sábado, 28 de setembro de 2013

Jens August Schade

     

                                             POEMAS DE JENS AUGUST SCHADE


MULHER

De ouro e fogo é a festa do meu pensamento
por que há medo no teu coração?
atrás dos teus seios crescem flores
cheiras a maçãs e eternidade.

                Den levende violin, 1926


O MEU JOVEM AMOR

O meu jovem amor deixou-me só não recordamos
como
como um barco deslizando para um horizonte azul
como uma nota que vai morrendo assim desapareceu ela
e o sonho abateu-se sobre mim e a terra fez-se distante
como um harmonioso globo de prata
mas apareceste-me em sonhos
a tua voz uma chuva refrescante
a tua boca uma fruta madura para ser comida
feita para um homem esfomeado
lembro-te triste e consoladoramente como uma canção
de pássaros e árvores

existem mulheres que amam a um homem
da mesma maneira que comem uma iguaria ansiada…

                Den levende violin, 1926



A MINHA CANÇÃO

A minha canção sussurra na chaminé
a minha canção está em todas as partes
vagabundeia nocturnamente
tem ligações com as sombras


uiva pelos cantos da casa
e encontra-te como uma imagem
inesquecível do teu espírito nómada

as noites são um torvelinho de neve
o frio chora
o silêncio beija

a minha canção corre pelos caminhos
os postes telegráficos sabem-no
prodigalizam canções de amantes

o clima é meu
somos um
as noites de tempestade
o nosso amor é grande

múltiplas são as nossas carícias
e deliciosas oferendas
o mar tempestuoso
é um eco do meu sangue em ebulição

a minha mulher é ardente
e entrega-se
como a minha canção

                Den levende violin, 1926



NO CAFÉ

Uma formosa canção
um pequeno milagre gracioso,
destila o fonógrafo
enquanto eu estou calado.
E perante o assombro de todos
tiro a cadeira de debaixo de mim
e fico-me sentado no vazio.

Diante de mim está uma rapariga
de dentes feios
e olhar esquivo.
Está calada
– Os dois sabemos
o que sente um no interior do outro
e com força de leões beijam-se as nossas almas.

Ela eleva-se pelo ar
e eu também,
suspensos sobre as mesas
fazemo-nos amigos.
E acompanhados de estrondo e aplausos
por cima do milagre da canção
entrelaçamo-nos
e saímos do café a girar em carrossel.

                Hjerte-Bogen, 1930



DEUS CHEGOU Á CIDADE

         Fragmento

É porque estou na Dinamarca que tenho o aspecto que tenho.

É o trajecto da minha lua por cima da Dinamarca que faz
resplandecer assim o meu rosto!
É o mau amor pela lua que faz que eu dê luz aos seus raios,

é o meu amor pelo amor o que faz que eu escreva poemas sobre ele!

É a minha nostalgia infinita de outras latitudes que faz que o meu coração
estremeça de alegria por ter nascido aqui onde nasci!

É a força em tensão do meu claro espírito o que faz que possa
imaginar o globo terrestre e manter-me em equilíbrio sobre ele!

É o poder que sobre mim tem o meu globo o que faz que eu o domine
– e muito mais do que isso.

_ _ _

Nada me é mais fácil do que mantê-lo abraçado à planta dos meus pés

e de o abandonar de um salto – e para ele, por sua vez, de juntar-se comigo
de um salto para abraçar-se estreitamente a mim –

escutai, como oscila a rua quando caminho por ela!

Não pode prescindir de mim e abraça-se a um dos meus pés tão prontamente
quanto me distancio com o outro!

Oh, isso é o delicioso da terra, que ama os seus filhos e não os deixa
afastar-se dela –

amo-a, porque tem uma cabeça dentro da que em que me encontro –
e essa cabeça parece-se com a minha a julgar pelo que se vê no espelho!

