sexta-feira, 28 de março de 2014

Luís Filipe Castro Mendes



Luís Filipe Castro Mendes, poeta convidado


OS LIVROS MORTOS

Alguns dizem não deixaremos a poesia,
ela atravessará connosco a miséria do mundo
e aonde quer que cheguemos ela falará por nós.
Outros pensam só num resto de decência,
para a proteger com as mãos, como uma frágil chama
se protege do vento.

Eu não sei. Todos os poemas queimados em praça pública
por louros estudantes arianos e belos,
todos os poetas exilados
em campos de trabalho e redenção pelo povo,
todos os que tiveram de passear
sob apupos e com orelhas de burro na cabeça,
porque burgueses afinal burgueses,
todos esses tiveram o seu prémio afinal.

Para os novos senhores é indiferente:
um simples jogo de linguagem sem pertinência
e sem valor acrescentado nas palavras
não lhes merece qualquer menção. Deixam-nos para trás,
porque somos todos nós afinal tão supérfluos e irrevelantes
como as palavras que caem
dos nossos livros mortos*


*(guilhotinados, sim, guilhotinados,
como a pobre Maria Antonieta
depois da gaffe dos brioches).

Ao fim de um determinado número de anos (dez a quinze), todos os exemplares não vendidos de uma edição de um livro são guilhotinados (destruídos) pelos editores

(nota do autor)



RESPOSTA

Sim, andei por fora
Sim, andei por fora,
por vezes não reconheço as ruas da minha cidade
e há rostos que me envelhecem o coração.
Mas não tenha dúvidas, não precisa de fazer perguntas,
de ficar atento aos meus mínimos movimentos,
de esboçar por dentro de si o desenho
daquilo a que chama a minha alma.
Os comboios param em estações abandonadas, noite dentro,
e nós saímos como passageiros estremunhados e engelhados pelo frio
para cidades desconhecidas, belas e desertas
como todo o tempo que passou.
Sim, eu sei, que estou a fugir ao assunto.
Importa-se de repetir a sua pergunta?



A UM JOVEM POETA

Nos versos não fica nada
do que pensamos ou sentimos:
não se iluda, senhor Kappus.
Nós só jogamos com as palavras que nos deram,
como jogadores profissionais de cartas marcadas
num filme passado no Mississipi,
dentro de um daqueles barcos com rodas a subir o rio.

Bem me pareceu estranho o seu chapéu
e os seus modos alterados, senhor Poeta.
Está em flagrante delitro, hoje não vale a pena de todo
falar consigo.

Não se zangue, senhor Kappus, ouça-me até ao fim.
Anda aí muita banha de cobra nesse negócio da poesia.
Temos muitas vezes que cantar a canção do infinito dentro de uma capoeira
e arrancar a máscara que se agarrou à outra máscara por cima da máscara
que nós próprios somos. Pense bem
se podia algum dia viver sem escrever poesia.
Pense muito na sua infância, diga baixo o Nininho quer jinhos,
e veja se é capaz de não ter a menor vergonha
de escrever sem ter nada para dizer.
Por hoje é tudo. Amanhã encontramo-nos à mesma hora,
neste mesmo café.

(Franz Xaver Kappus foi o destinatário das "Cartas a um Jovem Poeta" de Rainer Maria Rilke; o personagem "em flagrante delito" que "canta a canção do infinito dentro de uma capoeira" e diz que "o Nininho quer jinhos" é reconhecível por detrás de todas as suas máscaras)

© dos poemas: Luís Filipe Castro Mendes; 
da foto abaixo: Amadeu Baptista






 Luís Filipe Castro Mendes, poeta e ficcionista, nasceu em 1950 e, ainda muito novo, entre 1965 e 1967, foi colaborador no jornal Diário de Lisboa-Juvenil. Em 1974, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa e desenvolveu, a partir de 1975, uma carreira diplomática, que o levou a viver, desde 1977, vinte e seis anos no estrangeiro, nomeadamente em funções como Cônsul Geral no Rio de Janeiro e embaixador na Hungria, na Índia, na UNESCO e presentemente junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. É autor, entre outras obras, dos livros de poemas Recados (1983), A Ilha dos Mortos (1991), O Jogo de Fazer Versos (1993), Modos de Música (1994), Outras Canções (1996), Os Amantes Obscuros (2001), Os Dias Inventados (2001),Lendas da Índia (2011), A Misericórdia dos Mercados (2014) e da ficção Correspondência Secreta (1998). Teve o Prémio Pen Clube em 1991, o Prémio D.Diniz em 1995 e o Prémio António Quadros em 2012.

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