quinta-feira, 7 de março de 2013

Kai Nieminen




UM LONGO POEMA DE KAI NIEMINEN



FUGA

Prólogo


Tratar de alcançar o que foge
inventar nomes
andar às cegas no caos, tratar de
entender, em vão

            que tem pois de mal o caos?

Desapareço na realidade que, como sempre, se abre perante mim sem
fundo e imediatamente cheia de vazio que as ideais criaram
na mente.

As árvores deixam de ser signos,
a paisagem de ser paisagem:
            só é presença
Os pássaros falam aos pássaros, não a mim
a neve deixa de ser a luz do inverno,
            é apenas neve, fria, branca
e existe: o que existe, existe,
            não significa nada, não tem intenção alguma

tudo se detém e começa ao mesmo tempo
eu desapareço e regresso imediatamente
            desaparecido em presença de tudo
as palavras acabam:
            quando tento dizer algo
                        começo a falar do que acaba,
                        do desaparecimento


quando finalmente me encontro na minha pele, na consciência e
na mente, faço-me homem, começo a procurar às cegas palavras
            como a escrita das árvores, o canto do tordo
                        a luz da neve
e com a ajuda das palavras trato de recordar como é

            as palavras chegam quando começa o tempo


primavera


no instante seguinte abre-se na neve um buraco negro
no instante seguinte o negro torna-se verde
no instante seguinte e no seguinte

a bruma que quando se dissipa nos deixa ver terra congelada
            a mente vazia, sem nostalgia,
sem receptividade,
            nem feliz nem infeliz;
anotado: bruma que pouco a pouco se dissipa,
tudo no seu sítio

Não compreendo de onde tiramos a nossa esperança, em todo o caso não do que sabemos: vive em nós um instinto como o que diz aos pássaros dos trópicos que agora estão a aumentar no norte? Os homens começam a descongelar, nos rostos que os flocos de neve fustigam aparece às vezes um estúpido sorriso ainda que todos tratem de ocultar que esperam impacientes as noites brancas. Os olhos dirigem-se ao interior, para recordações que são verdadeiras só no sentido mais sagrado da palavra.
Pouco a pouco vamos perdoando.

O arroio arrulha como uma codorniz
estas noites de início da primavera prometem acabar
e embriagados pela mera recordação
                        acreditamos em cada palavra.
                                   Sobre o estreito coberto de gelo
a narceja repete o mesmo: vai ser verão.

como se somente o verão tivesse importância
            e a primavera fosse apenas um tempo de espera;
se na primavera não esqueces o verão
                        o outono não te deixará em paz no verão.

Pode existir aqui tudo ao mesmo tempo
o passado, o futuro, o sussurro do vento
o nascimento do sol, o tordo na copa do abeto,
a aranha na sua aérea travessia
e o bramido do alce no mato.
            Nada falta,
não, em verdade nada falta;
o corvo cacareja cruamente
            uma manhã saberei porquê.

em todas as partes e sempre
um sussurro grave, apenas audível
            como um rumor de três decibéis,
                        uma recordação do princípio de tudo:
quase ouves os perfis dos sons
            quando os ecos das imagens cintilam dentro do ouvido

exijo que a primavera volta a começar desde o início,
as vergônteas, as folhas jovens
            as anémonas, os melros e o cheira a terra
cheguei tarde


verão

as nuvens vêm e vão
            de manhã à noite
                        as nuvens vêm e vão de novo


O morcego projecta duas sombras: quando o perco de vista vejo a sua imagem reflectida na água. De vez em quando os peixes saltitam, o sol está tão baixo no horizonte como só pode estar nesta época do ano. Os pássaros estão silenciosos. Sou uma parte disto, pergunto-me, ou sou um estranho, que sequer está aqui? Nada muda. É o mesmo, tudo seria igual mesmo se aqui não estivesse. O que ocorre aqui é muito importante embora careça de significado. Os lírios estão a ponto de florescer. O morcego sai a revolutear da sombra dos juncos; ao esquivar-me indica que existo. Seria talvez isso o que vim procurar; penso, quando me vou.

