domingo, 31 de março de 2013

Páscoa

Um poema:



NOLI ME TANGERE


Tudo me atinge, sendo alguns dos meus irmãos
os pescadores que conheci em Tiberíades,
e os que cultivavam os campos na Judeia.
E Barrabás, e Judas, e o soldado
romano que me escoltou no horto, e a mulher
que intercedeu por Lázaro, e aquela outra
a quem queriam assassinar com pedras. E as crianças
que Herodes mandou matar, e Herodes, e o guardião do templo
que invectivou o meu nome para que de lá me fosse.
E o grego sábio que anotou por mim a oração
secreta e os austeros desígnios do oráculo,
e o fenício jovem que quis que lhe comprasse
um baiozinho negro.
E os que passaram por mim na estrada larga
e de longe acenaram, e o que acendeu a fogueira  certa noite
em que o frio escaldava e um resto de toucinho comigo dividiu
e uma manta. E o que era paralítico e nem assim andou, e o cego
que quis ver e nada viu, e o que pediu
por outrem, sabendo ser ouvido mesmo não pedindo.
E o que fez pão e não o repartiu, e ídolos adorou, o escaravelho
e o bezerro de oiro. E a que não teve senão
o corpo por enxerga, e se vendeu aos homens, concedendo à ternura
algum espaço para que a própria ternura evoluísse. E o que veio do norte
e perscrutou a lua, e o que foi emboscado e viajou no deserto
e sempre viajou, sem que no deserto houvesse água, orvalho, o vento
dos regressos, e o que voltou a cabeça e viu
a babilónia dos seres, o prometido extermínio,
Gomorra e Sodoma destruídas. Tudo o que é humano me atinge,
porque tudo o que é humano é divino.


in Paixão, Porto, Afrontamento, 2003 - © Amadeu Baptista


Foto - © Amadeu Baptista

segunda-feira, 25 de março de 2013

María Wine


POEMAS DE MARÍA WINE



Ama-me
mas não te aproximes demasiado
deixa espaço para que o amor
se ria da sua felicidade
deixa sempre que um fogo do meu cabelo louro
seja livre.

Feberfötter, 1947



A BELEZA

Há beleza dentro de tudo
à volta de tudo
no presente
no ausente

a beleza é o pássaro azul da eternidade
tem asas
de gelo e neve
de chuva e verdura
de sol e trevas
goteja violetas no coração da pedra
queima cruzes negras na tristeza do olho
cresce como altos ciprestes nos sonhos do homem
perfura o túnel da dor
com a luz da flauta
é uma rapariga jovem
com a flor do trevo de uma encruzilhada a seus pés

a beleza:
flor fechada da boca
vermelha profundidade do beijo
as entrelaçadas linhas de água das extremidades
a minha fogueira
a tua fogueira
alimentada por rosas perdidas da noite

a beleza é o sonho dos cegos com a luz
o relâmpago no olho do veado perseguido
é a donzela da manhã
que vai fiando a sua madeixa de ouro
uma vela para o oblongo barco dos cisnes
é o vento a cavalgar os cavalos dos dia
até aos negros prados da noite

(tu podes colher a beleza na gruta da montanha
onde as estrelas são verdes
e a lua uma pedra negra)

a beleza são os cinco poemas da mão
a inclinação de cisne da nuca perante a tristeza
é o pé azul das profundidades
a caminhar para cima ou para baixo
no momento da despedida é um carro
que foge com o pêlo deitado para trás
ornado por recordações luminosas

no ausente
no presente
em volta de tudo
dentro de tudo
podes encontrar beleza

Född med svarta segel, 1950



Estou cansada de ser estátua
anseio converter-me num nada
que ninguém possa contemplar
estou cansada da gente
que devotamente anda por ali abaixo em pontas
junto a mim pé agrilhoado à pedra
Com a boca aberta e os olhos mudos
olham-me com admiração –
oh, que arrepios me provocam as reverberações dos seus sonhos banais!

