quinta-feira, 25 de junho de 2015

Os Selos da Lituânia / 3

estão doze imagens iluminadas
por fraca lamparina de azeite
e há uma cómoda negra no canto do quarto.
na primeira gaveta, uma mancha
vermelha para guardar
e, no gavetão de baixo, uma cama
para dormir. o pequeno cobertor
cheira a lavado e em volta do meu sono
uma luz protege-me,
embora não consiga adormecer
e oiça passos ao longe, e o som surdo de vozes
a bater nos meus pulsos
como se tivesse que os cortar
pelo mundo ser injusto
e além de um oratório este lugar
ser exactamente o sítio onde durmo.
se pudesse ir à rua neste instante
procurava entre as mulheres a minha mãe
e pedia-lhe que me levasse para onde
fosse possível chorar e a memória fosse
uma passagem para a vigília surpreendente
que há nas coisas inesperadas.
mãe, mãe, cometeste o pecado de não me veres
dormir, a minha alma hesita, sou apenas
esta tábua que ao longe range
e atravessa o quarto onde nenhum lençol me abriga
e os santos e os anjos pontificam
para que perdure o alarme e os olhos ceguem
nesta lâmpada incólume, esta ameaça
que continua a pairar sobre esta cama
e faz com que te chame em cada noite
e tu não estejas, 
e tu não venhas livrar-me
da roda do martírio, enquanto
reclamo a carícia perdida,
a criança que fui,
do primeiro vagido ao derradeiro.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




quinta-feira, 18 de junho de 2015

Os Selos da Lituânia / 2

não tive pai nem mãe, no sentido
bíblico do termo. creio bem
ter nascido de uma pedra, em volta
havia o perfil da magnólia
e era extenso o azul do firmamento,
ao derredor da cabeça, tocada e doce. o mundo,
o mundo a que cheguei, não era mais
que uma pedreira, de onde os homens
partiam em silêncio para os campos
em que a solidão recrudescia, a solidão
inúmera dos campos onde os bois
partilhavam o destino com as fontes
e viam, muito ao longe, as ânforas
e a lâmpada, a corça e o veado,
as torres das cidades sitiadas.
a estrela que me coube
era pobre e distante. num momento
não pude mais fazer que recolher
sombra das sombras com as mãos,
à procura de um rumor que incitasse
ao êxtase e à aventura, procedendo
como se não fosse mais que um desconhecido
a perguntar ao vento e à geada
pelo significado oculto que entrevia
no rosto dos meus contemporâneos.
não tive pai nem mãe, sobre a ternura
só aprendi o que havia
de recolher de um vaso, muitas vezes
apenas sangue, muitas vezes
o descorado clamor dos céus,
quando a chuva molhava os meus cabelos
como se fossem peixes fora de água.
não tive pai nem mãe, o que recuso
é dessa direcção que sempre vem
e aqui se demora para que a magnólia
transfigure os seus frutos em furacões.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



terça-feira, 9 de junho de 2015

Os Selos da Lituânia / 1

escrever pode ser, naturalmente, ter três anos,
estar na praia num dia muito quente
e sentir que alguém nos apanha pela cintura
e mergulha nas ondas violentas
de um mar revolto, vendo num relance
a multidão em volta, toucas amarelas,
biquínis coloridos e o homem da bolacha
americana, de boné enfeitado com uma âncora,
a percorrer o areal em toda a extensão
que vai do paredão à casa do banheiro.
vir num soluço à tona de água e voltar
a submergir com um grito preso na garganta
para ver do mar o fundo, aquelas algas
ameaçadoras num bailado aquoso
que as lágrimas ainda mais adensam.
se não for isso, pode ser, exactamente,
ter um profundo conhecimento da palavra
garrotilho, ter estado de cama com sarampo
e a janela para a rua resguardada
por um pano vermelho que vai do chão ao tecto,
sentindo muita sede, sem poder
sequer molhar os lábios. ou, então, ouvir
a tarde toda os gemidos de alguém
a quem diagnosticaram esclerose múltipla, a regredir
na idade e a ir morrendo aos poucos
de drageias brancas. escrever pode ser, exactamente,
ter um medo mortal de ir à escola, e sofrer
os efeitos maiores da crueldade
que os mestres manifestam nas crianças,
as páginas à deriva entre a baba e o ranho,           
as pernas aflitas por todo aquele pânico,
doridos nós dos dedos e o coração
aos saltos. não sendo isso,
escrever pode ser, provavelmente,
um ajuste de contas com o passado,
ou até mesmo a lembrança dessa noite
em que o vento varreu o nosso quarto
e destelhou as casas circundantes, vitimando
o garboso pundonor do gato que cruzou
a estrada e foi atropelado por um balde
amolgado. não sendo isso, pode ser o cavalo
inquieto que no prado, certa vez, se vislumbrou, ou animais
degolados, com as vísceras entrançadas
num novelo no alpendre, perto da roupa
pendurada na corda de secar. ou a noite,
imensa e perdurável, em que alguém
bateu à nossa porta e não entrou,
e nós com a lanterna tentámos ver
sob a chuva que vergasta ainda
as sebes que há em volta do cercado,
o cata-vento em forma de avião, os cardos
do baldio. se não for isso, será, precisamente,
aprisionar o rosto a um lugar
para não ceder, ir com o corpo adiante procurar
o ritmo das paixões, as mais vorazes,
as que podem produzir assassinatos, estontear
as cabeças, irromper de um céu de sombras
verdadeiras, mesmo que não haja céu,
mesmo que não haja sombras
e nas letras resplandeça
pouca coisa.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista