sexta-feira, 10 de abril de 2015

Árvores no Coração # 9

CERCIS SILIQUASTRUM

Começaram a chover árvores vermelhas no meu pátio esta manhã.
Pequenas árvores, dizem que do diabo, não sei bem porquê.
Provavelmente porque é assim que se manifesta o diabo,
Logo pela manhã, com árvores floridas que rompem os céus
Para que caiam nos mais inusitados lugares, um pátio, um corredor
Sem fim, uma área restrita delimitada por uma corda onde estão
Peças de roupa branca a secar e um tanque com água.

Onde está a criação está o diabo, o que não se sabe é onde
Estamos nós na criação que nos cabe, um pintor talvez saiba
A que voz responder quando estende na telas os seus pigmentos,
Mas um poeta, que pode um poeta arrancar do silêncio avassalador,
Que pode fazer para exorcismar a inquietude, as letras que não sabe,
As figuras que vê em queda no horizonte infinito?

Um pintor mais não faz que seguir o curso da maldição, vê as árvores
E circunscreve-as à interrogação do desenho, o pincel enche-se
De filamentos, enche-se de acções corrosivas, de circunvoluções
Que tomam a árvore por um animal para que tudo possa ser visto,
Mesmo que jamais se veja. Mas um poeta, que pode um poeta

Fazer na derrogação que lhe cabe assim que acorda e atravessa o pátio,
Esse lugar obscuro onde a luz prevalece, que pode o poeta
Quando chovem árvores vermelhas no chão árido da casa, no chão
Pejado de fantasmas e de sombras? Que pode o poeta nesse promontório
Em que recrudescem as visões e o que se faz vem de um lugar
Onde tudo é um confinamento de frio e desrazão?

Começaram a chover árvores vermelhas no meu pátio esta manhã.
Cada voz que se interroga é um diabo que voa, o pintor
Sabe que a vida é um delírio, que tudo se faz pedra a pedra,
Pelo que pinta sempre muito mais do que vê, gritos nas árvores,
Cabelos nas linhas que separam e aglutinam as imagens,
Traços em que há monstros discordantes, olhos que faíscam,
Bocas que uivam, desconformes, hiantes, temerárias.

Só o poeta sabe que é perda a perda que tudo se faz.
Está em queda, nunca se há-de encontrar, não se admira
De que lhe chovam no pátio árvores vermelhas como se fossem
Diabos, observa tudo e sabe como há ofícios terríveis
Que nunca se completam. O pátio esta manhã está cheio
De árvores que dizem ser do diabo e fica o poeta aterrado
Por não saber que lado da verdade assinalar para que persista
Deus no plano de construir aguaceiros sobre árvores sem resgate,
Fica sem saber que árvores escolher na desolação permanente,
Que vozes escutar quando tudo morrer para voltar a nascer.

O pintor, geral pelas minúcias, acrescenta efeitos no real,
Aparelha as árvores com engastes brilhantes, erupções de folhas,
Lugares, rostos, escadas, trepidações de peixes a subir os ramos,
Bichos estrondosos nas raízes, mãos nos troncos, corações vegetais.

Quanto ao poeta, olha. Não mais do que olha. E vê como choveu Deus
No pátio esta manhã como se fossem árvores o que caiu do céu,
Como se fosse a árvore de que se diz ser a árvore do diabo
O que choveu toda a manhã sem mais detalhes além da roupa branca a secar
E um tanque com água onde as árvores caíram ininterruptamente.



 © (inédito) Amadeu Baptista 



arte de Agostinho Santos

1 comentário:

  1. Buscava a poesia de Inger e deparei-me com a força e a delicadeza de seus versos. Posso citar alguns no meu facebook? Amei os seus "venezianos". Do Brasil, meu abraço. Ana

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