«El escritor portugués Amadeu Baptista ha sido el ganador del XXIX Premio de Poesía Cidade de Ourense por la obra Un pouco acima da miseria. El jurado lo califica como "un libro de excepcional personalidad. Una respiración poética amplia, un trabajo minucioso de lenguaje, que está en la base de una tensión poética intensa". Amadeu Baptista nació en Oporto en 1953. Cuenta con una amplia bibliografía. Colaborador habitual de periódicos, revistas, libros colectivos y antologías en diversos países de Europa y América.»
Para os amigos e visitantes deste blog deixo um poema do original 'Um pouco acima da miséria', que acaba de vencer a edição deste ano do Prémio de Poesia Cidade de Ourense e que conta, desde já, com a publicação da obra a concurso em Espanha:
MURMURAÇÃO DE LEÓN TROTSKY NO SEU LEITO DE MORTE
Natália Sedova, olha-me, peço-te que me olhes fixamente
– de mim não escutarás um único gemido, mas dir-te-ei
que a última flor do terrífico é a beleza, como te disse há muito,
como repetidas vezes te disse e agora repito neste meu último fôlego:
o terrífico é a beleza, tal como tudo é neve em nós,
de vitória em vitória, ou derrota em derrota,
ou um verso aterrador de Pushkin ou Maiakovski.
Não vês a revolução permanente neste trapo vermelho
enrolado à volta da minha cabeça, enquanto ponho
os olhos num infinito não muito distante?
Que te parece este exílio, estes dias luminosos de tequila e mezcal,
estes encontros com Frida, que de tudo fala como se pintasse,
enquanto tu cozinhas deliciosamente e eu escrevo sem parar
como se não haja em nós senão comoção?
Nesta cama, onde já só aguardo a morte,
porque é de morte que estou ferido,
não te parece que tudo em mim potencia a neve e o degelo
em contraponto à dor, esse axioma de múltiplos postulados
que a dialéctica acabará por resolver,
tal como resolverá a luta de classes?
Não te parece que, desde que o mundo é mundo, o mundo
é só mudança e que para a revolução revertem
todos os sacrifícios e todos os sonhos?
Não me viste a conduzir
os exércitos entre Kazen e a Ucrânia
e como, de acordo com Lenine, o encadeamento
das batalhas faz todo o sentido?
Deixa que olhe o tecto desta casa estranha e que veja o que vejo:
com certeza é mágoa o que diviso, mas, ainda assim, deixa
que veja um exército alucinado sempre em marcha, um exército
em busca de futuro, mesmo que não haja futuro, ou não haja
soldados quando a guerra terminar.
Deixa que sinta este arrepio a percorrer-me o corpo
como uma ventania poderosa que varresse a estepe
e nunca mais parasse,
e fizesse de mim um homem retemperado e livre.
Inquieta-te ou não te inquieta o esgar
que me modela o rosto, agora que a morte
penetrou o meu crânio e nada mais poderei fazer
do que sentir estas dores intratáveis e a ligadura
a encher-se de sangue, enquanto tu, Natália Sedova,
pões os olhos em mim e ouves comigo o riso longínquo de Estaline
a celebrar, não a morte de um inimigo de classe,
mas a classe de um inimigo – eu mesmo neste leito,
sem temor, sem pavor pelo fim, apaziguado
pela benignidade revolucionária de quem está a morrer?
Digo que é preciso acautelar as coisas, cada clarão, cada
gesto suspeito, e que não devemos confiar se alguém
se apresentar em nossa casa como sendo um amigo,
um amigo belga que não é belga, mas alguém insidioso
que quer ter uma história para contar, uma história
tremenda, a história do meu assassinato,
e quer frequentar a nossa intimidade para nos matar,
porque no Kremlin governa Estaline e, com ele, está a neve,
a neve implacável que sem tréguas nos persegue
e é um curso sangrento, entre sápatras e sequazes,
um curso de brancura que nos quer eliminar.
Creio na fuga, no exílio permanente.
