POEMAS DE HENRIK NORDBRANDT
TÚMULOS DE SOLDADOS ALEMÃES
Agora os esqueletos estão ao ar
na fronteira entre o húmus e a argila, como corações
fendidos nas feridas abertas. se no entanto
pulsam, ouvi-los-ão apenas os coxos
os cegos coxos e as larvas de insectos
que dormem o seu sono invernal.
e por causa do teu diário, Querida
menciono que o sol se está a pôr. outubro,
caem as folhas, dirias, como uma suave marcha fúnebre.
mas há também outro som. de terra
depositada na terra, uma caixa de ressonância de terra
colocada em círculos de terra. os cérebros que nada compreenderam
converteram-se nas suas próprias respostas. da confiança:
uma ténue carapaça de osso
separa-nos da metafísica.
Miniaturer, 1967
A CHINA CONTEMPLADA ATARAVÉS DE UM AGUACEIRO GREGO NUM CAFÉ TURCO
o chuvisco
cai no meu café
até que o arrefece
e se derrama
até que o espalha
e o aclara
de modo que aparece
a imagem do fundo.
a imagem de um homem
com barba comprida
na China, diante de um pavilhão chinês
sob a chuva, uma chuva torrencial
que coalhou
em listras
sobre a fachada açoitada pelo vento
e na cara do homem.
sob o café, o leite e o açúcar
que estão a ponto de separar-se
sob o gasto esmalte
os olhos parecem apagados
ou virados para dentro
para a China, na porcelana da chávena
a chávena que lentamente se esvazia de café
e se enche de chuva
chuva clara. a chuva da primavera
pulveriza-se sobre o letreiro da taverna
as fachadas do outro lado da rua
assemelham-se a um grande
muro de porcelana muito gasto
cujo clarão atravessa as folhas de videira
folhas de videira que também estão gastas
como se dentro de uma chávena. o chinês
vê aparecer o sol através de uma folha verde
que caiu na chávena.
a chávena cujo conteúdo
agora está completamente transparente
Syvsoverne, 1969
ESTADO DE EXCEPÇÃO
Tudo no seu lugar:
A mesa no seu lugar e a janela
e a luz da tarde
que entre pela janela
num ângulo determinado
no seu lugar sobre o tabuleiro da mesa.
E o papel sobre a mesa
no seu lugar à luz da tarde.
E as palavras sobre o papel
no seu lugar no contexto.
E os lugares vazios
no seu lugar entre os ocupados.
E a luz da tarde
no seu lugar nos lugares vazios
aqui em finais do verão…
Omgivelser, 1972
NUMA ALDEIA DA ÁSIA
Que difícil nomear as coisas
na ordem correcta:
Os muros de barro rachados que se deixam ver
por trás dos pessegueiros em flor
a hora da oração vespertina
quando alguém desce das montanhas do Este
e o som das vozes infantis, que se calam de súbito
no bosque de bambu de ambos os lados do caminho
Que difícil dizer
qual das coisas chega primeiro…
Os pessegueiros em flor a luz do sol
ou o viajante que desce das montanhas do Este.
A canção, ou as coisas
que a obrigam a ser cantada.
Omgivelser, 1972
ÀS VEZES
Às vezes umas poucas coisas fazem-nos felizes
sem motivo:
O amolgado balde de lata em plena chuva primaveril
sob a cerejeira em flor
precisamente antes de começas a clarear.
Ou as garrafas de vinho tinto
que atiramos pela janela durante a noite
logo depois de…
E às vezes as mesmas coisas fazem-nos infelizes
pelo mesmo motivo.
Omgivelser, 1972
DESEMBARQUE
Após tantas viagens inúteis, depois de tantas tentativas de fuga
sem saber exactamente o que era o que eu procurava
sem convicção, sem carta marítima e transportado por barcos que se
afundavam
depois de ter descrito as coisas que vi, uma e outra vez
tantas vezes, que já deixaram de existir excepto como palavras
– depois de tantas frases vazias e tantas mentiras desnecessárias
de repente volto a viver cada palavra como uma declaração de amor.
E adoro cada palavra porque me obriga a cantar
da mesma maneira que cantamos as tempestades no mar
porque nos obriga a rendermo-nos perante elas e a procurar refúgio
em tantos portos desconhecidos, em tantas ilhas encantadas.
Adoro as cidades onde fomos maltratados, pelo seu nome
as azeitonas negras e o pão, e a palavra para vinho em sete idiomas.
Adoro os países que nunca vimos porque nos obrigaram a inventá-los.
Adoro a terra em chamas porque me obriga a dançar
e as minhas desgastadas máscaras porque me obrigam a rir.
Adoro a minha morte indiferente porque me obriga a viver.
Opbrud og ankomster, 1974
BACLAVA
Sinto-me incomodado em Atenas, em Istambul
tal como em Beirute. Lá as pessoas
parecem saber algo de mim
que eu jamais compreendi,
algo tentador e mortalmente perigoso
como a rua de túmulos submarinos
onde mergulhamos em busca de ânforas o verão passado
um segredo – a meias pressentido
como que espiado pelos olhares dos vendedores de rua
que de súbito me fazem penosamente
consciente do meu esqueleto. Como se as moedas de ouro
que as crianças me oferecem
tivessem sido roubadas do meu próprio túmulo
ontem à noite. E como se elas indiferentes
tivessem esmagado todos os ossos da minha cabeça
para as poder tirar. Como se
a torta que acabei de comer há um instante
tivesse sido adoçada com o meu próprio sangue.