Durante centos de anos
escutei a veloz flecha do tempo
que mais nada fez do que matar e matar e matar –
escutei os segredos dos homens
os segredos dos pássaros e das estações:
segredos que mostraram ser unicamente
uma vazia repetição sem fim

Estou cansada de ser estátua
o meu coração de pedra chora sal
quero fundir-me com a terra
até onde não chegue a pá dos homens
quero comer terra
quero cantar com a terra
quero ser terra

Kanskes osäkra båt, 1957


ÁROVRE E POEMA

Aqui está uma árvore:
o vento canta poemas sem palavras
na sua ampla copa.
Sei
que o destino da árvore é transformar-se em papel:
um papel com ânsia de palavras
Sei
de uma palavra
com ânsia de se plasmar no papel
de uma palavra com ânsia de começar um poema
Sei
de um poema não escrito que tem ânsia da sua primeira palavra
de um poema que tem ânsia do seu poeta
Mas sei também
que o poeta sofre
quando se abate a árvore para a transformar em papel.

Nattlandia, 1975


NÃO A QUE TU ACREDITAS

Eu não sou obviamente a
que tu crês que eu sou
Sou um vaga-lume angustiado
que não alcança a sua própria luz
Sou um negro caracol do bosque
a minha casa é uma mancha de baba de brilho Diamantino
e a chuva limpa sempre o meu caminho
Sou uma cria de gato
que fugiu para o alto de uma frondosa copa
e não desce
enquanto a sombra de um pastor alemão
dá passos de lobo ao pé da árvore
Sou uma intrépida medrosa
a alegre triste
e faço como tu
engano-me com meias verdades
sou aceitavelmente impossível em todas as partes

Não
não sou realmente a
que tu crês que sou
Sou duas mãos estendidas
que pedem misericórdia
Sou um ratinho
que rói o queijo que fez em casa
Sou uma buganvília
de aveludada nostalgia
Sou um pequeno pensador
que se abarrota de ideias vertiginosas
mas nunca consegue obter a luz nem sequer
uma centelha delas
Tenho as costas direitas como uma rainha
e no meu interior queixam-se os pequenos filhos da puta
do orgulho

Sou um obstáculo para mim mesma
e para os outros
mas também um grande salto
que faz com que os outros saltem
Sou um bola
que se nega a que o metam na baliza ao pontapé
Sou um pardal
que entesoura migalhas de pão para dar ao cisne
Eu sou isso no meu interior
que nunca aparece do teu interior!

Svårmodets mod, 1977



PAZ

Durmo sem dormir
vivo na tua solidão
com a minha solidão
Uma coisa é certa
e é que dois juntos
são e serão um-mais-um
E também que este mais
nunca será um menos

Espero resposta
luz ou trevas
O pranto está próximo
está sempre pronto
A alegria acostumada à desilusão
vela um pouco mais longe
Veremos quem chega primeiro

Dói-me
mostrar-te que me dói dentro
Reprimo a minha necessidade de queixa
penso em vermelho
ainda que vá de negro

Faço sapatilhas de musgo para os dois
e a sombra de uma carícia que nunca recebi
lavo-me
com as lembranças de outras carícias

Navego por um rio sonolento
O meu corpo é o meu barco
Pequenas ondas embalam-me
O céu é um retrato teu
Descanso com os braços em cruz
Descanso em paz

Lövsus i moll, 1979


Versão minha - © Amadeu Baptista




María Wine (1912-2003), naturalizada sueca(por casamento com o poeta Arthur Lundkvist), nasceu em Copenhagen. Passou a infância num orfanato e foi adoptada. Toda a sua obra está escrita em sueco, compreendendo: poesia, prosa e prosa poética.


