sexta-feira, 3 de julho de 2015

Os Selos da Lituânia / 4

naquele tempo, a vida indescritível do quintal
sulcava no meu peito os mais profundos sortilégios.
os dias pareciam ser intermináveis e era possível
sentar-me numa pedra a ver correr as horas
num lento êxtase
pelos muitos planos que os muros fixavam
entre as várias escadarias e as sombras
de um extenso jardim de rosas e agapantos.
um dos cães da casa era um cão cego,
negro, com as patas brancas e castanhas,
que dormia num recanto entre alguns sacos
de carvão vegetal e guardava
as coisas num silêncio que sempre me pareceu
atroz, seguindo com a cabeça os ínfimos ruídos
que suspeitosamente à sua volta vinham
perturbar a prestação guardiã.
após as escadas e um corredor
sombrio havia um tanque de água cristalina
e um outro mais pequeno circundado
por tufos de avencas e de pássaros
entre o silêncio das plantas e da pérgula
onde inúmeras trepadeiras formavam
uma pequena selva, com flores cor de fogo,
de pétalas diáfanas, irradiando clarões
pela tarde dentro. num minúsculo barraco,
quase destruído, guardavam-se as alfaias
e a minha aventura era ampliar
a serventia daqueles instrumentos,
sendo um ancinho a imagem de um dragão,
um carrinho de mão um carro de combate
e uma pá o símile de uma espada
que numa antiga batalha me tivesse transformado
num herói  absolutamente incontestado.
uma ameixoeira branca ampliava o encantamento
do lugar. nas suas folhas entrevia brilhos
que pareciam chuva, embora não chovesse.
o que era irreal mostrava-se, de súbito,
a única custódia possível para os olhos.
havia também um largo patamar
onde as mulheres da família se sentavam
a coser os vestidos ou a bordar
uns panos que me pareciam asas de algum anjo
vagamundo, no lugar em que mãos ladinas
e cruéis matavam as galinhas para o domingo próximo,
enquanto o cão cego permanecia a um canto
com os olhos brilhantes,
como dois topázios.

n Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




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