_ _ _

É porque nasci na Dinamarca que tenho o aspecto
que tenho – não poderia ser de outro modo,

é porque nasci na Dinamarca que a minha mãe me mandou
pelo mundo para que modestamente o olho e fale dele como
poeta!
É porque nasci na Dinamarca que escrevi o que escrevo os poemas
que escrevo! Não poderia ser de outro modo!

                Jordens ansigt, 1932



NEVE

Olha, por fim chegou a neve,
e eu que acreditava que não íamos ter neve,
e agora parece realmente que vamos ter
                                         uma considerável quantidade de neve
sem que passemos a vida pensando na neve,
                                         sem que caia um floco.

Também o ar tem neve dentro,
está como que carregado de neve,
talvez haja uma grande tempestade de neve ao longe,
é como se alguém a sentisse dentro de si mesmo,
sem na realidade nada saber,
excepto que vem e então a poderá ver.

Estive o tempo todo à espera da neve,
é divertido que tenha chegado.
Sim, agora está ali mesmo
olha-a, que branca que é,
como esta neve me faz feliz,
eu acreditei todo o tempo, realmente, que ia chegar.

E então ela aparece de repente
é divertido que venha assim, inopinadamente,
sem que faça nada para o conseguir,
eu não sei se a arrebatou o ar,
veio assim por sua conta.

                Kœllingedigte, 1944



NO CINEMA

Nós, dois delinquentes que gostam de ir ao cinema
enquanto milhares de pessoas trabalham com gás e marmelada
e coisas curiosas como formulários de declaração de impostos e outros,
sentimo-nos à vez como gangsters e reis,
quebrando, dessa maneira, as regras do mundo,
ali sentados soprando-nos mutuamente nos ouvidos e fazendo coisas
    estúpidas
no cinema, olhamos as imagens
e toco-te as pernas debaixo do vestido,
pões a mão no meu braço e olhas romanticamente o tecto do salão
enquanto as imagens vão passando e se tornam estranhas,
ágis no corpo, e fazem outras coisas,
enquanto o mundo se arrasta ali em cima no cenário,
fechamos os olhos e pensamos noutras coisas, enquanto se beijam
um contido beijo de cinematográfico ali em cima, que nos afecta
profundamente pela sua inocência, também pela sua alma pura,
porque é ficção. É absolutamente falso
pagam-lhes para aquilo, ganham dinheiro daquela maneira,
enquanto nós estamos sentados e folgamos e o fazemos
    de verdade,
nesse sentido somos delinquentes num mundo atarefado, uns beijos
    mecânicos
propiciam-nos a grande inspiração
para um espectáculo autêntico em casa no nosso
    pequeno teatro selvagem.

                Helvede opløser sig, 1953



UM MORANGO

A misteriosa sensação secreta
de sentir um morango na boca
nunca se poderá comprar com dinheiro.
Não se conhece a razão
mas um morango fazer com que a alma
se ponha de vermelho vivo, até ao fundo.

Este morango, deram-mo esta manhã,
faz-me tão faliz
que ouvi o espaço celeste falar

a coisa mais deliciosa que saboreei.

                Schades højsang, 1958


Versão minha - © Amadeu Baptista


Jens August Schade, nasceu em Skive, em 1903. Fez breves estudos universitários, entra vida de grande boémia. O seu livro de estreia é de 1925. É um dos renovadores da poesia dinamarquesa do séc. XX. Além de uma abundante obra poética, escreveu romance e peça de teatro que indignaram a burguesia pelo seu conteúdo erótico. Faleceu em 1979.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

António Ramos Rosa 1924-2013



NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

(in Viagem Através de Uma Nebulosa)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Kristofer Uppdal

                                  
                                                POEMAS DE KRISTOFER UPPDAL


GARGALHADA DE SÁURIO

                           Um poema sobre a loucura e para ela

Não eu não morro.
Viverei
até à Eternidade.

Ouvi as minhas asas de chifre,
batem,
retumbam pelo Espaço.

Sou um sáurio voador.
E as asas de chifre
alcançam o mineral das estrelas.

Enlaço as minhas asas.
Convertem-se em culatras de chifre,
assesta cornadas
ao sino das estrelas,
até que o mundo inteiro dobra e ressoa.

