quarta-feira, 15 de julho de 2015

Os Selos da Lituânia / 5

devo ter entrado duas ou três vezes nesta igreja
e fico sempre impressionado com a imagem
do cristo no altar-mor, uma figura cândida
que nos olha fixamente como se procurasse
a sua dor mais íntima. hoje, venho aqui
porque a minha avó morreu, depois de uma noite
de agonia na enfermaria do hospital geral de santo antónio,
durante a qual invectivou as trevas como sempre
a vi invectivar a terra, com os cabelos fartos
a ampliar-lhe os olhos e realçando-lhe os traços
de mulher trigueira. entrou agora o padre, e com ele
o meu pai, e mais duas pessoas que eu não conheço,
mas alguém me diz serem o meu tio e a minha tia,
que têm fama de ricos, por explorarem
um ferro-velho e uma gasolineira. pesaroso, o meu tio
não pára de exclamar “não somos mais que pó”
e a minha tia não diz nada, enquanto me sorri
e me afaga a cabeça, como se entre nós houvesse
confiança e não este desconhecimento
mútuo que nem sequer o sangue poderá
alguma vez superar. olho o meu pai
e também me molesta o que vejo, alguém
que me abandonou não tinha eu
mais que alguns meses.
aproxima-se e beija-me a face
e eu lanço um olhar ao cristo
que me retribui como se reconhecesse
aquele beijo de algum lugar. o ar está espesso
pelo cheiro das flores recém-cortadas dos altares
e o incenso queimado na missa do meio-dia.
chegam algumas mulheres e o sacristão
acende as velas, arrastando uma perna
e genuflectindo sempre que passa em frente
do sacrário. pode deus não estar em toda a parte,
mas apenas naquele refúgio derradeiro?
vindo da rua, há um barulho de vozes e motores
que me fazem lembrar porque ali estou
e impelem para o lugar onde o caixão se fixa.
em cada passo dado recuo no passado
e revejo aquela mulher ainda viva, um xaile
negro sobre os ombros a passear-me
pelas ruas do porto e a dizer a quem passa
que namora comigo, parando nas tabernas
para beber mais um copo e trautear
as canções em voga. morreu esta manhã,
com uma cirrose. nem foi preciso autópsia.
não tardará que a cidade a eclipse.


n Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




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