sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Olaf Bull




Poemas de Olaf Bull



Não se percebe sob este céu azulado
nem a menor respiração do seu peito.
Esse ar que uma vez com as suas suaves brisas
ascendia e descendia na recatada elevação do peito,
que brincava com ternura na doce curva do pescoço,
esse, ondeia agora em vão sobre o desejo da terra –!
Olha, as andorinhas sobem bailando, bailando descem –
e os meus pensamentos regressam a tempos passados,
quando ela também chamava andorinhas às andorinhas
e felizmente desfrutava chamando azul ao ar!

Escuta o rumor da primavera sobre as alturas do mundo!
Os campos reverdecem com vigor, até o quê, até o quê?
O júbilo dos rebentos não chega aos seus olhos
que já ninguém encontrará, por muito que os bosques, –
os mesmos abetos sussurram nos deliciosos lugares, –
onde ela, com o seu eterno encanto, os enchia de assombro –
 –  –  –  –
Nada mudou. Longínquo e vulnerável chega das fábricas
o som dos enérgicos sons de um dia normal –
não há coisa mais certa neste mundo
que isso, o que se converte em pó sob a tampa do ataúde!

Mas os campos reverdecem e o céu grita e azulece
como se o fragor e o azul quisessem tirar-te da tumba –
aromas que fluem de milhares de resplandecentes folhas,
lilases atrás da vala ao longo do passeio primaveril
longe, muito longe brilha o teu amado mar!

Hoje era um dia para ti, para ti meu amor, ali em cima,
onde o silêncio repousa em melancólicas rosas e plantas!
Ai, como amavas as tempestades no cume do teu jardim
e o alado relâmpago dos painhos pelos caminhos primaveris!

Ai, se eu pudesse, se somente pudesse esquecer –
e impulsionar-me a subir loucamente uma vez mais
aquelas escadas e perguntar se tu estavas em casa –
com fé nisso mesmo, e voz alegre voz e emocionada – –
–  –  –  –
No cemitério do Salvador soam tons dominicais  –  – 

Digte, 1909


A PEDRA
Eu estava na mais extrema eternidade,
atrás do incêndio do horizonte visível –
então sucedeu que alguém avançou para mim
sobre a bordadura de uma estrela desconhecida.

Alguém que se inclinava para diante e sorria
atrás de um véu, que lhe envolvia a cabeça,
e segurava uma pedra numa das suas garras
e sussurrava fria e suavemente:

«Deixo cair uma pedra na órbita do céu,
a pedra dourada, que agora te mostro;
no instante seguinte desaparecerá;
e nunca mais cessará de cair.

Entendes, miserável, o que faço?
Solto uma pedra em queda na tua alma,
semeio no teu ser desassossego,
uma inquietação que nunca morrerá.

Como quer que te queimes na morada da luz,
No amor de mulheres, entre arbustos de branco primaveril –
A pedra que ao mesmo tempo cai, cai
Nas trevas do destino, tens que lembrá-la – – –

* * *

E a imagem partiu-se, e eu afoguei-me,
afoguei-me minha cama – acordei a suar;
em ondas de gélido orvalho de estrelas
pulsava o meu coração, golpe a golpe –

Mas o sonho prosseguiu na noite do meu coração;
da juventude à idade madura
tentou em vão a milha alma colher
a pedra que cai incessantemente –
–  –  –  –  –  –  –  –

Digte, 1909


CLARA EUGENIE

E o pastor levantou a sua mão branca,
e deixou deslizar com melancolia    * 
uma onda de água bendita sobre o cabelo da menina.
«Baptizo-te com o o nome de Clara Eugenie!»
Mas nos olhos da mãe havia lágrimas
que baptizavam esta promessa de vida
com maior solenidade que a da força do pastor
no seu trabalho junto à pia baptismal de mármore!

* * *

A segunda vez que o pastor levantou a mão,
a pequena Clara Eugenie ia de branco – – – 
e as suas palavras nítidas de jovem rapariga
voaram tímidas e nítidas pelo coro da igreja.
E a mãe sonhava, com a face voltada
para o arco do frio muro da igreja,
em algo longínquo e luminoso que antes tinha ocorrido
em anos sorridentes, na verde natureza – –
Como se ela, jovem e vestida de branco, passa-se
diante da sua própria filha. Clara Eugenie,
para logo seguir caminho junto ao rio do prado,
só, até um mar distante e desconhecido – –
Nesse instante o sol entrou na igreja, resplandecente,
e a Mãe sussurrou, agitada e com pesar:
«Perdoa-me, filha, se foi egoísmo,
por tu seres jovem, eu mesma fui jovem.»

