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Tem memória de algum aplauso que lhe tenha
ficado para a vida?
Entrei para o serviço militar no dia 24 de Abril de 1974,
pouco havia de passar das cinco da tarde. À data, as condicionalidades de
alguém da minha idade, resumiam-se a pouco: a regra ficava-se pela opção de desertar
e fugir para o estrangeiro, ou a queda inevitável nas malhas do império, que
teimava em sobreviver à custa de jovens mancebos recrutados voluntariamente pela
obrigatoriedade das leis da execranda canalha do regime fascista mais durável
da história europeia. Caiu a noite daquele dia. No refeitório, o jantar não
passou de umas batatas pretas e uns peixes requentados, que ninguém comeu.
Regressados às casernas, ficamo-nos a arrumar os poucos pertences que leváramos
e a prepararmo-nos para dormir: mil e duzentos homens sem sono, atordoados pelo
facto de ali estarem, expressavam a tristeza, o temor pelo futuro e as saudades
de casa com uma gritaria constante e insuportável. Às nove da noite, sob
ameaça, alguém nos obrigou ao silêncio. Calou-se a maioria, outros continuaram
a desenfreada barulheira mais algum tempo. Deitado no exíguo beliche, onde só
tinha um franzino cobertor que me protegesse do frio, tentei concitar o sono e
o repouso, o que se revelou tarefa completamente impossível: no final das
contas, o que a manhã poderia trazer seria, afinal, mais um passo em direcção à
guerra colonial, onde os melhores de nós eram ceifados a um ritmo assustador.
Apesar do esforço, não consegui adormecer – e o tempo, lento e demolidor, foi
passando. Seriam três da manhã da madrugada de 25 de Abril de 1974 quando, de
roldão, entrou um grupo de gente armada até aos dentes na caserna. O grupo
impunha a proibição de que não se ouvisse rádio, a partir daquele momento. Eu
tinha um pequeno transístor, munido de um minúsculo auricular, que, de
imediato, liguei. E logo um imenso aplauso interior percorreu todo o meu corpo,
porque entendi que a revolução estava na rua e estava, talvez pela primeira na
minha vida, restaurada a esperança na liberdade sonhada há tanto tempo.
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Já aplaudiu de pé? Em que situação?
Aplaudi de pé em muitas e variadas vezes. E lembro-me da
primeira vez que o fiz. Em 1972, a companhia brasileira da portuguesa Ruth
Escobar, fez uma pequena digressão pelo nosso país. Assisti no Porto, no
Rivoli, à exibição de ‘Missa Leiga’, uma peça com texto polémico e contundente,
de autoria de Chico Assis, um nome de referência na dramaturgia contemporânea .
A sala fervilhava, com o público e os actores sujeitos às mais diversas
provocações que alguns agentes da pide, estrategicamente dispostos na sala, arremessavam
para o palco. Por pouco não houve pancadaria e presumo que, à saída, uns
quantos espectadores foram detidos. Por mim, fiquei fascinado pelo poder de
intervenção do espectáculo e, sobretudo, pela audácia de um texto que teve o
condão de reordenar as frágeis ideias políticas que tinha na altura. Além,
obviamente, de toda a carga artística que lá assimilei como apontamento crucial
a utilizar no futuro. Tudo o que há de resistência e denúncia na minha poesia,
alguma coisa deve a essa peça e às circunstâncias em que a vi, não tinha eu
mais do que uns ingénuos dezanove anos.
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Hoje, o que lhe apetece aplaudir?
Mais do que os jovens, apetece-me aplaudir os velhos deste
país. Não sou dos que cantam loas a uma juventude que, regra geral, se conforma
à grunhisse perigosa e saloia da roupa de marca, do telemóvel de topo de gama e
da playstation de última geração, sem
que se preocupem em saber o que um lugar activo na luta de classes os pode
dignificar como gente, como pessoas. Espera-os um futuro irredimível de escravatura
e nada fazem para que esse opróbrio lhes não trucide o corpo e a cabeça, que
pouco, ou nada, usam. Alguns serão, não tarda, classe dirigente que devorará os
outros, como estes que nos dirigem (?) agora fazem. Outros, a avassaladora
maioria (em que há, como em tudo, honrosas excepções), ficam-se na mais
calamitosa passividade, que a si mesmos os há-de trair, tal como traem o povo a
pertencem. Aplaudo e peroro os velhos. Esses que, sem suficiente linguagem para
dar nomes aos bois, sobrevivem a custo no meio de um mar de dificuldades, sem
mais remédio do que se verem sitiados pela miséria, a fome e a venalidade num país que, tendo-lhes comido a carne, nem
os ossos lhes respeita. Ah, sim, aplaudo a dignidade dos velhos desta pátria
que sujas camarilhas pontapeiam para gáudio das suas fazendas e dos seus ódios
brutais e rapinantes – velhos de cepa, rijos, indefectíveis, que na sua
profunda debilidade mostram, ainda, como há uma luta a abraçar em cada dia, uma
jornada a estabelecer na resistência que é necessário potenciar e ousar.
Está difícil, a conta Google come literalmente os comentários?
ResponderEliminarBom, deixei o Google envergonhado e ele decidiu colaborar.
ResponderEliminarAplausos oportunos, nas três situações.
Os do passado, no passado ficam, após terem moldado o presente, de hoje, de amanhã, de depois.
Os actuais, dirigidos ao que já se pode chamar uma classe, além da dos ricos, dos pobres e da classe média... a nova classe dos velhos de Portugal - e do mundo também.
São aplausos sonoros numa realidade estridente, que faz lembrar a velha história dos velhos, dos filhos e da montanha para onde iam morrer. É preciso aglutinar as massas, pô-las de pé a aplaudir, a exigir, a proteger e defender os cansados, que já deram quase tudo ao país e às gerações seguintes, que agora não só o esquecem, como também vêem nos velhos uma classe a morrer rapidamente para poderem receber mais migalhas...
Junto os meus aplausos a todos os existentes, levanto-me numa vénia aos velhos que nem tiveram as oportunidades que eu tive, velhos de rostos enrugados pelo sol e pelo frio, numa época de poucos ou nenhuns direitos como cidadãos.
Os jovens conformam-se "à grunhisse perigosa e saloia da roupa de marca, do telemóvel de topo de gama e da playstation de última geração" talvez por ter sido este o mundo que herdaram dos velhos que tanto aplaudes...
ResponderEliminarCumprimentos