segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sophia, de novo

transladação dos restos mortais de sophia
de mello breyner andresen



os políticos, e sobre todos os que têm
vendido a pátria ao estrangeiro todos os dias
e roubam ao povo o pouco que o povo já não tem,
quiseram, poeta, violar-te as ossadas, transladar-te,
pôr-te entre mortos  que nada te disseram
enquanto estavas viva, a ti, que só querias o liso, o puro,
a dignidade, a essência. puseram-se nos bicos dos pés
da mediocridade e chegaram com os seus carros negros,
os seus óculos escuros, as suas gravatas pretas, e afrontaram-te,
a ti, a nós, à poesia, a luz maior que ainda nos resta
perante quem é de tais benemerências que fez
com que a fome grasse agora por todo o território. esta soez
manipulação da alma de uma poeta calha-lhes bem, por certo,
que sempre precisaram de foguetório avulso
para que a romaria lhes faça algum sentido
e possam afirmar como protegem os vultos da cultura,
aqueles que, à força de talento, ergueram o país a outro horizonte
e foram vítimas dos poderes instituídos.
a esta corja não basta acobertar-se na desfaçatez
e vir, depois, altear a cabeça como os sáurios
sempre que abocanham, sabendo-se como de vozes
dissonantes se acobardam, gordurosos e maus,
sempre arrimados a lugares do estado e administrações
de empresas, além das prebendas com que uns aos outros
se obsequiam. a falta de vergonha é o seu zelo,
viciados que vão pelas carreiras,
a extorquir aos outros o que desperdiçam
na faustosa vida que mantêm. de vez em quando atacam
com a verrina de porem um artista no panteão, ou em preitos
vazios de conteúdo, à guisa de homenagem, onde querem exibir
uma ordem de grandeza que nunca hão-de ter,
mas de que se julgam iguais ou superiores. chegam rodeados
de polícias à paisana e segurança privada a protegê-los,
cientes de que o melhor, por tanta iniquidade
levada a cabo, será não arriscar a pose em que vegetam.
não têm as mãos limpas, mas têm da limpeza um conceito
que a qualquer dá nojo, hienas a nutrir-se do que os favorece,
abutres sempre prontos ao voo terrorista,
sujos de sangue e crimes contra a nossa humanidade.
metem-nos no coração sempre que falam porque sabem
que quanto maior for a hipocrisia maior será o engodo
para os que querem enganar vezes sem conta.
há dias, foi a vez de quererem conspurcar-te, a ti, poeta,
que sempre lhes disseste de frente o que pensavas
e fingiram que esqueceram o modo vertical como viveste
para, uma vez mais, tratarem das vidinhas.
sempre que podem entregam-se ao asco da empáfia
e dos salamaleques, eivados de ódio contra
os nossos semelhantes, a fazer de conta que respeitam
aqueles que detestam. com o jorge de sena,
não vai para muito anos, usaram de idêntico artifício,
quando fizeram que as ossadas do poeta viessem do brasil
para em maior esquecimento o enterrarem. maldosamente,
repetem a grotesca fantochada, as ossadas do sena
ficaram no calvário e as tuas, poeta, permanecerão
em santa engrácia, com o intuito de oferecer por dádiva
o desprezo que sempre manifestam, tratando-se de quem
amou a pátria com uma ética que a tudo ultrapassou e sobrepôs.
já em 66 do século passado transladaram, depois de terem, durante 
um ano e treze dias, andado com o féretro por parte incerta para as abandonar
logo em seguida, as ossadas do botto  no cemitério do alto de são
joão, para que o silêncio soterrasse tudo e progredisse
a crassa ignorância sobre quem foi este poeta, que versos produziu, 
como viveu. nem se discute com que razão e com que fito isto acontece,
intoxicado por suporíferos vários, televisão, futebol, demagogia,
o povo paga, apaziguam-se as famílias e morde-se
pela calada, mesmo que a mordedura seja estrepitosa
e a massa anónima dos cidadãos fique com a ideia
de que se arrumou a casa e ficaram as dívidas todas pagas.
ele há tanta maneira de apunhalar a pátria, tanta represália
que se pode promover, tantas calamidades