* * *


E o pastor levantou a mão pela última vez
a sua mão branca com palavras firmes, puras –
mas o que fluía para o chão escuro
não era água bendita, mas terra bendita!
E a mãe tremia como um animal, sofria
ao ouvir cair a terra, punhado após punhado –
mas de longe, dois metros abaixo do jardim do claustro
levantou-se a voz da terra, agitada e entrecortada:
«Clara Eugenie, filha minha
regressaste enfim à grande totalidade!
Floresce na oculta primavera,
nos verdes prados, em árvores
e nuvens felizes, no limpo azul do céu,
em formas mais eternas para os teus queridos – – – !

Nye Digte, 1913


IMPOTÊNCIA

Não batas com a cara contra a porta da morte –

Um mundo de terra
são todos os nossos mortos!

Sabes que agora as formas livres do seu corpo
transbordantes de estrelas e mar e sol,
são agora uma terra
vazia cinzenta
feita de angústia!

E sobre tudo aquilo
um cerro ermo
com flores débeis,
através de cujo perfume
uma borboleta viva
estende as suas asas ansiosas de vida.

E tu o sentes claramente,
quando divisas o bicho
a beber de um céu desalmado,
resplandecente, vazio, com seus olhares:
Isto, isto é a vida –  –

E ela, tua única amiga,
cujos intensos olhos te reflectem
a ti, ao teu amor,
ali na profundidade do mundo
é uma matéria cegamente atraiçoada –

Só uma parte dessa fé,
terra verde e muda
fazia com que o pequeno insecto
batesse as asas da sua dança vital
e frequentemente descansasse da sua fadiga.
 – – – – –
Não armes escândalo contra a porta da morte.
Isso já o sabias:
Um mundo de terra
são todos os nossos mortos.

Levanta-te do verdor e põe-te em pé.
O sol pôs-se, a noite levanta-se azul
contra as portas de bronze da morte.
Chora as tuas lágrimas, diz as tuas palavras –
palavra por palavra
és só tu o que ouves:
«Dorme docemente
o sonho da terra
na noite da tumba,
onde nunca há sol –,
ali onde o teu contorno pouco a pouco
cede à obscuridade do mundo –

Viva e paz eterna
que não se conhece a si mesma
e por isso é a paz mais profunda.
Adeus – oh tu – adeus
no jardim da tarde!
Encontrar-nos-emos na pá,
que é lançada na tumba do futuro.»

Digte og novelles, 1916



MÉTOPA

A ti quero embutir-te docemente ritmos.
A ti quero conservar-te profunda e duradouramente
no eterno e jovem alabastro do poema!
A ti sonhadora emocionada pelo sol! Com a juvenil
face voltada para o ouro pálido da tarde,
ficas suavemente um céu após outro,
luminoso e terno e enigmático!
Com gosto daria todos os versos do meu mundo,
se tivesse sido capaz de uma só coisa: talhar
na obstinada pedra da memória uma suave métopa
sobre o delicado e doce contorno da tua alma!

Caminhamos pela areia húmida da maresia! Tu escutas
os airosos salpicos das ondas do mar estival!
Sentimos piedosamente que o silêncio da tarde
traslada cada vez mais longe a sua fronteira sonora!
Ressoam sons apagados que retrocedem deslizando
atrás de bosquezinhos avermelhados, douradas agulhas de igrejas –
e as luminosas ondas de ar afundam-se debilmente
como torrentes de sol das montanhas que permanecem.

Azulecem as colinas. As estrelas estão próximas!
As últimas nuvens apressam-se a chegar a casa ao entardecer!
O prado afunda-se na oração –! da maré do ar levanta-se
Arcturus! Suavemente, detrás do muro de granito cinzento,
sopra um vento na prateada pelagem do centeio!
Através to teu olhar um cálido e profundo suspiro –
no meio da obscuridade azul o olho pode receber
um fugaz salpico, um húmido resplendor de mel,
e sereno pergunto-te:« Em que pensas, meu amor?»

«Penso em tardes como esta, em que não se permita viver –
em campos de pousio, que sussurram de trigo, sem mim!
Em bagatelas cativantes: Espigas que se quebram,
caminhos no mar, pálidas velas longínquas,
ondas que se acercam da praia sem mim!
No quotidiano, meu amor, que suavemente continua na tumba,
nisso penso, e em todas as profundas, azuis,
tardes vindouras aqui no jardim do verão,
sem a minha alma junto à tua, nisso penso!