É o que eu sabia,
eu tinha vivido
na primeira manhã de névoa,
quando tudo era humidade e mais humidade.
Eu era algo brando, mole,
informe,
como os meus suspiros,
esse vagidos de morte
como quando o barro suspira sob os sapatos.


Mas da humidade, do mole,
surgiu um sáurio
com asas de chifre, asas de pedra.

E eu senti crescer pedras e rochas
do mole, do brando
na minha alma
e senti-as estenderem-se sobre a costa
como altas cordilheiras.

Sim, agora sei-o.
Sou um sáurio
que não morrerá nunca.
As minhas garras dobram-se,
enraízam-se
na cinzenta humidade, informe
na manhã matinal.
E as minhas montanhas de chifre
levantam-se
da noite
e da grande escuridão
que flui de todos os tempos.

Sou um sáurio.
E a minha gargalhada
são os golpes das asas de chifre
contra os sinos das estrelas.

Solbløding, 1918



CANÇÃO DO FERROVIÁRIO

Um país azul pardo, na divisão entre noite e dia,
e com a primeira luz diurna no cinzento.
As pessoas levantam-se, como germens de uma húmida terra nocturna,
tomam forma e erguem-se
como pedra de negro azulado contra o pardacento céu matinal,
sonolentas como animais que são despertados.
E olham, assombrados de existir.

O ferroviário emerge da noite,
vagabundo, caminhante sem qualidades.
Caminha só. E em rebanho.
E é em todas as partes a força masculina.
Casa-se raramente. E por isso raramente traz filhos ao mundo.
A corporação de ferroviários extinguir-se-á e desaparecerá,
sem novo sangue de outras classes sociais.
O ferroviário não é proletário de nascimento, nem está marcado pela
    servidão.
É o desafio ansioso de liberdade das outras classes sociais
que abre caminho para a completa liberdade.

Caminham juntos,
e na sua ânsia de liberdade formam unidos o paradigma de ferroviário.
E estão como que carregados de electricidade.
E da sua linguagem faíscam como fluorescências marinhas,
e soam, não só as palavras, mas também o silêncio entre elas.
E se as palavras não chegam, os gestos falam ainda melhor
das suas entranhas e da sua alma.

São como animais de borrasca, se lhes acariciam a pele,
e saltam chispas de filamentos azuis de fogo.

Pele sensível perante toda a injustiça. E lançam-se
contra a injustiça num salto de felino
e obrigam a pôr-se de joelhos forças maiores.
Caminhando. De tarefa em tarefa.
E entre tanto sem nada que fazer.
Jogam às cartas e ganham e perdem.
E sempre fazendo apostas.

O ferroviário encontra pessoas que são permitidas a sair do cárcere
e aprende uma ou outra coisa.
O que aumenta o seu interesse e converte a vida em algo que vale a
    pena.
Apanha o novo do ar vazio que o rodeia
e vigia os movimentos políticos e encoleriza-se.

Os formosos corpos jovens enrijecem.
E é como se o brilho do aço se torna-se azul nele
e como se cantasse no aço.
A enfermidade não pode com ele. Só algum acidente mata de vez
    em quando.
Dando lugar a outro membro da sociedade.

Inúmeras vezes encontra e recolhe algo da sua época
e da sociedade cultural.
A fantasia leva-o u a um mundo de mentira.
E a fé inata de que de todo é capaz
fá-lo escrever poemas e cantar canções de amor
no mesmo ritmo pesado do seu corpo.

Anda à deriva. E a inquietação mando-o
de um lugar a outro, como uma pena ao vento.
Caminha dias e noites sem que lhe chaguem os pés.
Numa taberna da cidade embriaga-se
e nessa noite sente menos o frio da neve.
E logo se embriaga com frequência para poder dormir quente
    na neve.

E o trabalho. E o baralho. E a comida por muitas semanas de fome.
E combates, como quando lutam os animais
só pela luta e para aclamar o mais forte.
E logo se curam mutuamente as feridas
e deitam-se a dormir na mesma cama.