sábado, 23 de março de 2013

ÓSCAR LOPES, 1917 - 2013

«Eu sei que não sou Napoleão, nem talvez doido, nem crítico, nem ensaísta, nem mesmo essencialmente professor, linguista ou político, assim como nunca me revejo, num estilo ou numa visão pessoal do mundo, a não ser pelas limitações ou pontos mortos a que se sujeita tudo aquilo a que temos o ensejo e a gana de fazer algum dia. Não confio em qualquer título de auto-reconhecimento, porque tanto as nossas imagens a um espelho polido como as nossas imagens que os olhos alheios nos devolvem estão, não apenas erradas na sua simetria axial, mas medusadas pelo reflexo inverso do nosso próprio olhar que fita, e fixa, essas imagens.
Nunca me senti a fazer crítica: apenas se trata de obedecer a uns impulsos, sempre complicados e em conflito, no sentido de continuar, de algum modo, os movimentos também conflituais de que um texto é feito, ou de que mais evidentemente participa. Não faço linguística: trata-se apenas de, com a mais rigorosa metodologia disponível, reflectir sobre certos gestos do nosso espontâneo modo de falar, gestos que têm que ver com relações especiais de tempo, de atitude e de referência da comunicação social possível. Também não sou político por vocação: apenas nasci num povo em que a luta de classes só não será evidente para uma certa cegueira de espírito, e comungo de uma nação periodicamente renegada por classes dirigentes, que há precisamente seis séculos ardiam em fidelidade dinástica castelhana, há quatro séculos se queriam integrar no grande império pluricontinental dos Habsburgos, e que hoje se pretendem entusiasmados por uma Europa problemática, uma Europa muito diferente daquela que, no Canto III d'Os Lusíadas, avança, em 15 estrofes, desde os Urales até «onde a terra acaba e o mar começa», ao passo que a nova Europa, a que afinal ainda não pertencíamos detém-se no Oder e ainda parece ter a capital militar no Pentágono.»

[excerto da alocução na entrega do Prémio Jacinto do Prado Coelho (1984), atribuída pela Associação de Críticos Literários em Maio de 1985, transcrita e actualizada in Cifras do Tempo, editorial Caminho, 1990]

sexta-feira, 22 de março de 2013

Thorsteinn frá Hamri



POEMAS DE THORSTEINN FRÁ HAMRI



ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

I svörtum kufli, 1958



FERRO

Esta manhã vi os animais a irem beber
havia fetos nos sulcos e musgo nas palavras
gotejava ferrugenta a chuva dos telhados das casas
como um rumor
ao longe brincava uma criança com chumbo e aço

algo ia acontecer, a aldeia silenciosa,
no pátio homens graves falavam do caminho
em frente havia estranhas pegadas na erva
a terra estava gelada e o musgo bebia água ferrugenta

de pé no portão pensei no que se avizinhava

Tannfé handa nýjum heimi, 1960



MEDO

É este arrepio
o mesmo que nos percorreu
durante mil anos
o espírito dos nossos glaciares
que desejamos fervorosamente poder continuar a chamar assim?

Não, isto é algo diferente
do que antigamente nos fez homens
nos comunicou valor
e vive no nosso inferno e na nossa febre;
deles também queremos continuar a desfrutar.

Não renego o meu medo:
o arrepio da morte e o arrepio da vida
lutam pelas nossas almas, silvam no charco
e exigem soluções;
é a hora de se enfrentarem.

Langnaetti à Kaldadal, 1964



NÃO O CONHEÇO

Tenta entrar no coração da nação
para encontrar a paz e a verdade

e mandar-te-ão ao átrio do sumo sacerdote
junto à fogueira

e lá entre as serviçais ouvirás
muitas negociações culpáveis…

ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

I svörtum kufli, 1958


FERRO

Esta manhã vi os animais a irem beber
havia fetos nos sulcos e musgo nas palavras
gotejava ferrugenta a chuva dos telhados das casas
como um rumor
ao longe brincava uma criança com chumbo e aço

algo ia acontecer, a aldeia silenciosa,
no pátio homens graves falavam do caminho
em frente havia estranhas pegadas na erva
a terra estava gelada e o musgo bebia água ferrugenta

de pé no portão pensei no que se avizinhava

Tannfé handa nýjum heimi, 1960


MEDO

É este arrepio
o mesmo que nos percorreu
durante mil anos
o espírito dos nossos glaciares
que desejamos fervorosamente poder continuar a chamar assim?