Tudo isto me enche o olho como uma lágrima,
eu, só e angustiada e miserável, logo chorarei!
Todas as coisas que esta tarde são nossas
dentro de poucos anos ébrios terá chegado o momento,
quando desaparecerem as névoas e o olhos veja claro!
Oh, amor, olha que profunda e negra fica a baixa-mar!
Que estranha ficou o praia, quando se foi a água!
Acaso estará longe a noite quando nós formos
uma praia mais feia que esta, abandonados por tudo?

No entanto é um doce e sagrado milagre,
que estres prados com o seu trigo e arbustos e árvores
e montanhas atrás, tão distantes como alcança o olhar,
se humedeçam tão docemente dos nossos instantes – –
o mesmo abeto, que nosso é!
E a cerca de madeira! O velho carro das ferramentas
jaz imóvel  na erva e firmes se erguem
as enormes estacas dos feixes junto às sorveiras
e a vala é verde como antes, como todos os anos!

Oh meu amor, se a profundidade da tumba o permitisse
eu ficaria aqui transmudada em prado, como feno,
nesse abeto, com estrelas dentro, e a montanha,
só para assim, defender, de outro modo,
o nosso jardim, e por ele: morrer!
Abraça-me, meu amor, tem-me assim. Ser abraçada assim
de repente será o único clarão de esperança, sei-o –
despertar na minha outra eternidade!»

E eu, um homem vivo, sinto-me em casa na terra,
um homem bem determinado, de carne, dos pés à cabeça,
posso, aturdido e tímido, perceber no meu abraço
algo que só é olhar e alma e voz,
dissolvido em dolorosa angústia e pressentimento.
Tu, solitária! Eu só posso acariciar em silêncio
o teu perfumado cabelo, a tua mão na minha –
e assim, frente a frente, estão Pã e Psique
diante de um mar de trigo, à luz das estrelas.


Metope, 1927



Versão minha - © Amadeu Baptista





Olaf Bull (1883-1933), nasceu em Oslo. Filho do escritor Jacob Breda Bull. Estudos universitários de línguas e literatura. Viveu em Roma, Copenhague e Paris. É um dos grandes líricos noruegueses.


terça-feira, 18 de novembro de 2014

Ângelo de Sousa

A Modo de Ler acaba de dar à estampa, com coordenação de José da Cruz Santos e direcção gráfica de Armando Alves, uma plaquete, intitulada '20 Poemas para Ângelo de Sousa'. O volume, que inclui a reprodução de uma pintura de Ângelo de Sousa, tem a colaboração de Albano Martins, Amadeu Baptista, António Barbedo, António Rebordão Navarro, Bernardo Pinto de Almeida, Eduarda Chiote, Fernando Guimarães, Francisco Duarte Mangas, Inês Lourenço, Isabel de Sá, Jorge Velhote, José Emílio-Nelson, José Viale Moutinho, Mário Cláudio, Maria Cristina de Araújo, Martim Afonso de Redondo, Paulo Pais, Regina Guimarães, Vasco Graça Moura e Vergílio Alberto Vieira.


Deixo aqui o poema com que colaborei nesta publicação:


SOBRE O SORTILÉGIO DA PINTURA DE ÂNGELO DE SOUSA

Após a enxurrada fica a memória
da enxurrada, a mancha de um ramo
espatifado, uma sombra carregada
de cinza, um brilho negro. É quando
a brancura desbota e tudo fica
mais amplamente branco e, da brancura,
sobram, apenas, cintilações escuras,
a abundância domada, o refúgio
onde nem uma urna cabe, um osso,
um pressentimento. Então, o que está
liquidado deixa de permanecer,
embora nos suba à boca e seja
leve gota de sangue, como um cristal,
um poço, uma grinalda, isso
que radica na dimensão de um rosto
sob a alma e pelo caminhos
nocturnos irradia, se tem nome,
a devastar-nos pelo encantamento
as breves sílabas de um conciso verso.
Ah, se não tem nome é palavra cega,
um vulto com o fogo da voz a expandir-se
como barro vermelho.

©  Amadeu Baptista

(in '20 Poemas para Ângelo de Sousa', Porto, Modo de Ler, 2014)







sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Resposta a três perguntas

Para uma página do facebook, A Senhora Clap' (conferir em https://.www.facebook.com/pages/Senhora-Clap/588145527961228, fizeram-me três perguntas a que quis responder. Aqui ficam, para memória presente e futura:



·         Tem memória de algum aplauso que lhe tenha ficado para a vida?


