segunda-feira, 24 de março de 2014

Werner Aspenström



Poemas de Werner Aspenström


CARTA DE NEVE

Envio-te uma carta a ti agora
irmã da varanda azul
uma carta escrita em neve
com resposta às tuas muitas perguntas.
Um cavalo e um ginete de neve
levá-la-ão até à tua porta.

É verdade que a planície é dolorosamente livre
e que o rei se mostra implacável no seu silêncio.
Dá-me uma montanha e um eco, diz a voz
um suave horizonte estão a pedir os olhos.
A tua preocupação, irmã, é no entanto excessiva:
nestes campos podem erguer-se torres de pássaros
e brancas pombas podem cruzar a névoa da noite
as recordações construir os seus abrigos os sonhos
acender os faróis.

É certo o que perguntas sobre o vento.
Frequentemente alguns equívocos nos convidava a sair
alguém ouvia passos alguém vozes.
Era sempre o mesmo vento cortante
que misturava neve com neve.
Por isso o dia pode ser longo mas os que esperam
esperaram sempre juntos
os despertos compartilham a sua vigília os adormecidos
nomeiam-se no seu sonho.

Há evidentemente calor entre nós
ainda que nos tenhamos convertido em homens de neve
uma fogueira para que estendemos as nossas mãos
ainda que não arda com chamas.
Os que viveram muito tempo sob abóbadas de gelo
podem ser trespassados por um amor desconhecido
um imenso coral que os finos tubos do órgão do sangue
não os deixará ouvir nunca.

Escrevo-te uma carta a ti
irmã da varanda azul
umas letras dizendo-te que penso ficar
Que talvez não regresse nunca.
Bebi um vinho de neve
amo uma mulher de neve.
De neve são o ginete e o cavalo
que agora te levam a carta até à tua porta.

Snölegend, 1949



O ELEFANTE

Os cartazes. Os cartazes.
Os ardentes olhos.
Os ardentes olhos.
As perguntas. As perguntas.
Em cada esquina.
Jesus chegará em brev, estás preparado?
Não.
Adornado com plumas,
à luz dos focos
na cerca aqui perto, fuma o elefante
o cigarrinho da serena loucura.

Trappan, 1964



A CABRA

A cabra cega das Tulherias
puxa um carrinho.
No carinho meninos endomingados
cavaleiritos franceses, daminhas francesas.
Num banco um senhor idoso de chapéu.
Um livro aberto:
«Reflexões introdutórias à história»
Um poeta sueco contempla o homem que lê
e é por sua vez contemplado por uma estátua.
O carrinho desaparece pela direita da fonte
e volta pela esquerda da fonte,
cuja coluna de água se inclina ao vento
sem colapsar.
Paz com a Rússia!
O plano de Napoleão era forçar a Rússia à paz
com um «um só raio»,
500.000 homens não regressaram jamais.
O general Joffre «cuidava dos seus homens».
700.000 soldados que estiveram nas trincheiras do Somme
desejam falar com o general Joffre,
o que «cuidava dos seus homens».
O leitor vira uma página.
Os castanheiros que o rodeiam encarquilham as suas folhas,
já que é essa época do ano
em que os castanheiros encarquilham as suas folhas.
Uma cabra cega caminha pelas Tulherias.
Vai a puxar um carrinho.

Trappan, 1964


O LIBERTADOR VIVE

No lugar livre que deixou o Pai
aparcou um Mercedes.
O vazio da Mãe na cozinha
ocupa-a um congelador.
Cadeirões giratórios substituem
a Irmãos e Irmãs.
O tapete:
erva.
A luz da lâmpada de leitura ilumina
mais adequadamente que a do Sol.
A voz gritada da Rádio silencia as Vozes.
A televisão mostra imagens do Mundo.

Por fim livre.
O teu umbigo é uma ferida cicatrizada.

Under tiden, 1972


NA ESQUINA, A CAMINHO DOS CORREIOS

Desligou o ferro?
A ela acontece-lhe esquecer-se.
Fechou bem a torneira da água?
Nisso é bastante descuidada.
Escreveu a carta?
Pagou a renda?
À esquina,
o caminho dos Correios,
parece-lhe um trigal,
ela crê ver claramente a saudação das espigas.
Percorre-a com o olhar,
mói-a com a sua ânsia,
amassa na sua cabeça um grande pão
e come-o lentamente.
Depois entra e paga o aluguer.

