quinta-feira, 3 de julho de 2014

Zetho Cunha Gonçalves




Zetho Cunha Gonçalves, poeta convidado



DOIS POEMAS



A OITAVA LUA NOVA

                          À Glaura Cardoso



A flor do imbondeiro
cai
     do coração de um pássaro – esta
é a Noite que desmembra o Tempo,
selando seus astros, removendo
a escuridão na escuridão,
açoitando
o latir dolente dos cães − e à roda,
o silêncio dos leopardos.


A Noite é a única realidade,
desde os ancestrais: quanto mais negra,
mais verdadeira.
                        E eis que chega
a oitava Lua Nova, a Lua
dos ventos e da doença.


As magras águas dos rios
dementam os peixes, que sufocam
pela ausência da sua bússola lunar.


E loucos − loucos
de eternidade,
dançam os pés do vento sobre o mundo.


Por um tremor de céu,
os meus olhos inflamam como relâmpagos
a fulminar
sob as pálpebras. É o fim
da estação do cacimbo: as febres
estuporando os corpos, a Terra
submersa
por um tapete de cinzas
e árvores calcinadas.


Do coração de um pássaro
cai
     a flor do imbondeiro.









(In: Noite Vertical, no prelo)




FALAM, CONVERSAM O MUNDO


                          Para Arnaldo Santos
                          e José Luandino Vieira



Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.


Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.


Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.


E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.






(In: Noite Vertical, no prelo)




 © dos poemas: Zetho Gonçalves; foto abaixo: Amadeu Baptista





Zetho Cunha Gonçalves nasceu na cidade do Huambo, em Angola, em 1960. Poeta, autor de literatura infanto-juvenil, ficcionista, antologiador, tradutor de poesia e organizador de edições. Publicou, desde 1979, mais de 30 livros, entre os quais, de poesia, A palavra exuberante, 2004; Sortilégios da terra: Canto de narração e exemplo, 2007; Rio sem margem: Poesia da tradição oral, 2011; Terra: Sortilégios, 2013; Rio sem margem: Poesia da tradição oral. Livro II, 2013; Noite vertical, no prelo.
Literatura infanto-juvenil: Debaixo do arco-íris não passa ninguém (poemas), 2006; A caçada real (teatro), 2007; Brincando, brincando, não tem macaco troglodita (poemas), 2011; A vassoura do ar encantado (estória), 2012; Rio sem margem: Poesia da tradição oral africana, 2013; Dima, o passarinho que criou o mundo: Mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa (antologia), 2013; A Galinha-de-Angola que punha os ovos no telhado (poemas), no prelo. De poesia, traduziu O desejo é uma água, de Antonio Carvajal, 1998; Altazor: Canto II, de Vicente Huidobro, 2012; 3 Poemas, de William Carlos Williams, 2012; 22 Poemas, de Joan Brossa, 2012; 15 Poemas, de Rainer Maria Rilke, 2012; Sete poemas, de Friedrich Hölderlin, 2012. Organizou edições, entre outros, de Mário Cesariny, Luís Pignatelli, António José Forte, Natália Correia, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Manuel de Castro e Luís Carlos Patraquim. Como antologiador organizou: 35 Poemas para 35 anos de independência, 2010. Está representado em várias antologias, livros-catálogo e publicações colectivas. Tem traduções da sua obra para alemão, espanhol, hebraico e italiano, e colaboração dispersa por jornais e revistas de Angola, Brasil, Espanha, Moçambique, Itália e Portugal.
Vive actualmente em Lisboa, dedicando-se inteiramente à literatura.

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