terça-feira, 10 de setembro de 2013

Harry Martison



                                               POEMAS DE HARRY MARTISON



NAVIO LANÇA-CABOS

Içamos o cabo submarino entre Barbados e Tortuga,
mantivemos ao alto os faróis
e cobrimos com borracha nova a ferida das suas voltas,
15 graus de latitude norte, 61 graus de longitude oeste.
Quando encostamos a orelha ao ponto desgastado
ouvimos como zunia dentro do cabo.

– São os milionários de Montreal e de Saint-John que falam
sobre o preço do açúcar cubano e da diminuição dos
nossos salários, disse um de nós.

Ali permanecemos um largo momento pensando, num círculo de faróis,
nós, pacientes operários,
depois submergimos o cabo reparado deixando-o no seu sítio,
nas profundidades do mar.

Nomad, 1931



FORÇA

O engenheiro está sentado junto à roda
lendo na tarde de junho.
A central eléctrica murmura introvertida nas turbinas,
espessamente embutido pulsa o seu coração tranquilo e poderoso.
Nem sequer tremem
as folhas da grande bétula branca que se ergue timidamente junto
    à fonte próxima da barragem de concreto.
O ouriço segue cavando ao longo do rio.
O gato do vigilante da ponte escuta esfomeado o gorjear dos
    pássaros.
A silenciosa e vertiginosa força voa sibilante por cabos de centenas
                                         de quilómetros
antes de alvoroçar em pretensiosas cidades.

Natur, 1934



O JOGO

Quando quiseres acreditar que
                                          navegas facilmente conta a corrente,
sobe a correr à ponte numa noite de luar.


A ponte de pedra zarpa imediatamente conta a velha corrente
    de prata.
Nunca tens tempo de chegar, mas na vida muito
tem que ser jogo para que possa viver-se.

Passad, 1931




SONHO INVERNAL

Sonhei que era negro.
Fui preso no hostil bosque invernal
da poderosa brancura:
o clã dos ginetes
dos abetos carregados de neve.
Chegaram aos milhares com os seus pontiagudos capuzes de neve,
foram-se aproximando, cada vez mais densos e brancos,
agarram-me numa clareira do bosque,
untaram-me com breu durante o caminho
e fizeram-me rodar na colina
sobre a infinita quantidade de penas do inverno glacial.
E os risos retumbavam estrondosamente quando eu andava à cegas,
e me distanciava coxeando embebido em humilhação
ao longo do caminho aberto por numerosos passos.
E o eco de vozes brancas
e o eco de brancas montanha ressoava
quando todos me gritavam na orelha besuntada:
Olha, olha! Agora dá gosto viver!
Olha, agora é inverno no mundo!

Cikada, 1953



LI KAN EXPÕE A SUA OPINIÃO SOBRE OS GALOS

Até ao último momento o galo forte continua
a fazer exibições perante a forte e cega vida
para demonstrar que está à sua altura.
Mas o galo que se atreve a ser débil não força nada.
O que opina a vida não pode opiná-lo ele.
O que lhe dá a vida aproveita-o pacificamente
como o frango perseguido a bicadas no bosque da vida.

O seu conceito de vida não é negação, nem ódio, nem desprezo,
mas a triste aceitação, que às vezes pode misturar-se com a alegria
de existir, não obstante, por um breve tempo.
Canta tristemente sobre a tumba do galo forte.

Cikada, 1953



O ESCRAVO DE ASSURBANIPAL

Ser escravo do grande rei Assurbanipal,
o senhor do Universo,
era melhor que ser seu conselheiro ou o seu rei vassalo.
O posto de conselheiro era particularmente inseguro.
A ira do grande rei era a do leão sanguinário.
Numerosos conselheiros foram esfolados.
O trabalho de escravo era, pelo contrário, tolerável, devido a
    uma disposição do grande rei,
segundo a qual escravos, cavalos e cães deviam ser tratados por igual
e estar, além disso, bem alimentados e patentear um aspecto agradável durante
    a sua permanência no palácio.
Como esta disposição se cumpria escrupulosamente
e como os próprios escravos contribuíam para dar uma impressão
    de limpeza,
sobrevivi, enquanto escravo, a muitos bons conselheiros.
Nem sequer o astuto Kasabuk
– perito em fúrias de leão –
logrou sobreviver-me.
A sua pele foi estendida no muro da Ira
enquanto a minha pele era jungida diariamente para o serviço de sentinela.
Eu pertencia à Guarda Aromática.

Cada dia à hora da lavagem
limpavam-me e tratavam-me
com a mesma escrupulosidade dada a um cavalo de caça
                  ou um cão do palácio.
Assim pude viver muito tempo
enquanto muitas notáveis personalidades
eram queimadas como diligentes traças
pelo Grande Rei,
a Lâmpada das lâmpadas.

