escrever pode ser, naturalmente, ter três anos,
estar na praia num dia muito quente
e sentir que alguém nos apanha pela cintura
e mergulha nas ondas violentas
de um mar revolto, vendo num relance
a multidão em volta, toucas amarelas,
biquínis coloridos e o homem da bolacha
americana, de boné enfeitado com uma âncora,
a percorrer o areal em toda a extensão
que vai do paredão à casa do banheiro.
vir num soluço à tona de água e voltar
a submergir com um grito preso na garganta
para ver do mar o fundo, aquelas algas
ameaçadoras num bailado aquoso
que as lágrimas ainda mais adensam.
se não for isso, pode ser, exactamente,
ter um profundo conhecimento da palavra
garrotilho, ter estado de cama com sarampo
e a janela para a rua resguardada
por um pano vermelho que vai do chão ao tecto,
sentindo muita sede, sem poder
sequer molhar os lábios. ou, então, ouvir
a tarde toda os gemidos de alguém
a quem diagnosticaram esclerose múltipla, a regredir
na idade e a ir morrendo aos poucos
de drageias brancas. escrever pode ser, exactamente,
ter um medo mortal de ir à escola, e sofrer
os efeitos maiores da crueldade
que os mestres manifestam nas crianças,
as páginas à deriva entre a baba e o ranho,
as pernas aflitas por todo aquele pânico,
doridos nós dos dedos e o coração
aos saltos. não sendo isso,
escrever pode ser, provavelmente,
um ajuste de contas com o passado,
ou até mesmo a lembrança dessa noite
em que o vento varreu o nosso quarto
e destelhou as casas circundantes, vitimando
o garboso pundonor do gato que cruzou
a estrada e foi atropelado por um balde
amolgado. não sendo isso, pode ser o cavalo
inquieto que no prado, certa vez, se vislumbrou, ou animais
degolados, com as vísceras entrançadas
num novelo no alpendre, perto da roupa
pendurada na corda de secar. ou a noite,
imensa e perdurável, em que alguém
bateu à nossa porta e não entrou,
e nós com a lanterna tentámos ver
sob a chuva que vergasta ainda
as sebes que há em volta do cercado,
o cata-vento em forma de avião, os cardos
do baldio. se não for isso, será, precisamente,
aprisionar o rosto a um lugar
para não ceder, ir com o corpo adiante procurar
o ritmo das paixões, as mais vorazes,
as que podem produzir assassinatos, estontear
as cabeças, irromper de um céu de sombras
verdadeiras, mesmo que não haja céu,
mesmo que não haja sombras
e nas letras resplandeça
pouca coisa.
in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008
© do poema e da foto: Amadeu Baptista
Amadeu: lindo poema adorei ler.
ResponderEliminarUm grande abraço.
Santa Cruz
Excelente regresso a uma infância qualquer.
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