O ferroviário caminho pelo caminho-de-ferro adiante
e pouco a pouco vai ficando com a sensação de que todos estão contra ele.
E movimenta-se contra todos.
Uma mão contra todas as mãos contra ele.

No seu caminhar escreve poemas e constrói o país.
Coloca pedra sobre pedra construindo casas e cidades.
E nas cidades que construiu perde-se.
Mas sempre encontra a saída. E continua escrevendo e criando.
Constrói ferrovias, de um extremo ao outro do país.

E vai como clandestino nas ferrovias que construiu.
Levanta fábricas para tecer e fazer roupa
para aquecer e ornamentar o homem.
E segue o seu caminho semi-nu e gelado
e com um aspecto miserável envolto em farrapos.

Chega o camponês e cava profundamente a terra
e lavra novos campos e fá-los germinar
para alimentar as pessoas e os animais.
E ele segue o seu caminho com um estômago vazio que lhe grita.

Participa na construção de grandes barcos.
E tem ganas de fazer uma viagem a um país longínquo.
E precipita-se com os fechados para tudo o que lhe apetece.

E um dia acorda numa mina do outro lado do mundo.
Entre gentes semi-selvagens, no mais profundo da Austrália.
E permanece aí um tempo, e melhora a cepa.
E um dia de inverno está nos bosques da América,
assombrado perante todo o novo e inesperado que vê.

Escreve e cria constantemente.
A sua vida é uma escritura construída de manhã à noite.
Um mundo matinal cinzento azulado fora do nosso.
E tudo desperta no génesis.
E tudo é cinzento azulado.
E com algo enorme negro que se ergue.
Os homens, os novos homens,
constroem o seu próprio mundo.

Herdsla, 1924



NÃO NOS ACORDEIS

    Vivos, mas como que adormecidos, andamos, apressamo-nos, corremos
pela margem de horríveis abismos, e escalamos escarpados cumes.
    E nenhuma vertigem nos afecta, vamos tranquilos e seguros.
    Porque estamos como que adormecidos
    e não vemos os perigos.

                                   Mas se despertamos –
                                   se alguém nos desperta –

    Não nos acordeis!
    Porque então veríamos e assustar-nos-íamos tanto que veríamos
os perigos.
    E precipitar-nos-íamos de cabeça às profundidades.

    Não nos acordeis!

Jotunbrunnen, 1925



O CRISTAL

Loucura?
Duas classes.
Um crepúsculo que se faz noite.
E uma brasa tão intensa que queima e funde tudo.

No fogo encontra-se o génio.

            *  *  *

Efémero e eterno.
Efémero par ser eterno.
O fogo – a vida, ambos se apagam e morrem.
Mas da cinza surge o cristal,
com o fogo e a vida eternamente no seu brilho.

Jotunbrunnen, 1925


A NATUREZA

    Tudo sussurra e te fala.
Os raios da aurora boreal.
Bosque em lúgubres pântanos.
Orvalho nas flores.
Neve recém caída.
Tudo sussurra e cria o seu labor comum.
Um céu para que a tua alma repouse.

            *  *  *

    O jogo das luzes é sempre vida.
    O jogo das luzes reinventa o morto, consegue tirar
um sorriso, treme ligeiramente como o primeiro pranto.

            *  *  *


    O cinzento é uniforme e por isso nada mais que massa.
    Do cinzento surge aquele que se diferencia –  linhas e traços.

Jotunbrunnen, 1925


A LAGOA

Aí está a lagoa intensamente negra.
Em véus de orvalho matinal.
O homem e a mulher!
Saem do banho.
E estão na praia
Da lagoa.

Dois corpos nus!
No sol matutino!
Homem e mulher!
Deus e Deusa no mundo!
As gotas de água!
Perlam e resplandecem.
Nos corpos de ambos.

A mulher levanta um joelho.
Está ali de pé a tocar o pé.
A água está fresca.