Não, isto é algo diferente
do que antigamente nos fez homens
nos comunicou valor
e vive no nosso inferno e na nossa febre;
deles também queremos continuar a desfrutar.

Não renego o meu medo:
o arrepio da morte e o arrepio da vida
lutam pelas nossas almas, silvam no charco
e exigem soluções;
é a hora de se enfrentarem.

Langnaetti à Kaldadal, 1964


NÃO O CONHEÇO

Tenta entrar no coração da nação
para encontrar a paz e a verdade

e mandar-te-ão ao átrio do sumo sacerdote
junto à fogueira

e lá entre as serviçais ouvirás
muitas negociações culpáveis…

Jórvik, 1967


COLONIZAÇÃO

Por detrás da vegetação
elevam-se as colinas nuas;

fugindo da história e da lei
o homem perdido abre um caminho
e olha a rocha
sem dúvidas e sem medos
limpo de toda a culpa:

Este é o meu lar

ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

Jórviki, 1967


VÓS

Vós dissestes: Até à última gota…
E vós que caíste após estas palavras
há um século, um ano, uma hora
ainda assim o vosso sangue flui vivo e quente.

Porque o último é o que ri melhor:
quando parece que é demasiado tarde
a superioridade numérica, a debandada, os cádaveres
misturam-se com o sangue dos descendentes
e conduzem à vitória.

E nas fontes que outrora reflectiam
os vossos rostos suados, sangrentos, emagrecidos
também nós procuramos alívio em dias cálidos.

A água é assim fria e clara
a sua superfície harmoniosa…
e ao contemplarmos a sua quietude
vemos que a nossa imagem se envergonha.

Jórvik, 1967


NÓS ASSASSINOS

Contemplamos com as mãos no regaço
todas as nossas horas feitas em pedaços

tentamos logo
recompor as peças
até que nos cortamos com elas;

cortamos outras
olhamos por fim com as mãos na funda
a cena sangrenta

com um olhar
totalmente
indiferente.

Vedrahjálmur, 1972


ANIMAL

A estrela caiu
e fundiu-se ao glaciar;
tudo se fez torrente;
tudo se mudou em noite.
Desdobramento.
Eu sou um animal esfomeado no redemoinho.
Quando descerem as águas
sê tu o meu relvado.

Vedrahjálmur, 1972



QUEDA

Estabeleces-te com as mãos e os pés
no cume do desejo
e procuras uma nuvem
a que te agarrares se a brisa é propícia
e começa então a tremer a terra.

Gritas na tua queda
mas quem escuta o grito
se o derrube o apaga?

E justamente então esconde o cume do desejo
a ansiada nuvem.

Fidrid úr saeng Daladrottningar, 1977


OUVI FALAR OS PÁSSAROS

Ouvi falar as pássaros
sentado na escarpa;
e falavam-me de um mundo
que confinei em palavras fiáveis.

Mas continuo com somas
verídicas e falsas
junto à escarpa dos pássaros
que faz tempo voaram.

Spjótalög á spegil, 1982


MANHÃ

Uma manhã radiante
ia Deus pela rua
e ouvia somente o rumor dos computadores
em silenciosas torres.

Que agradável é a cidade;
Os robots guardaram
os restos das pessoas
em depósitos fechados.

E no entanto Deus não está contente.
Caminha pela cidade
como se desejasse
poder dizer no fim:

Ainda há aqui um coração que pulsa.

Ný ljód, 1985


CHAMA

Hoje vi as palavras
converterem-se em solas
que com ardor insolente
dançavam
sobre gelos
prigosos.

E as minhas águas, oh Deus –
que somente esperavam
um degelo
tranquilo.