antes que florescer a laureola
começa o silêncio do verão: a noite suspira
            depois sustém a respiração e espera
                        que ao menos um pássaro ainda assim
                        diga algo

de manhã a luz é verde
                        o caminho abre-se para adiante
                                   fecha-se para trás
                                               e tu estás aqui no centro de tudo
solitário até que deixes de estar
no centro de tudo e comeces a ser

o céu está deserto, silencioso
só um sol solitário
que no seu ritmo se aproxima das copas das árvores
de súbito precipitam-se dezenas de andorinhas do vazio
o espaço ferve de gritos, arcos, descensos

não são sinais, são significados
            são respostas
não perguntes, dá-te por satisfeito

e com a mesma rapidez desapareceram
                        todas,
                        precisamente quando

uma borboleta resplandece entre as sombras do bosque,
desvelada por um brilhante raio de sol que cai não se sabe de onde
e que de repente desaparece,
            no entanto sabes que está em alguma parte
e uma estranha atracção mais profunda que a da recordação obriga-te

a sair do opulento bosque de fetos e a pores-te sob os abetos
com a sua permanente penumbra para poderes ver tudo sem seres visto


outono

Um aroma no ar transparente
            como se alguém tivesse dito «não me esqueças nunca,
não esperes cartas»
            e o grito libertado pelas cegonhas,
a indizível alegria da partida, melancolia.

A teia de fumo do outono que se vai adensando esconde atrás de si o verão, cada vez mais seco e mais encolhido, o esplendor da folhagem deslumbra os olhos e o embriagador aroma da podridão apaga todas as lembranças: agora começa a realidade, o céu ruge, o bosque retumba, a escuridão agarra-te e abraça-te de tal forma que te deixa sem fôlego. O que saiu da terra volta à terra, parirá cogumelos e sentir-se-á em casa.

As estrelas começam a acender-se e compreende-se de alguma maneira que agora tudo terminou: independentemente do que esperavas e de como aconteceu. As bétulas amarelas resplandecem nas trevas, fantasmas do passado verão, para assegurar que não esqueces. De repente atravessa-te a alegria: és livre! As folhas caídas rangem sob os teus pés, desvias-te das árvores e ris-te às gargalhadas. A noroeste eleva-se uma cortina de nuvens que oculta as estrelas.

Que neve já e que as noites sejam mais claras e que o sangue circule mais lento e que acabe a nostalgia. Ámen. E que isso dure muito.

A lua, naturalmente a lua
e o orvalho que brilha na erva
e os gansos: primeiro apenas um cacarejo e depois
um rumor de asas
            uma ténue nuvem atravessa veloz a lua

cada vez o mesmo assombro
que jovem é este mundo,
que pequeno e recém-nascido.

A noite revolve-se inquieta de um lado para outro, e sopra e treme, disposta a uma fuga selvagem e tão prontamente quanto se libertou precipita-se em todas as direcções: quer cobrir tudo e nunca mais voltar a clarear e nas suas ânsias expande-se até que rebenta.


inverno

Frio ardente e lua em chamas! Os campos nevados tintilam; as árvores quebram-se como rebentos; o céu arqueia-se violentamente para contemplar as estrelas. O fervente inverno está aqui, os faróis vermelhos ardem e a tempestade despe tudo. Que modo de morrer e onde vais passar a eternidade!

uma luz imensa, ligeira
és atira através
da ramagem tilintante de um campo de abetos

o ar é ténue, frágil
rebenta nos pulmões em mil pedaços

O bosque chama o mar, por fim começa a despir-se ainda que já faça frio, mas em vão: o mar vira-lhe as costas e cobre-se com uma ligeira capa de gelo.

É inútil sustentar que não se produz uma constante mudança também agora. Basta ficar quieto um pouco para ver como flui o tempo, a luz é particularmente viva agora no inverno e as árvores mudam de cor todos os dias.

eu não sei onde estou
a aurora boreal flameja
            com chamas de azul metileno
                        por cima de mim:
em algum lugar no imenso

A luz encolheu até se converter numa mancha apenas visível no horizonte a sudoeste, logo também ela se apaga, o céu derrete-se sobre a terra, o brilho opaco da neve voa cada vez mais alto, desce na outra margem e começa finalmente a arder no sudoeste. O dia volta a traçar uma linha entre o céu e a terra, uma neve branca, incolor, brilhante estende-se por toda a parte, as sombras são nítidas, vão diminuindo manhã após manhã.

No instante seguinte abre-se na neve um buraco negro.

            Fuga, 1992



Versão minha - © Amadeu Baptista




Kai Nieminen. Nasceu em Helsínquia, em 1950. Após os estudos universitários, começou a estudar japonês. Trabalhou seis anos numa livraria, tendo viajado para o Japão depois disso, onde viveu dois anos, tendo traduzido dois volumes de poesia japonesa, sobretudo de Basho. Dedica-se à poesia e à tradução.


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