Então apercebem-se deles mesmos.
Na lagoa.
Ali estão um instante no esquecimento.
E reflectem a sua parte dianteira.
Na água.
E estão tão absortos nisso,
de olhar
as suas próprias sombras.
Cada um por seu lado.

Apenas se viram mutuamente.
 E não se viram a si mesmos,
até hoje no espelho de água.
Não se parecem um ao outro em tudo.
E vêem-no.
Estão nus
e não o vêem.

Os dois ali na superfície!
Agora se vêem mutuamente.
No assombro.

Hestane mine, 1963 (póstumo)


Versão minha - © Amadeu Baptista

Kristofer Uppdal (1878-1961). Nasceu em Beistad. Órfão aos nove anos, foi trabalhador agrícola, pastor, e executou diversas tarefas na construção de linhas férreas. Activista sindical. Estreou-se como poeta em 1905. É o criador do romance proletário norueguês, com uma notável descrição do movimento operário.





terça-feira, 10 de setembro de 2013

Harry Martison



                                               POEMAS DE HARRY MARTISON



NAVIO LANÇA-CABOS

Içamos o cabo submarino entre Barbados e Tortuga,
mantivemos ao alto os faróis
e cobrimos com borracha nova a ferida das suas voltas,
15 graus de latitude norte, 61 graus de longitude oeste.
Quando encostamos a orelha ao ponto desgastado
ouvimos como zunia dentro do cabo.

– São os milionários de Montreal e de Saint-John que falam
sobre o preço do açúcar cubano e da diminuição dos
nossos salários, disse um de nós.

Ali permanecemos um largo momento pensando, num círculo de faróis,
nós, pacientes operários,
depois submergimos o cabo reparado deixando-o no seu sítio,
nas profundidades do mar.

Nomad, 1931



FORÇA

O engenheiro está sentado junto à roda
lendo na tarde de junho.
A central eléctrica murmura introvertida nas turbinas,
espessamente embutido pulsa o seu coração tranquilo e poderoso.
Nem sequer tremem
as folhas da grande bétula branca que se ergue timidamente junto
    à fonte próxima da barragem de concreto.
O ouriço segue cavando ao longo do rio.
O gato do vigilante da ponte escuta esfomeado o gorjear dos
    pássaros.
A silenciosa e vertiginosa força voa sibilante por cabos de centenas
                                         de quilómetros
antes de alvoroçar em pretensiosas cidades.

Natur, 1934



O JOGO

Quando quiseres acreditar que
                                          navegas facilmente conta a corrente,
sobe a correr à ponte numa noite de luar.


A ponte de pedra zarpa imediatamente conta a velha corrente
    de prata.
Nunca tens tempo de chegar, mas na vida muito
tem que ser jogo para que possa viver-se.

Passad, 1931




SONHO INVERNAL

Sonhei que era negro.
Fui preso no hostil bosque invernal
da poderosa brancura:
o clã dos ginetes
dos abetos carregados de neve.
Chegaram aos milhares com os seus pontiagudos capuzes de neve,
foram-se aproximando, cada vez mais densos e brancos,
agarram-me numa clareira do bosque,
untaram-me com breu durante o caminho
e fizeram-me rodar na colina
sobre a infinita quantidade de penas do inverno glacial.
E os risos retumbavam estrondosamente quando eu andava à cegas,
e me distanciava coxeando embebido em humilhação
ao longo do caminho aberto por numerosos passos.
E o eco de vozes brancas
e o eco de brancas montanha ressoava
quando todos me gritavam na orelha besuntada:
Olha, olha! Agora dá gosto viver!
Olha, agora é inverno no mundo!

Cikada, 1953



LI KAN EXPÕE A SUA OPINIÃO SOBRE OS GALOS

Até ao último momento o galo forte continua
a fazer exibições perante a forte e cega vida
para demonstrar que está à sua altura.
Mas o galo que se atreve a ser débil não força nada.
O que opina a vida não pode opiná-lo ele.
O que lhe dá a vida aproveita-o pacificamente
como o frango perseguido a bicadas no bosque da vida.