Ný ljód, 1985



COMO RECORDAÇÃO

Instante,
refugio-me em ti, instante,
e não me importa em absoluto
não ter paredes nem tecto

como recordação
como recordação…

Mas instante,
tu,
reflexo do dia
ou sombra de antigo refúgio,

estou aqui só?

Ný ljód, 1985


ORAÇÃO

Poema,
sê tu o refúgio das minhas debilidades.

Sê para elas castelo,
forte,
cela de penitência.

Que mane do pântano um arroio que cruze o chão.

Urdargaldur, 1987


O INSTANTE

Certamente
certamente
as horas são breves e fugazes
mas pensemos na sua profundidade
como serenidade
para a água
e o olho

Urdargaldur, 1987


A PRAÇA

A praça toda branca
como uma noite impaciente que lembro agora
de há muito tempo.

À volta, como num nevão,
nas esquinas, e a cair dos telhados,
redemoinhavam-se a meus pés
desconhecidas, não registadas,
provocadoras horas.

Que passavam… Terão aprendido já
o rápido, o tranquilo,
o natural que é
a sua passagem –

pela cena,
pelos diários,
pelas almas?

A praça como sempre.
De momento neve docemente,
noite,
uma agenda encarquilhada
e um homem

Vatns götur og blóds, 1989

 

COLONIZAÇÃO

Por detrás da vegetação
elevam-se as colinas nuas;

fugindo da história e da lei
o homem perdido abre um caminho
e olha a rocha
sem dúvidas e sem medos
limpo de toda a culpa:

Este é o meu lar

ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

I svörtum kufli, 1958


FERRO

Esta manhã vi os animais a irem beber
havia fetos nos sulcos e musgo nas palavras
gotejava ferrugenta a chuva dos telhados das casas
como um rumor
ao longe brincava uma criança com chumbo e aço

algo ia acontecer, a aldeia silenciosa,
no pátio homens graves falavam do caminho
em frente havia estranhas pegadas na erva
a terra estava gelada e o musgo bebia água ferrugenta

de pé no portão pensei no que se avizinhava

Tannfé handa nýjum heimi, 1960


MEDO

É este arrepio
o mesmo que nos percorreu
durante mil anos
o espírito dos nossos glaciares
que desejamos fervorosamente poder continuar a chamar assim?

Não, isto é algo diferente
do que antigamente nos fez homens
nos comunicou valor
e vive no nosso inferno e na nossa febre;
deles também queremos continuar a desfrutar.

Não renego o meu medo:
o arrepio da morte e o arrepio da vida
lutam pelas nossas almas, silvam no charco
e exigem soluções;
é a hora de se enfrentarem.

Langnaetti à Kaldadal, 1964


NÃO O CONHEÇO

Tenta entrar no coração da nação
para encontrar a paz e a verdade

e mandar-te-ão ao átrio do sumo sacerdote
junto à fogueira

e lá entre as serviçais ouvirás
muitas negociações culpáveis…

Jórvik, 1967


COLONIZAÇÃO

Por detrás da vegetação
elevam-se as colinas nuas;

fugindo da história e da lei
o homem perdido abre um caminho
e olha a rocha
sem dúvidas e sem medos
limpo de toda a culpa:

Este é o meu lar

ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

Jórviki, 1967


VÓS

Vós dissestes: Até à última gota…
E vós que caíste após estas palavras
há um século, um ano, uma hora
ainda assim o vosso sangue flui vivo e quente.

Porque o último é o que ri melhor:
quando parece que é demasiado tarde
a superioridade numérica, a debandada, os cádaveres
misturam-se com o sangue dos descendentes
e conduzem à vitória.

E nas fontes que outrora reflectiam
os vossos rostos suados, sangrentos, emagrecidos
também nós procuramos alívio em dias cálidos.

A água é assim fria e clara
a sua superfície harmoniosa…
e ao contemplarmos a sua quietude
vemos que a nossa imagem se envergonha.

Jórvik, 1967


NÓS ASSASSINOS

Contemplamos com as mãos no regaço
todas as nossas horas feitas em pedaços

tentamos logo
recompor as peças
até que nos cortamos com elas;

cortamos outras
olhamos por fim com as mãos na funda
a cena sangrenta

com um olhar
totalmente
indiferente.