Entrei para o serviço militar no dia 24 de Abril de 1974, pouco havia de passar das cinco da tarde. À data, as condicionalidades de alguém da minha idade, resumiam-se a pouco: a regra ficava-se pela opção de desertar e fugir para o estrangeiro, ou a queda inevitável nas malhas do império, que teimava em sobreviver à custa de jovens mancebos recrutados voluntariamente pela obrigatoriedade das leis da execranda canalha do regime fascista mais durável da história europeia. Caiu a noite daquele dia. No refeitório, o jantar não passou de umas batatas pretas e uns peixes requentados, que ninguém comeu. Regressados às casernas, ficamo-nos a arrumar os poucos pertences que leváramos e a prepararmo-nos para dormir: mil e duzentos homens sem sono, atordoados pelo facto de ali estarem, expressavam a tristeza, o temor pelo futuro e as saudades de casa com uma gritaria constante e insuportável. Às nove da noite, sob ameaça, alguém nos obrigou ao silêncio. Calou-se a maioria, outros continuaram a desenfreada barulheira mais algum tempo. Deitado no exíguo beliche, onde só tinha um franzino cobertor que me protegesse do frio, tentei concitar o sono e o repouso, o que se revelou tarefa completamente impossível: no final das contas, o que a manhã poderia trazer seria, afinal, mais um passo em direcção à guerra colonial, onde os melhores de nós eram ceifados a um ritmo assustador. Apesar do esforço, não consegui adormecer – e o tempo, lento e demolidor, foi passando. Seriam três da manhã da madrugada de 25 de Abril de 1974 quando, de roldão, entrou um grupo de gente armada até aos dentes na caserna. O grupo impunha a proibição de que não se ouvisse rádio, a partir daquele momento. Eu tinha um pequeno transístor, munido de um minúsculo auricular, que, de imediato, liguei. E logo um imenso aplauso interior percorreu todo o meu corpo, porque entendi que a revolução estava na rua e estava, talvez pela primeira na minha vida, restaurada a esperança na liberdade sonhada há tanto tempo.

·         Já aplaudiu de pé? Em que situação?

Aplaudi de pé em muitas e variadas vezes. E lembro-me da primeira vez que o fiz. Em 1972, a companhia brasileira da portuguesa Ruth Escobar, fez uma pequena digressão pelo nosso país. Assisti no Porto, no Rivoli, à exibição de ‘Missa Leiga’, uma peça com texto polémico e contundente, de autoria de Chico Assis, um nome de referência na dramaturgia contemporânea . A sala fervilhava, com o público e os actores sujeitos às mais diversas provocações que alguns agentes da pide, estrategicamente dispostos na sala, arremessavam para o palco. Por pouco não houve pancadaria e presumo que, à saída, uns quantos espectadores foram detidos. Por mim, fiquei fascinado pelo poder de intervenção do espectáculo e, sobretudo, pela audácia de um texto que teve o condão de reordenar as frágeis ideias políticas que tinha na altura. Além, obviamente, de toda a carga artística que lá assimilei como apontamento crucial a utilizar no futuro. Tudo o que há de resistência e denúncia na minha poesia, alguma coisa deve a essa peça e às circunstâncias em que a vi, não tinha eu mais do que uns ingénuos dezanove anos.

·         Hoje, o que lhe apetece aplaudir?


Mais do que os jovens, apetece-me aplaudir os velhos deste país. Não sou dos que cantam loas a uma juventude que, regra geral, se conforma à grunhisse perigosa e saloia da roupa de marca, do telemóvel de topo de gama e da playstation de última geração, sem que se preocupem em saber o que um lugar activo na luta de classes os pode dignificar como gente, como pessoas. Espera-os um futuro irredimível de escravatura e nada fazem para que esse opróbrio lhes não trucide o corpo e a cabeça, que pouco, ou nada, usam. Alguns serão, não tarda, classe dirigente que devorará os outros, como estes que nos dirigem (?) agora fazem. Outros, a avassaladora maioria (em que há, como em tudo, honrosas excepções), ficam-se na mais calamitosa passividade, que a si mesmos os há-de trair, tal como traem o povo a pertencem. Aplaudo e peroro os velhos. Esses que, sem suficiente linguagem para dar nomes aos bois, sobrevivem a custo no meio de um mar de dificuldades, sem mais remédio do que se verem sitiados pela miséria, a fome e a venalidade  num país que, tendo-lhes comido a carne, nem os ossos lhes respeita. Ah, sim, aplaudo a dignidade dos velhos desta pátria que sujas camarilhas pontapeiam para gáudio das suas fazendas e dos seus ódios brutais e rapinantes – velhos de cepa, rijos, indefectíveis, que na sua profunda debilidade mostram, ainda, como há uma luta a abraçar em cada dia, uma jornada a estabelecer na resistência que é necessário potenciar e ousar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS 1916 - 2014




O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.



Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.



Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas


Aprendimentos

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen‏, nasceu há 95 anos



CAMÕES E A TENÇA

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.

E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.

Este país te mata lentamente.

(in Grades, 1970)