Ordbok, 1976

AMOR

Ela perguntava-se se podia acariciar o defunto.
A enfermeira respondeu-lhe que sim, que podia.
Não se envenena alguém de cadáver?
Não, não se envenena.
Tinham estado a ver uma reposição na televisão,
ele tinha dado uma profunda inspiração
 então tinha… acontecido.
O ideal seria que os dois nos fôssemos juntos
tinham dito muitas vezes.
Agora ficava ali só
como uma fatia de pão esquecida na torradeira.
A senhora, enfermeira, entende-me?
Entendo-a.
Talvez pudesse lavar-me a mão depois?
Claro que podia.
Mas não é necessário realmente?
Não, não é necessário.
Então vou acariciar, sim, o defunto.

Sorl, 1983


LEOPARDO DAS NEVES

O rastro do leopardo das neves leva sempre a uma gruta.
Na gruta está sempre um homem santo a murmurar
«Isto não é isto»
O monte Chomolungma pode ser outro monte.

Até entre nós, em alturas mais modestas,
o sol cega com a sua obra de dia
e a lua luta com o seu resplendor de noite.
A cidade é talvez outra cidade.

Do que eu preciso não é um leopardo das neves
Mas de um cão pastor que mantenha o limite aos meus fantasmas,
um sólido gradeamento em volta de algo incontestável:

«Isto é isto»

Assim fosse a mais pequena das montanhas,
um grão de silício.

Sorl, 1983


PODES DIZER-MO?

Se Deus está em toda a parte
e tudo repousa em Deus…
Se a borboleta diurna esvoaça
numa luz divina
e a borboleta nocturna voa às cegas
na divina escuridão,
se o hipopótamo se rebola
num barro divino…
Por que se aferra o preguiçoso
com tão convulsa firmeza
ao ramo propriedade de Deus
na árvore enraizada em Deus…

Podes dizer-mo?

Se o nada é tudo
e tudo está no nada…
Sim, como Leonardo nos ensina,
fluem forças,
surgem obstáculos,
emergem redemoinhos,
e esses redemoinhos do rio Arno
ou os prismas da alma
dançam apenas o seu tempo
e logo se apagam…
Por que imita Leonardo
aos pássaros do nada
na Toscana?
Por que sonham as pedras do Arno
com soltar amarras e navegar
até um porto inexistente?

Podes dizer-mo?

Sorl, 1983


PRATA

Com o meu cão de caça
que era um gato,
e a minha espingarda,
uma escada,
saí
para reconquistar
aos corvos
as bagatelas de prata da minha infância.

Varelser 1988



O CARACOL

Apesar do seu escasso talento para dançar em pontas
e a sua natureza geralmente viscosa
o caracol sonha, também o caracol sonha
em participar em obras deslumbrantes
que suspendam a lai da gravidade
–  como o pássaro de fogo.

Quem entre os seres vivos quer cada instante do dia
estar onde está, ser quem é?
Até a lua, que no entanto consideramos morta,
se sente incomodada pelo sonho de chegar a conhecer aqueles
cujas torres e praças e baías ilumina

e uma noite às três desce aqui abaixo
– e encontra-se com todos o que desapareceram.
passeia pelos cais e ruas principais,
procura nas ruas em volta a Igreja Alemã,
olha através das frinchas das cortinas…
Aqui não estão! Aonde?

Muito longe. À deriva, em brancas jangadas de almofadões,
Esparramadas numas águas maiores
Que o pequeno mar Báltico…

Até que amanheça e o dever os volte a chamar
e se metam nas suas apertadas roupas de trabalho
e os seus sapatos de borracha aderente
e o sol obrigue o sol a retroceder
até à invisibilidade…

e além no campo, no jardim,
o caracol arrasta-se no sue esconderijo sob os ruibarbos
para com as suas antenas se adestrar
e se habilitar com as suas ânsias de ingravidez.

Varelser 1988


Versão minha - © Amadeu Baptista





Werner Aspenström (1918-1997). Nasceu em Norrbärke. (província da Dalecarlia). Teve várias profissões enats de se licenciar em Filosofia e Letras em 1945. É uma das figuras da «geração dos 40». Escreveu ensaio, conto e númerosas peças teatrias num acto, e também crítica literária. Traduziu Maiakovski e vários poetas húngaros para a sua língua, o sueco. Em 1981 foi eleito para a Academia Sueca, que abandonou em 1989.


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