O seu conceito de vida não é negação, nem ódio, nem desprezo,
mas a triste aceitação, que às vezes pode misturar-se com a alegria
de existir, não obstante, por um breve tempo.
Canta tristemente sobre a tumba do galo forte.

Cikada, 1953



O ESCRAVO DE ASSURBANIPAL

Ser escravo do grande rei Assurbanipal,
o senhor do Universo,
era melhor que ser seu conselheiro ou o seu rei vassalo.
O posto de conselheiro era particularmente inseguro.
A ira do grande rei era a do leão sanguinário.
Numerosos conselheiros foram esfolados.
O trabalho de escravo era, pelo contrário, tolerável, devido a
    uma disposição do grande rei,
segundo a qual escravos, cavalos e cães deviam ser tratados por igual
e estar, além disso, bem alimentados e patentear um aspecto agradável durante
    a sua permanência no palácio.
Como esta disposição se cumpria escrupulosamente
e como os próprios escravos contribuíam para dar uma impressão
    de limpeza,
sobrevivi, enquanto escravo, a muitos bons conselheiros.
Nem sequer o astuto Kasabuk
– perito em fúrias de leão –
logrou sobreviver-me.
A sua pele foi estendida no muro da Ira
enquanto a minha pele era jungida diariamente para o serviço de sentinela.
Eu pertencia à Guarda Aromática.

Cada dia à hora da lavagem
limpavam-me e tratavam-me
com a mesma escrupulosidade dada a um cavalo de caça
                  ou um cão do palácio.
Assim pude viver muito tempo
enquanto muitas notáveis personalidades
eram queimadas como diligentes traças
pelo Grande Rei,
a Lâmpada das lâmpadas.

Gräsen i Thule, 1958


O CONSELHO DE LI TI

Se tens duas moedas, disse Li Ti durante uma viagem,
compra um pão e uma flor.
O pão é para teu alimento.
A flor que comprares significa
que a vida merece ser vivida.

Gräsen i Thule, 1958



A IMPOTÊNCIA

Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.

Gräsen i Thule, 1958



O MUNDO SENTIMENTAL DA UTILIDADE

Desterraram o antigo sofrimento, a antiga dor.
Levantaram o jugo que sobrecarregava o boi da lavoura.
Mas imediatamente após levaram também o boi.

Assim acontece quando a que liberta é a mão da utilidade.
Nas aldeias do país não queda já jugo algum,
mas tão-pouco ficam os bois.

Vagnen, 1960



VIVER DE VERDADE

Viver de verdade é atrever-se a eleger as próprias opiniões
mais do que permitir que obriguem alguém a eleger a sua realidade.
Aconselho-te a que vomites pela boca a realidade que odeias.
Sonha voluntariamente e de preferência o que não quer a tua época.
Separa-te do característico dos tempos vindouros e predecessores.
Os tempos vindouros estão violados e carregados de todas
                as grilhetas inimagináveis
sobretudo as da utilidade e as do insípido bem-estar
com a sua acolchoada segurança, de tão pouco valor para o espírito,
      e os seus carrinhos de brincar para todos.

Vagnen, 1960



NOITE

Inclina-te e olha. Há estrelas no manancial.
Entre os reflexos da folhagem dos eleitos
brilha silenciosa a resplandecente Vénus.
É uma noite de vigor terreal.
Estrela junto a estrela assomam-se
radiantes como uma janela de terra.

Vagnen, 1960




O PRESSÁGIO

Os tártaros detiveram as suas caravanas e fixaram as suas tendas
    de campanha.
De límpidos mananciais descobertos em arvoredos acolhedores
levavam água. Um fresco arroio corria pressuroso e dava-lhes
    peixes.

De uma árvore desceu uma ave de belíssima plumagem.
Pelos seus olhos e o seu pescoço via-se que amava a vida.
Puramente envolta em dúvidas e estremecimentos, deixou-se matar.