Talvez a revolução seja isso, ter um inimigo
às costas e nunca lhe ver os olhos,
e ter de dormir com a eficácia de um fugitivo,
juntando as botas a um canto, e os filhos,
e toda a parafernália de pensamentos
que aliviem, ainda que por instantes,
o medo e o paroxismo de ser acossado
por uma mão invisível e omnipotente, uma mão
mais poderosa que a mão do acaso, ou a mão de Deus.
Abro a cigarreira e é neve o que encontro,
a caneta que uso é com neve que a encho,
e, quando escrevo, é neve o que alastra
no papel, neve a expandir-se sobre a terra,
enquanto a minha boca é neve que cospe,
a neve da proscrição, a neve da Sibéria,
da Turquia e da França, neve infinita
como a única amargura de quem não pode permanecer
em qualquer lugar que esteja e, em cada sombra,
apreende uma ameaça, em cada ruído, em cada
estalido das juntas de madeira da cama em que dorme.
O que digo é que uma sombra pode soterrar um homem,
uma sombra entre as sombras pode envenenar
a alma de um homem, e que as sombras são como a neve,
estendem-se à frente dos olhos e é como se a luz
favorecesse a ameaça, e fosse a revolução a própria ameaça,
e nada mais houvesse que essa ameaça a perseguir-nos a cada instante
e em todos os lugares, de Kronstadt à Cidade do México,
de todos os lugares em que estive até todos os papéis que escrevi,
do mais simples panfleto até à sentença de morte de um desertor
ou de um burguês contra-revolucionário.
Creio na fuga, digo. Na fuga há uma tensão que favorece
o improviso, e a vida é isso mesmo, um improviso perpétuo
para sobreviver: junta-se um fio a outro, e outro a outro,
até que fica pronta a bagagem que essa corda
há-de prender – nessa mala depomos tudo o que é nosso,
os livros que escrevemos, as mulheres que amamos,
as sombras que a nossa intimidade reconheceu
e a corda do improviso ata a esse passo decisivo,
a fuga que é preciso empreender porque as sombras, tal como a neve,
podem adquirir qualquer forma para quem é ameaçado,
a forma de um punhal, de uma pistola, de um copo
de veneno, de uma picareta de alpinista, de pontas aguçadas,
pronta a ser desferida sobre a nossa cabeça.
Digo que o exílio é como a neve, sempre e sempre
a adensar-se sobre nós, por mais que o fogo abrase,
ou nos incendeiem a casa, ou, no ímpeto da fuga,
passemos de um país a outro, e no novo país a que aportemos
tudo seja mais cálido, mais confiável, mais acolhedor.
Ah, mas o certo é que pomos um pedaço de neve no samovar,
preparamos o chá e a água fervente, o infusor de prata,
e é sempre neve o que bebemos, a neve perpétua
de nos querermos aquecer por dentro, a conhecer
o frio permanente de quem é acossado
e atrás de si pressente a perseguição implacável.
E os nevões sucederam-se, nevava em Alma Ata,
nevava nos contra-fortes dos montes Tien-Shan,
nevava em Prinkipo, a ilha predilecta da minha afeição,
onde ficou perdido o melhor cão que já tive,
nevava na Noruega – assim como nevou em todas
as casas do precário asilo que me foi permitido,
até mesmo aqui em Coyoacán, sobre a minha mesa de trabalho,
nestes lençóis, sobre a colecção de cactos que iniciei
para aquietar a fadiga da perseguição, da angústia, do desgosto.
Ah, Natália Sedova, está a nevar nesta cama e eu sei
que é o sangue que neva da minha cabeça que alaga as almofadas
e inunda o soalho e as tuas mãos, e que Rámon Mercader, a mando de Estaline,
conseguiu o queria, dar-me o golpe que a todos recompensa, por esta neve
infalível que sempre me acompanhou e me há-de levar
ao sepulcro e ao tempo futuro.
© de Amadeu Baptista
¡Enhorabuena!
ResponderEliminarFeliz contemplado com um poema tão bonito...Parabéns Amadeu.
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