Opbrud og ankomster, 1974
O NOSSO AMOR É COMO BIZÃNCIO
O nosso amor é como Bizâncio
tinha que ter sido
a última noite. Tinha que ter sido
imagino
um clarão nos rostos
daqueles que se juntavam nas ruas
ou formavam pequenos grupos
nas esquinas e nas praças
e falavam em voz baixa
tinha que ter recordado
o clarão que tem o teu rosto
quando pões o cabelo para trás
e me olhas.
Imagino que não falariam
muito e apenas de coisas
assaz insignificantes,
que tentariam falar
e se detivessem
sem ter chegado a dizer o que queriam
e o tentaram de novo
e o perderam de novo
e se olharam mutuamente
e baixaram o olhar.
Os ícones muito antigos, por exemplo
têm o mesmo clarão
que o flamífero clarão de uma cidade em chamas
ou o clarão que a morte anunciada
deixa na fotografia dos mortos prematuros
na recordação dos sobreviventes.
Quando me volto para ti
na cama, tenho a sensação
de entrar numa igreja
que foi queimada
há muito tempo
e onde só ficou
a escuridão nos olhos dos ícones
cheios das chamas que os aniquilaram.
Ode till blœksprutten, 1975
O mais triste do mundo
é uma vela de cera
a arder à luz do sol
uma manhã cedo
depois da noite de amor
que tão delicadamente iluminou.
Oh Deus, não permitas nunca
que o nosso amor chegue a ser assim.
Ode till blœksprutten, 1975
KONIA
Agora já me abrangeu, Oh Jalaleddin,
esse mar de amor de que tu falas.
Em três costas encontrou aquele a que chamo minha
o meu corpo, e eu fui ela, una e vazia.
N. do A. Konia: cidade (e província) da Anatólia Central; (Mawlana Jalaluddin Rumi) Jalaleddin é um mestre da poesia sufi.
Ode till blœksprutten, 1975
Na primavera construíram um hospital à minha volta
para que possa ter um quarto azul em que gritar.
Não sei quem são. Não sei que grito.
Só conheço as respostas, as respostas, as respostas…
Ode till blœksprutten, 1975
KASTELORIZO
Do mar do verão passado agora apenas resta
o reflexo do pôr-do-sol,
do reflexo apenas os rostos
e dos rostos apenas a tua espera.
N. do A.: Kastelorizo, pequena ilha grega do mar Egeu, cuja capital provincial tem também o mesmo nome.
Ode till blœksprutten, 1975
CONQUISTAR BIZÂNCIO
Às vezes, e de muito longe, tens que conquistar Bizâncio.
– Para expulsar o sangue bizantino das tuas veias
para te libertares tu mesmo dos teus membros bizantinos:
As asas cansadas, desdobradas, com as que em sinistros pesadelos
deslizas através de escabrosas sendas de montanhas e de túneis
todo o brilhante metal que carrega os teus braços de marfim
e perfumes, que devoram as pesadas pálpebras dos teus olhos.
Isso é Bizâncio, e tu tens que o conquistar para o dominar.
Conquistar Bizâncio é uma missão para sonhadores.
Só os sonhadores poderão eleger o momento oportuno
o instante entre noite e dia quando a cidade se esconda
na luz dourada, que torna invisíveis os sonhadores
e que reflectem as portas secretas, erguidas pelos sonhadores.
Só os sonhadores, no seu mais profundo sono, podem encontrar
as aberturas
pelas quais o seu sangue anseia derramar-se
e o ouro, de que os seus membros anseiam ser libertados.
Às vezes, e de muito longe, tens que conquistar Bizâncio.
– Para puderes expulsar-te tu mesmo de Bizâncio
para te guiares em volta de ti mesmo com a ajuda das suas ruas
para te fazeres tu mesmo forasteiro perante os seus corpos estranhos
para te fazeres tu mesmo objecto das suas intrigas
para poderes arrancar o teu rosto dos seus ícones
para saborear os teus ossos com os seus túmulos desmoronados
Isso é Bizâncio, e tu tens que a conquistar para te libertares.
Glas, 1976
DIZEM QUE A ALMA NÃO EXISTE
Dizem que a alma não existe
mas quando vejo as marcas
que deixaste na minha
sei que existe:
beatas, manchas circulares dos vasos
papéis enrugados
marcas quase desvanecidas dos selos
e manchas de tinta
fazem invisível até o fantasma mais irreal ou o mais transparente
Como num escritório
onde alguém se tenha metido sub-repticiamente
a meio da noite
para compor um libelo contra Deus
ao clarão do reclame de néon da rua.
Violinbyggernes by, 1985
Versão minha - © Amadeu Baptista
Henrik Nordbrandt, nasceu em 1945. Estudou línguas orientais, chinês e turco, na Universidade de Copenhaga. Viajou por toda a Europa. Durante alguns anos viveu em Espanha e na Turquia. É tradutor de literatura turca. O seu livro de estreia, Digte, data de 1966, tendo publicado entretanto mais de 30 livros. Poeta e ensaísta. É um dos nomes mais reconhecidos da sua geração, tendo recebido vários prémios, entre os quais se conta o prémio Nórdico de Literatura, da academia sueca.