quinta-feira, 23 de abril de 2015

Árvores no Coração # 10

CUPRESSUS LUSITANICA

Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração.

Árvores no coração, uma tigela de caldo, uma pedra onde pousar a cabeça,
Os seixos rolados que a serra entrega e, depois, a tarefa de contar
Cada um dos morros cor de argila que a enchente trouxe de longe
Com as boas ervas em redor, a saxífraga, a segurelha, o sésamo em flor.

Escrever é contar o que fica após a ausência, há dias em que a solidão
Desarvora em planícies em que nunca estive, florestas inimagináveis,
Bosques eternos, e o que fica são sempre as árvores, da copa à raiz,
Sombras que se entrelaçam às sombras e dão ao corpo um motivo
Para, ainda assim, resistir.

Espero cegar para poder ver, o ar enche-se de aromas e os ramos
Prometem frutos que escondo nos bolsos para mais tarde
Morder com a avidez de quem cria cada encruzilhada,
Porque cada árvore é um rumo, um crescimento a capturar
O que se encontra perdido, o tronco derrubado que vai reflorescer.

Clareiras há a que me entrego sem quaisquer rodeios,
Mas é às árvores que peço uma resposta, uma resposta definitiva
Para o que se não pode perguntar, o que em silêncio nos abraça,
O que tem um austero sal a envolver-nos, o que é um panorama
Que nos enche de vertigens, e aflige, e sufoca para que tudo aconteça
E tudo se possa rememorar como algo que sob a terra pulsa.

Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração,
Ainda que tudo arda e o incêndio se propague às folhas mais íntimas
De cada árvore, esta que se partilha, esta a que sorrio de longe,
Esta que se levantou muito cedo para tocar a transparência e os enigmas
Do vento, esta que se plantou há séculos para não haver tempo,
Esta que abriga o cão sarnento que não faz mal a quem passa.

Tantas vezes espero que tu chegues que passo a ser o único interlocutor
Da ausência, o carro avança e as árvores fertilizam-me,
Sento-me num banco do jardim e é como se estivesse na floresta
Negra num desvario de palavras que não sei conter, tudo o que coração
Alcança nesta morte lentíssima, nesta morte emboscada
Que me espera enquanto a memória sobrevive e tudo o mais são árvores.

Vou-me à ravina, a precariedade da luz é o que ainda resta,
Crescem hoje estas árvores para que eu diminua, como há muito
Foi escrito, será de granito o mar, de cinza a minha cidade,
De cavalos que correm no planalto num tropel vertiginoso,
De conchas que se fecham com o sonho dentro delas, mas as árvores
Abrirão o círculo, a seiva que tiverem vingar-me-á, o remanescente
Tesouro, o cipreste que assinala a última casa e o último desejo.

Desejo que as árvores ocupem o coração e que nenhuma ferida reste
Para que possas chegar com a luz que as árvores guardam.



 © (inédito) Amadeu Baptista




arte de Agostinho Santos

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