POEMAS DE KRISTOFER UPPDAL
GARGALHADA DE SÁURIO
Um poema sobre a loucura e para ela
Não eu não morro.
Viverei
até à Eternidade.
Ouvi as minhas asas de chifre,
batem,
retumbam pelo Espaço.
Sou um sáurio voador.
E as asas de chifre
alcançam o mineral das estrelas.
Enlaço as minhas asas.
Convertem-se em culatras de chifre,
assesta cornadas
ao sino das estrelas,
até que o mundo inteiro dobra e ressoa.
É o que eu sabia,
eu tinha vivido
na primeira manhã de névoa,
quando tudo era humidade e mais humidade.
Eu era algo brando, mole,
informe,
como os meus suspiros,
esse vagidos de morte
como quando o barro suspira sob os sapatos.
Mas da humidade, do mole,
surgiu um sáurio
com asas de chifre, asas de pedra.
E eu senti crescer pedras e rochas
do mole, do brando
na minha alma
e senti-as estenderem-se sobre a costa
como altas cordilheiras.
Sim, agora sei-o.
Sou um sáurio
que não morrerá nunca.
As minhas garras dobram-se,
enraízam-se
na cinzenta humidade, informe
na manhã matinal.
E as minhas montanhas de chifre
levantam-se
da noite
e da grande escuridão
que flui de todos os tempos.
Sou um sáurio.
E a minha gargalhada
são os golpes das asas de chifre
contra os sinos das estrelas.
Solbløding, 1918
CANÇÃO DO FERROVIÁRIO
Um país azul pardo, na divisão entre noite e dia,
e com a primeira luz diurna no cinzento.
As pessoas levantam-se, como germens de uma húmida terra nocturna,
tomam forma e erguem-se
como pedra de negro azulado contra o pardacento céu matinal,
sonolentas como animais que são despertados.
E olham, assombrados de existir.
O ferroviário emerge da noite,
vagabundo, caminhante sem qualidades.
Caminha só. E em rebanho.
E é em todas as partes a força masculina.
Casa-se raramente. E por isso raramente traz filhos ao mundo.
A corporação de ferroviários extinguir-se-á e desaparecerá,
sem novo sangue de outras classes sociais.
O ferroviário não é proletário de nascimento, nem está marcado pela
servidão.
É o desafio ansioso de liberdade das outras classes sociais
que abre caminho para a completa liberdade.
Caminham juntos,
e na sua ânsia de liberdade formam unidos o paradigma de ferroviário.
E estão como que carregados de electricidade.
E da sua linguagem faíscam como fluorescências marinhas,
e soam, não só as palavras, mas também o silêncio entre elas.
E se as palavras não chegam, os gestos falam ainda melhor
das suas entranhas e da sua alma.
São como animais de borrasca, se lhes acariciam a pele,
e saltam chispas de filamentos azuis de fogo.
Pele sensível perante toda a injustiça. E lançam-se
contra a injustiça num salto de felino
e obrigam a pôr-se de joelhos forças maiores.
Caminhando. De tarefa em tarefa.
E entre tanto sem nada que fazer.
Jogam às cartas e ganham e perdem.
E sempre fazendo apostas.
O ferroviário encontra pessoas que são permitidas a sair do cárcere
e aprende uma ou outra coisa.
O que aumenta o seu interesse e converte a vida em algo que vale a
pena.
Apanha o novo do ar vazio que o rodeia
e vigia os movimentos políticos e encoleriza-se.
Os formosos corpos jovens enrijecem.
E é como se o brilho do aço se torna-se azul nele
e como se cantasse no aço.
A enfermidade não pode com ele. Só algum acidente mata de vez
em quando.
Dando lugar a outro membro da sociedade.
Inúmeras vezes encontra e recolhe algo da sua época
e da sociedade cultural.
A fantasia leva-o u a um mundo de mentira.
E a fé inata de que de todo é capaz
fá-lo escrever poemas e cantar canções de amor
no mesmo ritmo pesado do seu corpo.
Anda à deriva. E a inquietação mando-o
de um lugar a outro, como uma pena ao vento.
Caminha dias e noites sem que lhe chaguem os pés.
Numa taberna da cidade embriaga-se
e nessa noite sente menos o frio da neve.
E logo se embriaga com frequência para poder dormir quente
na neve.
E o trabalho. E o baralho. E a comida por muitas semanas de fome.
E combates, como quando lutam os animais
só pela luta e para aclamar o mais forte.
E logo se curam mutuamente as feridas
e deitam-se a dormir na mesma cama.
O ferroviário caminho pelo caminho-de-ferro adiante
e pouco a pouco vai ficando com a sensação de que todos estão contra ele.