que nos caem em cima, tanto negócio obscuro,
tanta falta de vergonha, que me fico a pensar
no que realmente vale a pena neste exílio forçado
dentro do país, nesta faca que nos cravam pelas costas
e sai no peito depois de ter atravessado o coração, 
por esta fantasmagoria de gente traiçoeira
que nos quer deslustar o inconformado ofício
que pela beleza e o pão empreendemos.
queremos nitidez e ar lavado, a estreita fímbria
de uma praia de rochedos e areia clara, os deuses gregos
que velam por nós, a magia que existe nas palavras
se um outro mundo buscamos com paixão
e o que nos aparece são estas ratazanas com requintes
de pastosa malvadez,  a patentear-nos os cortejos fúnebres
de si mesmos, enquanto nos envenenam e assassinam.
comovo-me, choro, agasto-me por isto ser assim. 
sobre o meu país caiu densa tristeza, abalam-me as notícias
dos que têm que partir para não morrer à míngua, pelos velhos
a quem cortaram as pensões, pelas ajudas que agora não se dão
a desempregados, idosos, doentes, mães sem sustento com filhos
a crescer, deficientes da guerra colonial, homens e mulheres
que, sem mais remédio, acabam sem-abrigo a viver
na rua, antigos miseráveis e recentes que querem trabalhar
mas só lhes toca a humilhação, no vilipêndio que grassa
em toda a parte, asilos, casas, escolas, hospitais,
no comércio e na indústria, nos tribunais que fecham,
no rol de despedidos que não pára de aumentar, nas remotas
aldeias do interior, nas cidades, no campo, na montanha,
no litoral, nas ilhas. pessoas imoladas à hipocrisia
com que esta gente sobe a púlpitos e discorre
sobre o dinheiro, o valor do trabalho, a paz de um regime,
a que têm o despautério de chamar democracia,
em que a pobreza se amplia, como se lhes não coubesse
a culpa do esbulho, enquanto vão compondo o ramalhete
com grosserias destas, em que enchem a boca
sobre poetas e sobre poesia , como se dos seus iníquos
despachos estivessem a falar, ou alguma coisa
de poetas e poesia entendessem. cresce o poema e cresce
a minha indignação, ao fim e ao cabo perco a cada dia
a minha vida para que estas hienas enriqueçam
e cresça o enxovalho sobre quem já nem a esperança pode alimentar,
perdida há muito, no beco sem saída. nós, poetas,
devemo-nos uns aos outros o afecto de sermos próximos
do que é, a um tempo, humano e divino, talvez com pouca
glória, alguns, talvez sem mansuetude, outros,
mas com certeza indignos destes crápulas
que estão no meio de nós como uma ameaça
e que tudo fazem para que a devastação seja eficaz
e o país asfixie e morra. tu tinhas afirmado
que, na morte, não querias exéquias, faustos, apoteoses.
que a tua vontade era voltar a delfos ou cingir a alegria
da praia do teu mar, que eu tão bem conheço. que a poesia
é uma perseguição ao real que se deve empreender
para que as leis da beleza se instituam e o poema
que nos rege entregue a luz, aquele fruto vermelho
que vimos na infância e durante toda a vida está connosco
para que jamais esqueçamos a justa relação entre o homem
e a natureza. calhou que esta canalha nos governasse
neste tempo de agoiro insuportável, em que a tristeza
ofende e as crianças deixaram de nascer.
pego na minha enxada, a minha escrita, e escrevo contra isto.
por este insulto o meu espírito, pedindo-te perdão,
nenhum perdão te pede, mas pede-te indulgência, ainda assim,
porque alguma culpa terei por não ser a nossa pátria
a festa que sonhámos, uma manhã serena, uma tarde mansa,
uma noite que não seja só ruína. prometo que contigo
escreverei na nossa praia a ventura de querer emergir
da podridão que nos sitia e que procurarei a luz
que procuraste no amor, na perfeição, na poesia.



 © poema (inédito) e foto abaixo Amadeu Baptista








1 comentário:

  1. Obrigada poeta Amadeu
    Gostei muito.
    Foi bom ler isto, porque é exactamente o que sinto.
    A Sophia agradecerá também.

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