Vedrahjálmur, 1972


ANIMAL

A estrela caiu
e fundiu-se ao glaciar;
tudo se fez torrente;
tudo se mudou em noite.
Desdobramento.
Eu sou um animal esfomeado no redemoinho.
Quando descerem as águas
sê tu o meu relvado.

Vedrahjálmur, 1972



QUEDA

Estabeleces-te com as mãos e os pés
no cume do desejo
e procuras uma nuvem
a que te agarrares se a brisa é propícia
e começa então a tremer a terra.

Gritas na tua queda
mas quem escuta o grito
se o derrube o apaga?

E justamente então esconde o cume do desejo
a ansiada nuvem.

Fidrid úr saeng Daladrottningar, 1977


OUVI FALAR OS PÁSSAROS

Ouvi falar as pássaros
sentado na escarpa;
e falavam-me de um mundo
que confinei em palavras fiáveis.

Mas continuo com somas
verídicas e falsas
junto à escarpa dos pássaros
que faz tempo voaram.

Spjótalög á spegil, 1982


MANHÃ

Uma manhã radiante
ia Deus pela rua
e ouvia somente o rumor dos computadores
em silenciosas torres.

Que agradável é a cidade;
Os robots guardaram
os restos das pessoas
em depósitos fechados.

E no entanto Deus não está contente.
Caminha pela cidade
como se desejasse
poder dizer no fim:

Ainda há aqui um coração que pulsa.

Ný ljód, 1985


CHAMA

Hoje vi as palavras
converterem-se em solas
que com ardor insolente
dançavam
sobre gelos
prigosos.

E as minhas águas, oh Deus –
que somente esperavam
um degelo
tranquilo.

Ný ljód, 1985



COMO RECORDAÇÃO

Instante,
refugio-me em ti, instante,
e não me importa em absoluto
não ter paredes nem tecto

como recordação
como recordação…

Mas instante,
tu,
reflexo do dia
ou sombra de antigo refúgio,

estou aqui só?

Ný ljód, 1985


ORAÇÃO

Poema,
sê tu o refúgio das minhas debilidades.

Sê para elas castelo,
forte,
cela de penitência.

Que mane do pântano um arroio que cruze o chão.

Urdargaldur, 1987


O INSTANTE

Certamente
certamente
as horas são breves e fugazes
mas pensemos na sua profundidade
como serenidade
para a água
e o olho

Urdargaldur, 1987


A PRAÇA

A praça toda branca
como uma noite impaciente que lembro agora
de há muito tempo.

À volta, como num nevão,
nas esquinas, e a cair dos telhados,
redemoinhavam-se a meus pés
desconhecidas, não registadas,
provocadoras horas.

Que passavam… Terão aprendido já
o rápido, o tranquilo,
o natural que é
a sua passagem –

pela cena,
pelos diários,
pelas almas?

A praça como sempre.
De momento neve docemente,
noite,
uma agenda encarquilhada
e um homem

Vatns götur og blóds, 1989

 

ANIMAL

No teu covil aquieta-se a minha alegria
ainda que caminhe só pelos bosques –,
eu, o animal ferido;

busco o teu encontro às primeiras neves
tal como outrora;
alegre
mostrará o sol as nossas pegadas
tal como junto ao mar na primavera
e deitar-se-á longe –

Sim, é-me grato
ser animal conhecer outro animal
e saber que isso é bom

Jórviki, 1967



VÓS

Vós dissestes: Até à última gota…
E vós que caíste após estas palavras
há um século, um ano, uma hora
ainda assim o vosso sangue flui vivo e quente.

Porque o último é o que ri melhor:
quando parece que é demasiado tarde
a superioridade numérica, a debandada, os cádaveres
misturam-se com o sangue dos descendentes
e conduzem à vitória.

