. nunca me hei-de
esquecer: era
o vinte e cinco.

(in revista Diversos, nº. 17 )



o barco sulcava a espuma

o barco sulcava a espuma,
isto é as palavras e o leitor,
debruçado na proa,
gritou-me, a mim, que estava
recostado na margem: «é capaz
de ser uma boa ideia para um
poema, o que achas?»
não lhe respondi, para estas
coisas é necessária alguma
ponderação. quando cheguei
a casa porém percipitei-me
nas letras, e, concidência!,
não é que o leitor estava
precisamente aqui à minha
espera? há coisas que não
consigo compreender: desembarcou,
parecia feliz,
e eu compreendi que já era demasiado
tarde para contrariá-lo.


(in Era uma vez o Branco, 2013 )







                                                               © dos poemas: Rui Tinoco; da foto: Amadeu Baptista


Rui Tinoco nasceu em Vila Real, em 1971. Viveu em Braga na infância e na adolescência. Em setembro de 2011 publicou o livro de poesia O Segundo Aceno (Águas Santas, Edições Sempre-em-Pé) e o Era uma Vez o Branco em 2013 (Volta d’Mar, Nazaré). Licenciou-se na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, no Porto, onde se doutorou em 2005 e actualmente reside.