Uma vez assada jazia com as patas atadas presas ao corpo.
Todos a olhavam preparando-se para o prazer de a saborear.
Os poderosos paladares estalavam em torno dos bocados,
os dentes moíam surdamente como os próprios moinhos da vida.

Quando já era demasiado tarde os tártaros deram-se conta
do erro que tinham cometido:
tinham assado a ave Fénix e tinham-na comido,
a ave que precisamente naquela época do era mortal e fácil
    de caçar:
a ave da bela plumagem Fong de Tsin.

Antes que tivessem tido tempo para se arrependerem
caiu sobre o mundo uma imensa treva
o sol começou a apagar-se.

Os aterrorizados feiticeiros consideraram o sucedido
como um presságio
e os tártaros mataram vários prisioneiros à chicotada.
Então apareceu o sol e todos os que se tinham escondido
saíram rapidamente das tendas de campanha a gritar de júbilo.
Mas nesse mesmo ano o Khan perdeu a guerra
perante o general de Tsin.


Dikter om ljus och mörker, 1971



A borboleta-limão levanta voo e tange uma campânula.
As palavras poéticas apressam-se para ver se algo se passa.
Mas quase todas as palavras que rodeiam as formosas visões estão
    lastradas.
Já não faz a beleza nenhum obséquio com elas.

Coisas e formas foram choradas equivocadamente.
Lamentozitos sem sentimentos
destruíram os campos poéticos em volta de pardais e campânulas.
Regaram a terra com óleo doce e melaço
lançaram sumo de lírios no meimendro, falsificaram.
Constantemente, os que agora cantam
têm que manter a guarda alta
contra o tonel de melaço e o cântaro de mel.

Da revista Lyrikvännen, 1992 (póstumo)


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 


Harry Martison (1904-1978). O seu pai faleceu quando o poeta era ainda criança. Após esse falecimento a sua mãe abandonou o lar: depois de anos de solidão e abandono, ainda muito jovem, alistou-se na marinha como grumete, tendo vindo a ser, mais tarde, fogueiro. Como marinheiro percorreu todos os mares. Foi o primeiro auto-didacta a ingressar na Academia Sueca (1949). Além de poesia, escreveu também romances e cultivou o desenho e a pintura. Em 1974 foi galardoado com o prémio Nobel de Literatura. Com a chancela da D. Quixote, existe uma extensa recolha da sua poesia: Comboio Camuflado, D. Quixote, Lisboa, 1974 (tradução do sueco por Silva Duarte).
 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Jóhannes úr Kötlum


                                            POEMAS DE  JÓHANNES ÚR KÖTLUM

CHEGOU

Se estamos mortos é que estamos mortos
a noite e o silêncio reinam na nossa tumba
    mas se estamos vivos gritam o céu e a tormenta
à terra e ao mar
e à nossa vida.

Se estamos vivos avançamos a atravessar a negra noite
um archote na mão
subimos ao estreito cinturão radiante
que cinge todos os mares do mundo
    negamo-nos a seguir os mortos à tumba.

Deixemos que os mortos enterrem os seus mortos
enquanto a tormenta explode no nosso cérebro
e o fogo no nosso coração
e elevemos esta esfera ardente, a nossa Terra,
até à imensidão sem limites de um novo dia.

O dia chegou e espalha sol sobre as tumbas
chegou
o dia dos vivos chegou.

Sjödaegra, 1955



RESSUREIÇÃO

Chegam os mortos
com véus brancos
surgem da escura terra

como uma onda dourada
brilha na madrugada
a vida eterna

a vida que deram por nós.

Sjödaegra, 1955



HOMO SAPIENS

Nasci para lutar contra os elementos
estátua bípede de barro com o sopro do seu autor
nas narinas.

Queima-nos o sofrimento: no crisol retiraram-nos a escória
as lágrimas, o sangue… e tudo voltará aonde nasce a fonte
originária

até que nasça o sol. Porque o sol surge do oceano
da desesperança
e na praia os meus filhos recolherão conchas: as conchas
que eu antes tinha quebrado e perdido.