E nas fontes que outrora reflectiam
os vossos rostos suados, sangrentos, emagrecidos
também nós procuramos alívio em dias cálidos.

A água é assim fria e clara
a sua superfície harmoniosa…
e ao contemplarmos a sua quietude
vemos que a nossa imagem se envergonha.

Jórvik, 1967



NÓS ASSASSINOS

Contemplamos com as mãos no regaço
todas as nossas horas feitas em pedaços

tentamos logo
recompor as peças
até que nos cortamos com elas;

cortamos outras
olhamos por fim com as mãos na funda
a cena sangrenta

com um olhar
totalmente
indiferente.

Vedrahjálmur, 1972


ANIMAL

A estrela caiu
e fundiu-se ao glaciar;
tudo se fez torrente;
tudo se mudou em noite.
Desdobramento.
Eu sou um animal esfomeado no redemoinho.
Quando descerem as águas
sê tu o meu relvado.

Vedrahjálmur, 1972



QUEDA

Estabeleces-te com as mãos e os pés
no cume do desejo
e procuras uma nuvem
a que te agarrares se a brisa é propícia
e começa então a tremer a terra.

Gritas na tua queda
mas quem escuta o grito
se o derrube o apaga?

E justamente então esconde o cume do desejo
a ansiada nuvem.

Fidrid úr saeng Daladrottningar, 1977



OUVI FALAR OS PÁSSAROS

Ouvi falar as pássaros
sentado na escarpa;
e falavam-me de um mundo
que confinei em palavras fiáveis.

Mas continuo com somas
verídicas e falsas
junto à escarpa dos pássaros
que faz tempo voaram.

Spjótalög á spegil, 1982



MANHÃ

Uma manhã radiante
ia Deus pela rua
e ouvia somente o rumor dos computadores
em silenciosas torres.

Que agradável é a cidade;
Os robots guardaram
os restos das pessoas
em depósitos fechados.

E no entanto Deus não está contente.
Caminha pela cidade
como se desejasse
poder dizer no fim:

Ainda há aqui um coração que pulsa.

Ný ljód, 1985



CHAMA

Hoje vi as palavras
converterem-se em solas
que com ardor insolente
dançavam
sobre gelos
prigosos.

E as minhas águas, oh Deus –
que somente esperavam
um degelo
tranquilo.

Ný ljód, 1985




COMO RECORDAÇÃO

Instante,
refugio-me em ti, instante,
e não me importa em absoluto
não ter paredes nem tecto

como recordação
como recordação…

Mas instante,
tu,
reflexo do dia
ou sombra de antigo refúgio,

estou aqui só?

Ný ljód, 1985



ORAÇÃO

Poema,
sê tu o refúgio das minhas debilidades.

Sê para elas castelo,
forte,
cela de penitência.

Que mane do pântano um arroio que cruze o chão.

Urdargaldur, 1987



O INSTANTE

Certamente
certamente
as horas são breves e fugazes
mas pensemos na sua profundidade
como serenidade
para a água
e o olho

Urdargaldur, 1987



A PRAÇA

A praça toda branca
como uma noite impaciente que lembro agora
de há muito tempo.

À volta, como num nevão,
nas esquinas, e a cair dos telhados,
redemoinhavam-se a meus pés
desconhecidas, não registadas,
provocadoras horas.

Que passavam… Terão aprendido já
o rápido, o tranquilo,
o natural que é
a sua passagem –

pela cena,
pelos diários,
pelas almas?

A praça como sempre.
De momento neve docemente,
noite,
uma agenda encarquilhada
e um homem

Vatns götur og blóds, 1989


Versão minha - © Amadeu Baptista


Thorsteinn frá Hamri, nasceu em 1938. Publicou inúmeros livros de poesia. É autor de uma poesia concisa, directa e especialmente austera, ainda que critique duramente alguns aspectos da nossa sociedade, como a guerra, o abuso de poder e a contaminação. Descreve a condição humana utilizando metáforas da natureza ou fazendo referência à história. Publicou também romance e contos infanto-juvenis.