sexta-feira, 1 de março de 2013

Jess Ørnsbo




POEMAS DE JESS ØRNSBO



GUERRA

            Dedicado a Rózewicz

Caminhei pela cidade
com um velho guerrilheiro

Incessantemente rajadas de metralhadora abriam
as fibras dentro dele incessantemente

os cruzamentos das ruas enchiam-no de inquietação
o asfalto desembaraçado para o franco-atirador
e o seu tambor de chumbo

Como se estivesse a dessangrar nos últimos
vinte anos comprava sem cessar
algodão

Os passos dos peões enchiam-no
de terror em vão
procurava convencer as pessoas a
dispersar

Os pátios traseiros pelo contrário punham em ordem
os seus pensamentos

Ele preferia encerrar as lojas
para que as existências
fossem mais duradouras

Vista e não vista
ali uma velha guerra encurralada
atrás da argamassa e aqui
dentro da moldura das janelas
futura guerrilha urbana e tugúrios
na vertical

Quem daquela multidão
da zona de operações da City
leva as mãos da enfermeira e
quem carrega a transparente
caixa torácica

A favor ou contra
a tua opinião é como os círculos
do alvo

Grupos sanguíneos de confiança
lá perto
o político no entanto tranquilo no automóvel
o guarda-costas a bocejar na metade
do ponto de mira

Assim
30 anos depois
o autocarro prossegue o seu caminho balouçando um pouco
e a bolsa abandonada
sem tic-tac no assento
de trás

                Kongen er mulat men hans søn er neger, 1971



MELO

Livremente segundo António das Mortes

Ela disse
assomando à janela com o cachimbo na boca
não deveria ter abandonado nunca
o bordel da Baía
Deveria ter ficado lá dentro das minhas
meias alaranjadas e dentro
da minha aspirina azul
Mais belo o mundo é quando se vê
através de um incêndio depois através
do olho cristalino do álcool e a pers-
pectiva sempre é uma
manhã amputada
como um pêlo da orelha
                – um camponês pôs-se lá fora
                 na praça um cão e
                 o amor concentrado nos pés
                 após o céu um céu de ópera
                 não entendeu o meu nome Enguiazita
                 Bamboleante Babosa Coleante
                 nos anúncios por palavras do lugar.

Kongen er mulat men hans søn er neger, 1971



DE NADA

Os investigadores sustêm que a amabilidade
não é hereditária
então
eliminemos a tempo as mães

Até os relojoeiros assinalam que a força da gravidade
não se herda os relógios
movimentam-se apenas por instinto
do mesmo modo que o pólen da flor
quando esmaga a criança
sob ela e o fumo de uma fogueira quando
despedaça um pássaro
em voo

Por todo o lado há causas
que ninguém usa
hélices que penetram
nas máquinas devorando-as e plácidos escaravelhos
que partem as pernas a todos
os transeuntes

Sê social como o projéctil
quando espumante sai do fuzil
e como um golpe de mar de uma disposição
forasteira navega para
o homem que está junto ao muro para lhe arrancar
a venda dos olhos

Porque naturalmente ninguém deseja
ser encurralado como uma
nuvem na cave:
            eu estou a favor da revolução
            mas em particular a favor do quico
            estou a favor da vítima
            mas sobretudo do delinquente
            estou a favor de todos os acidentes de tráfego
            sempre que o seu resultado seja mortal

Salta camarada o velho
mundo persegue-te salta revolucionário
o teu pai é contabilista
salta sagrada classe média onde
se sonha com beijos que
não engordam

Arrulhadores sons de pombas sobre o telhado
o que me interessa unicamente
é a causalidade
ontem falcão hoje javali
que fantástica inestabilidade a das coisas
a poesia é no fundo apenas
umas quantas citações fugidias e além do mais
submeti o cão
do poeta enquanto ele acariciava uma pessoa
eu sou partidário da
escultura de nus nas capelas mortuárias a minha
luxúria é não figurativa um matemático
grunhido apenas ao anoitecer

Embora muitas vezes sonhe
com uma recordação recente – como o suicida
que só aperta fortemente
para satisfazer a meia
de nylon.

Muitas vezes detenho-me diante de
um escaparate para conhecer o mundo
mugindo de timidez
enumero as coisas: maionese
cargueiro esburacado jornal
braço alga passadiço de barco não seria
melhor para ninguém
colocar-se atrás de uma montra
para que tudo estivesse recolhido de uma vez por todas
e arrastar o escaparate à primeira
dama serrada pela metade com que te encontres
e lá fundir-te com
ela (ela uma cor com a borda inchada
eu mais difusamente uma pressão puramente
marítima) e como tal
exposto como um orgasmo em conserva
prevista para ser aberta
30 anos congelados mais tarde com um gemido
dos criptoeróticos da época
E com efeito
ela manda uma língua sem embalar
ao interior da minha boca
dirige-se para mim com um clique
como um soluço de todas as caixas registadoras do mundo
e a roupa tremula como números
até ao céu

Não atraiçoemos a causalidade
amamentemos a borboleta um instante ainda
consideremos pedagogicamente
a pasta dentífrica que sofre de insónia
comprovemos a solução socialmente mais económica
do cordão dos sapatos
que não chegam à noite na hora de deitar

Tudo está no fundo
bastante simples lá por onde me movo
entre vermes e anarquistas
os curto-circuitos duraram já bastante tempo
e o futuro espreita
morto ao virar da esquina

Este é o país onde os oradores
tartamudeiam onde a ordem
da ordem e a revolta da revolta se parecem reciprocamente
onde todas as bandeiras
só conduzem o pó do ambiente
e o grito é sugado rapidamente
através da ventilação
por tanto
            eu estou a favor da revolução
            mas em particular a favor do quico
            estou a favor da vítima
            mas sobretudo do delinquente
            estou a favor de todos os acidentes de tráfego
            sempre que o seu resultado seja mortal

Kongen er mulat men hans søn er neger, 1971



Versão minha - © Amadeu Baptista



Jess Ørnsbo, nasceu em 1932. Estudos universitários em Copenhaga e na Polónia. É doutorado em Filologia Eslava. Estreou-se como poeta em 1960. É tradutor de poesia e teatro polaco e autor de uma antologia de poesia polaca.  

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