POEMAS DE HANNES SIGFÚSSON
NOITE URBANA
Branda e suave bicharada que escorre
com olhos brilhantes
na dissimulada noite
bosque de árvores vivas
Retumba no meu ouvido a noite
que corre para a desembocadura
noite que cai num mar
de luzes entorpecidas
Oh esse rosto de olhos azuis
Procuro um esconderijo
entre troncos caídos
no céspede emurchecido
com os teus olhos por fontes
manando azuis na noite
enquanto durmo
E o oceano inunda
a cinzenta terra
e a chama nos olhos
das feras apaga-se
O bosque é arrastado
por pálidas ruas
As conchas do oceano
guardam os teus olhos azuis.
Borgarnóttin, 1947
A VIDA É MANEJÁVEL COMO UM ISQUEIRO
Não me sai da cabeça o dia de amanhã…
Fizeram o seu ninho no medo
e puseram os seus frágeis ovos no bordo dos precipícios
dos últimos promontórios.
Nidificam em toda a parte, também entre nós
e os seus ovos são mais do os dias de todos os homens
de todos os tempos
Em quanto múltiplos futuros puseram os seus ovos?
Por fim temos a nossas vidas numa casca de noz
manejáveis como isqueiros
e com paredes de aço…
Os jovens saem dos ninhos da infância
e a sua vida hospeda-se sob a asa madrasta
dessas aves de rapina
Passeiam-se entre os fios de aço
como se fosse o apeadeiro das promessas:
que o seu futuro quebre o invólucro
Também se despediram das suas vidas:
o tempo estanca-se
revoluteiam como sombras na corrente do vazio
Inclusive os seus corações pulsam noutro lugar
como o tictac de uma bomba de relógio
Cresce o fragor. Estão numa estação
onde se afogam as vozes das pessoas
e o eco dos altifalantes fala como um deus
nas abóbadas vazias
da morte.
Sprek á eldinn, 1961
ESTAMPAS
Fulgor de hélio nas nuvens
Fugaz pressentimento de uma morte próxima
derrocada de altos muros e fragor de medo
Silêncio abismal…
É o sol que acende os inflamáveis fios da mecha
que se propagam por todo o céu como uma rede estendida
de nervos sensíveis pela ambígua e exótica carga.
Olhai, a primavera faz estalar o tecto baixo e plúmbeo da
terra
com raios e relâmpagos sem o fragor do trovão:
oh, o silêncio é um grito de alegria
O que cai: umas quantas pedras de granizo
e uma lágrimas grossas e quentes, que rompem a negrura
como chuva de chispas:
Arde a seca escuridão invernal
Ardem como petróleo os lagos
e queimam-se as estrelas nos desfiladeiros
os esconderijos da terra convertem-se em espaços
que fogem
e a resistência da rua enche-se de vida
Por toda a parte aparece animada gente
das suas caixas fechadas
a praça converte-se num campo arejado
coberto de inúmera vegetação num maio apaixonado
cabelos negros, louros, ruivos, incendiados de sol
e a erva branca como uma oração pela paz
e uma bênção das tranquilas noites de sol de junho
Porque sob os capacetes reluzentes assomam olhos avaros
rostos brancos como a cera e fechados a cal e canto
colmeias cegas fervendo com o bulício voraz
de pensamentos negros em forma de moscas
que esperam astutas a ocasião para voar como dragões
sobre a exuberante vegetação, nuvem escura, negra
para extrair o mel dourado de cada corola.
Sprek á eldinn, 1961
HORIZONTES VOLÁTILEIS
O cidadão que transita pelas avenidas
quando o dia azuleia ao entardecer
e as luzes de néon brotam das paredes
como água reluzente
satisfaz despreocupado o sue orgulho infantil
com o resplendor desta cidade iluminada
que cresce perante os olhos:
Entre outras coisa é testemunha
de como os importante arranha-céus
envergam o crepúsculo azulado
como se fosse um manto vitorioso
com botões de ouro
que afinal são estrelas
e se perdem de vista
como profetas extasiados
na gloria sobrenatural
do Todo Poderoso.
E no entanto é provável
que qualquer viajante comum
em voo mágico pelo horizonte
sobre oceanos, países e desertos,
rodeado de nuvens sem superstições
veja
o que salta à vista:
Um bosque de tumbas de brancura marmórea
escurecidas pelo crepúsculo cansado
das horas vencidas
sobre um palmo de terra.
Jarteikn, 1966
NO ENTANTO DESPERTA-ME A ALBA
No entanto desperta-me a alba
com delicados modos:
os caminhos separam-se e dispersam
estrondos, automóveis e patadas
pela calma de outros bairros
Caio num torpor inconsciente
Tudo se me oculta:
o correr do sangue e dos pensamentos
por entre os escolhos e o salto
descomunal do eco pelas paredes d desfiladeiro
e o ávido girar das rodas do moinho
Quando a noite empalidece
tenho os resultados do computador
nas minhas mãos vazias
Jarteikn, 1966
FENÓMENO DO ABISMO
A linha no teu dedo
e a maravilha do abismo
que sondas
O flutuador ladeado
balançando-se ao alcance da tua vista
e a isca amarelenta espetada
O mar que dorme
A calma que balança
A meia lua banhada de luz
E o teu braço pesa
e sopesa
a linha da dúvida…
E então aguilho-te a alegria!