Inteiras as levarão inteiras ao reino da luz
que se avizinha
e os elementos, atirando-se aos seus pés,
abençoarão a minha culpa.

Sjödaegra, 1955


TERREANALIDADE

De ti provenho, maravilhosa terra:

como luz brilham os meus olhos nas tuas flores
como neve se fecham as minhas mãos nas tuas pedras
como brisa agita a minha respiração as tuas ervas
como peixe nado eu na tua água
como pássaro canto no teu bosque
como cordeiro durmo no teu matagal.

Em ti me converterei, maravilhosa terra:

como furacão me movimentarei na tua tormenta
como gota cairei com a tua chuva
como casca arderei no teu fogo
como pó me espalharei no teu barro.

E ressuscitaremos, maravilhosa terra.

Tregaslagur, 1964



ATRÁS

Atrás da demência da guerra
esconde-se uma semente que cresce no deserto
e bebe dos amenos peitos da terra
junto à origem e à fonte
das desgraças do povo enlouquecido
sobe ao sacrifício de umas mãos que cegas
curam as nossas desgraças mais amargas
com centeio ou com rosas

dos grilhões infernais do ódio e do desprezo
liberta-se o amor das almas que procuram
e acende sobre o sofrimento da terra
a luz tão ansiada.

Tregaslagur, 1964



PRUDÊNCIA

Se nos falamos morre a poesia.

Morre a poesia se nos compreendemos
    se nos atrevemos a olharmo-nos nos olhos
ou a esquadrinhar isso que estamos
a procurar sem saber o que é.

Morre a poesia se caminhamos demasiado depressa
    se pisamos com demasiada força a terra
a caminho da meta
    se o barulho dos nossos sapatos desperta as perigosas
forças que dormem na escuridão da noite.

Morre a poesia se desprezamos o silêncio
    se agredimos o secreto
    se forçamos o santuário
e intentamos arrebatar Deus.

Tregaslagur, 1964




PRESSÁGIO

Pátria:

Olho-te com os olhos insones
e acolho-te no teu desmaio invernal.

Língua materna:
O teu manancial canta-me na raiz da língua
e ressuma as suas gotas pelo labirinto.

Mas, oh pátria!, oh língua:

oprime-me o medo
há um corvo pousado no beiral a grasnar horrivelmente
que pressagia esse pássaro negro?

Ný og nid, 1970



CRUCIFIXO

Estendi os meus braços ao mundo
e então viu o Sol
que eu tinha forme de cruz
e carregou o martelo de fogo
e os seus dardos ardentes
e cravou-me a humanidade mortal.

Oh, tu, sofrida humanidade dolente:
em piedade desta tua pobre cruz.

Ný og nid, 1970



A SÓS

Finalmente regressei ao templo dos meus glaciares
flautista das noites de São João
uma florinha vermelha na borda da placa de gelo
lançou as suas raízes
os arroios amenos do degelo bifurcam-se nos meus tornozelos
o panorama muda a cada passo
terminou a fuga
a luz preenche as superfícies do tempo e do espaço
o engano e a dúvida
não jazem escondidos
e já não tenho medo
entrego-me ao deus da terra e não pergunto nada.

Ný og nid, 1970


ENTRE A MAÇA E A PEDRA

O primeiro artífice
de pé perante um penhasco desgastado
prepara o golpe.

No ar
trememos indefesos
entre a maça e a pedra.

N. do T.: a expressão ‘Entre a maça e a pedra’ é o equivalente islandês da expressão portuguesa ‘Entre a espada e a parede’.

Ný og nid, 1970


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 

Jóhannes úr Kötlum (1889-1972). O seu primeiro livro de poemas data de 1926, de tom neo-romântico. Aderindo às ideias socialistas fez reflectir a sua ideologia em muitos dos seus poemas, ainda que tenha sempre usado uma veia lírica para cantar os sentimentos da natureza. Publicou 15 livros de poesia e alguns livros para a infância. Escreveu também romance e ensaios e artigos sobre literatura, cultura e política.