quinta-feira, 18 de junho de 2015

Os Selos da Lituânia / 2

não tive pai nem mãe, no sentido
bíblico do termo. creio bem
ter nascido de uma pedra, em volta
havia o perfil da magnólia
e era extenso o azul do firmamento,
ao derredor da cabeça, tocada e doce. o mundo,
o mundo a que cheguei, não era mais
que uma pedreira, de onde os homens
partiam em silêncio para os campos
em que a solidão recrudescia, a solidão
inúmera dos campos onde os bois
partilhavam o destino com as fontes
e viam, muito ao longe, as ânforas
e a lâmpada, a corça e o veado,
as torres das cidades sitiadas.
a estrela que me coube
era pobre e distante. num momento
não pude mais fazer que recolher
sombra das sombras com as mãos,
à procura de um rumor que incitasse
ao êxtase e à aventura, procedendo
como se não fosse mais que um desconhecido
a perguntar ao vento e à geada
pelo significado oculto que entrevia
no rosto dos meus contemporâneos.
não tive pai nem mãe, sobre a ternura
só aprendi o que havia
de recolher de um vaso, muitas vezes
apenas sangue, muitas vezes
o descorado clamor dos céus,
quando a chuva molhava os meus cabelos
como se fossem peixes fora de água.
não tive pai nem mãe, o que recuso
é dessa direcção que sempre vem
e aqui se demora para que a magnólia
transfigure os seus frutos em furacões.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



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