E movimenta-se contra todos.
Uma mão contra todas as mãos contra ele.
No seu caminhar escreve poemas e constrói o país.
Coloca pedra sobre pedra construindo casas e cidades.
E nas cidades que construiu perde-se.
Mas sempre encontra a saída. E continua escrevendo e criando.
Constrói ferrovias, de um extremo ao outro do país.
E vai como clandestino nas ferrovias que construiu.
Levanta fábricas para tecer e fazer roupa
para aquecer e ornamentar o homem.
E segue o seu caminho semi-nu e gelado
e com um aspecto miserável envolto em farrapos.
Chega o camponês e cava profundamente a terra
e lavra novos campos e fá-los germinar
para alimentar as pessoas e os animais.
E ele segue o seu caminho com um estômago vazio que lhe grita.
Participa na construção de grandes barcos.
E tem ganas de fazer uma viagem a um país longínquo.
E precipita-se com os fechados para tudo o que lhe apetece.
E um dia acorda numa mina do outro lado do mundo.
Entre gentes semi-selvagens, no mais profundo da Austrália.
E permanece aí um tempo, e melhora a cepa.
E um dia de inverno está nos bosques da América,
assombrado perante todo o novo e inesperado que vê.
Escreve e cria constantemente.
A sua vida é uma escritura construída de manhã à noite.
Um mundo matinal cinzento azulado fora do nosso.
E tudo desperta no génesis.
E tudo é cinzento azulado.
E com algo enorme negro que se ergue.
Os homens, os novos homens,
constroem o seu próprio mundo.
Herdsla, 1924
NÃO NOS ACORDEIS
Vivos, mas como que adormecidos, andamos, apressamo-nos, corremos
pela margem de horríveis abismos, e escalamos escarpados cumes.
E nenhuma vertigem nos afecta, vamos tranquilos e seguros.
Porque estamos como que adormecidos
e não vemos os perigos.
Mas se despertamos –
se alguém nos desperta –
Não nos acordeis!
Porque então veríamos e assustar-nos-íamos tanto que veríamos
os perigos.
E precipitar-nos-íamos de cabeça às profundidades.
Não nos acordeis!
Jotunbrunnen, 1925
O CRISTAL
Loucura?
Duas classes.
Um crepúsculo que se faz noite.
E uma brasa tão intensa que queima e funde tudo.
No fogo encontra-se o génio.
* * *
Efémero e eterno.
Efémero par ser eterno.
O fogo – a vida, ambos se apagam e morrem.
Mas da cinza surge o cristal,
com o fogo e a vida eternamente no seu brilho.
Jotunbrunnen, 1925
A NATUREZA
Tudo sussurra e te fala.
Os raios da aurora boreal.
Bosque em lúgubres pântanos.
Orvalho nas flores.
Neve recém caída.
Tudo sussurra e cria o seu labor comum.
Um céu para que a tua alma repouse.
* * *
O jogo das luzes é sempre vida.
O jogo das luzes reinventa o morto, consegue tirar
um sorriso, treme ligeiramente como o primeiro pranto.
* * *
O cinzento é uniforme e por isso nada mais que massa.
Do cinzento surge aquele que se diferencia – linhas e traços.
Jotunbrunnen, 1925
A LAGOA
Aí está a lagoa intensamente negra.
Em véus de orvalho matinal.
O homem e a mulher!
Saem do banho.
E estão na praia
Da lagoa.
Dois corpos nus!
No sol matutino!
Homem e mulher!
Deus e Deusa no mundo!
As gotas de água!
Perlam e resplandecem.
Nos corpos de ambos.
A mulher levanta um joelho.
Está ali de pé a tocar o pé.
A água está fresca.
Então apercebem-se deles mesmos.
Na lagoa.
Ali estão um instante no esquecimento.
E reflectem a sua parte dianteira.
Na água.
E estão tão absortos nisso,
de olhar
as suas próprias sombras.
Cada um por seu lado.
Apenas se viram mutuamente.
E não se viram a si mesmos,
até hoje no espelho de água.
Não se parecem um ao outro em tudo.
E vêem-no.
Estão nus
e não o vêem.
Os dois ali na superfície!
Agora se vêem mutuamente.
No assombro.
Hestane mine, 1963 (póstumo)
Versão minha - © Amadeu Baptista
Kristofer Uppdal (1878-1961). Nasceu em Beistad. Órfão aos nove anos, foi trabalhador agrícola, pastor, e executou diversas tarefas na construção de linhas férreas. Activista sindical. Estreou-se como poeta em 1905. É o criador do romance proletário norueguês, com uma notável descrição do movimento operário.
El cristal y el fuego susurran.
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