Gräsen i Thule, 1958


O CONSELHO DE LI TI

Se tens duas moedas, disse Li Ti durante uma viagem,
compra um pão e uma flor.
O pão é para teu alimento.
A flor que comprares significa
que a vida merece ser vivida.

Gräsen i Thule, 1958



A IMPOTÊNCIA

Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.

Gräsen i Thule, 1958



O MUNDO SENTIMENTAL DA UTILIDADE

Desterraram o antigo sofrimento, a antiga dor.
Levantaram o jugo que sobrecarregava o boi da lavoura.
Mas imediatamente após levaram também o boi.

Assim acontece quando a que liberta é a mão da utilidade.
Nas aldeias do país não queda já jugo algum,
mas tão-pouco ficam os bois.

Vagnen, 1960



VIVER DE VERDADE

Viver de verdade é atrever-se a eleger as próprias opiniões
mais do que permitir que obriguem alguém a eleger a sua realidade.
Aconselho-te a que vomites pela boca a realidade que odeias.
Sonha voluntariamente e de preferência o que não quer a tua época.
Separa-te do característico dos tempos vindouros e predecessores.
Os tempos vindouros estão violados e carregados de todas
                as grilhetas inimagináveis
sobretudo as da utilidade e as do insípido bem-estar
com a sua acolchoada segurança, de tão pouco valor para o espírito,
      e os seus carrinhos de brincar para todos.

Vagnen, 1960



NOITE

Inclina-te e olha. Há estrelas no manancial.
Entre os reflexos da folhagem dos eleitos
brilha silenciosa a resplandecente Vénus.
É uma noite de vigor terreal.
Estrela junto a estrela assomam-se
radiantes como uma janela de terra.

Vagnen, 1960




O PRESSÁGIO

Os tártaros detiveram as suas caravanas e fixaram as suas tendas
    de campanha.
De límpidos mananciais descobertos em arvoredos acolhedores
levavam água. Um fresco arroio corria pressuroso e dava-lhes
    peixes.

De uma árvore desceu uma ave de belíssima plumagem.
Pelos seus olhos e o seu pescoço via-se que amava a vida.
Puramente envolta em dúvidas e estremecimentos, deixou-se matar.

Uma vez assada jazia com as patas atadas presas ao corpo.
Todos a olhavam preparando-se para o prazer de a saborear.
Os poderosos paladares estalavam em torno dos bocados,
os dentes moíam surdamente como os próprios moinhos da vida.

Quando já era demasiado tarde os tártaros deram-se conta
do erro que tinham cometido:
tinham assado a ave Fénix e tinham-na comido,
a ave que precisamente naquela época do era mortal e fácil
    de caçar:
a ave da bela plumagem Fong de Tsin.

Antes que tivessem tido tempo para se arrependerem
caiu sobre o mundo uma imensa treva
o sol começou a apagar-se.

Os aterrorizados feiticeiros consideraram o sucedido
como um presságio
e os tártaros mataram vários prisioneiros à chicotada.
Então apareceu o sol e todos os que se tinham escondido
saíram rapidamente das tendas de campanha a gritar de júbilo.
Mas nesse mesmo ano o Khan perdeu a guerra
perante o general de Tsin.


Dikter om ljus och mörker, 1971



A borboleta-limão levanta voo e tange uma campânula.
As palavras poéticas apressam-se para ver se algo se passa.
Mas quase todas as palavras que rodeiam as formosas visões estão
    lastradas.
Já não faz a beleza nenhum obséquio com elas.

Coisas e formas foram choradas equivocadamente.
Lamentozitos sem sentimentos
destruíram os campos poéticos em volta de pardais e campânulas.
Regaram a terra com óleo doce e melaço
lançaram sumo de lírios no meimendro, falsificaram.
Constantemente, os que agora cantam
têm que manter a guarda alta
contra o tonel de melaço e o cântaro de mel.

Da revista Lyrikvännen, 1992 (póstumo)


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 


Harry Martison (1904-1978). O seu pai faleceu quando o poeta era ainda criança. Após esse falecimento a sua mãe abandonou o lar: depois de anos de solidão e abandono, ainda muito jovem, alistou-se na marinha como grumete, tendo vindo a ser, mais tarde, fogueiro. Como marinheiro percorreu todos os mares. Foi o primeiro auto-didacta a ingressar na Academia Sueca (1949). Além de poesia, escreveu também romances e cultivou o desenho e a pintura. Em 1974 foi galardoado com o prémio Nobel de Literatura. Com a chancela da D. Quixote, existe uma extensa recolha da sua poesia: Comboio Camuflado, D. Quixote, Lisboa, 1974 (tradução do sueco por Silva Duarte).
 

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