Lágt muldur thrumunnar, 1988
O OPTIMISMO DAS ÁRVORES
As árvores não sacrificam os seus ramos às estrelas.
Estendem os dedos para os moinhos de vento e para
os quartos de lua. Vi as suas pontas
amansar a tormenta com a incessante
flexibilidade de quem não se deixa dominar por ela
e começa a sua minuciosa procura entre os despojos
assim que amaina: um troço azul de céu
um pedaço de prata cinzenta de claridade gelada
na escura noite. Vi-os desenhados
na cega pupila do céu de inverno
como prova de um cérebro superinteligente sob o córtex
que calculasse o lucro de cada dia que passa
em forma de sóis que pingam gotas de chuva
sobre os húmidos cristais, de pedaços de gelo
acesos pelo seu conhecimento das leis
que fazem girar a terra a despeito das verdades
meteorológicas. Com optimismo radical
levantam a sua antena indagadora na calma gelada
para captar o longínquo rumor das cálidas brisas
que pressagiam germinações e pássaros…
A meio do inverno
paro a contemplá-las.
Lágt muldur thrumunnar, 1988
BALEIAS E HOMENS
Dispersar icebergues
em forma de foguetes
com o único propósito inocente
de beber a limpidez do céu
antes de explorar o abismo…
Se fôssemos
de dois mundos
como as baleias
e rasgássemos o céu
e bebêssemos a escuridão
da sua abóbada
antes de afundar
na claridade
compreenderíamos então
melhor
as sombras da nossa vida?
Jardmunir, 1991
CURVAS E ARCOS NATURAIS
Lançadas sobre a charneca
sendas, trilhos e veredas
como amplos laços
que alcançam verdes vales
e águas nascentes
Nos seus rumos sinuosos
penso
que se podem
ler as existências de animais desaparecidos
entre montículos e pedras
entre a dor e o prazer
A sua liberdade
estava nas curvas
penso
assombrado
no meu mundo rectangular
Jardmunir, 1991
FENÓMENO DA ESCURIDÃO
A minha rede eléctrica
de alta frequência estendida
do pescoço até aos dedos dos pés
ramificada
impetuosa
e sempre em guarda
como a rede de radares de uma superpotência
Zelosamente escondida
sob a pele lisa
E provavelmente oculta para todos
menos para ti
quando nas tardes escuras
tiro a camisa
e tu a ouves ranger
e vês os seus azulados
clarões
Jardmunir, 1991
BALEIAS ENCALHADAS
Isso branco
que se estende interminável pela enseada
não é espuma
nem flores
nem peixe salgado
posto a secar quando tu eras jovem
e chegaste do campo
É gente
massa de corpos
horizontais
reluzentes como Moby Dick
brilhantes de bronzeador e gordura
Jardmunir, 1991
ILUSÃO
A tela tensa
O bastidor
mostra a sua brancura
como um olho torto
Que arrepio
recorrerá a pupila
pensa
e vacila perante o cavalete
num novo desmaio…
Então tomo o pincel
e ofereço-lhe uma ideia.
Jardmunir, 1991
IDEIA INOPORTUNA
Junto ao caminho vi uma jovem bétula
com uma folha verde na botoeira
E assaltou-me uma ideia absurda:
Ajoelhei-me no musgo
e desabotoei
todos os botões do meu negro
fato justo
que só me deixa solta a minha reprimida vegetação
Bem, e depois?
Como e depois?
Era inverno!
Jardmunir, 1991
ALEGRIA ATRASADA
No entanto posso arrancar as minhas horas
livremente
dos maduros cachos dos dias
longínquos
fincar o dente na sua casca azul e morde-la
As minhas papilas gustativas
encontram neles um prazer insólito
Também eles
por fim amadureceram
Jardmunir, 1991
EQUILÍBRIO
Desde que deixei de voar em reactores
pela abóbada do céu
vou por um corda solta
sobre o abismo
uso as mãos como asas
guardo o equilíbrio
e eu mesmo sou a probidade
Os meus joelhos
fraquejam ante o perigo
Jardmunir, 1991
SORRISO NA ESCURIDÃO
Fotografia!
Como se a luz deslumbrante
que entrou pela janela
fosse a mãe
desta eternidade
que tenho entre as mãos.
Tudo o mais
são sombras chinesas.
Jardmunir, 1991
Versão minha - © Amadeu Baptista
Hannes Sigfússon (1922-1997). Poeta atómico. O seu primeiro livro – um original ciclo de poemas de interpretação fragmentária e difícil – apareceu em 1949. Os seus poemas apresentam uma visão ampla da política, da cultura e do homem em geral. Tradutor activo de poesia.