CUPRESSUS LUSITANICA
Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração.
Árvores no coração, uma tigela de caldo, uma pedra onde
pousar a cabeça,
Os seixos rolados que a serra entrega e, depois, a tarefa de
contar
Cada um dos morros cor de argila que a enchente trouxe de
longe
Com as boas ervas em redor, a saxífraga, a segurelha, o
sésamo em flor.
Escrever é contar o que fica após a ausência, há dias em que
a solidão
Desarvora em planícies em que nunca estive, florestas
inimagináveis,
Bosques eternos, e o que fica são sempre as árvores, da copa
à raiz,
Sombras que se entrelaçam às sombras e dão ao corpo um
motivo
Para, ainda assim, resistir.
Espero cegar para poder ver, o ar enche-se de aromas e os
ramos
Prometem frutos que escondo nos bolsos para mais tarde
Morder com a avidez de quem cria cada encruzilhada,
Porque cada árvore é um rumo, um crescimento a capturar
O que se encontra perdido, o tronco derrubado que vai
reflorescer.
Clareiras há a que me entrego sem quaisquer rodeios,
Mas é às árvores que peço uma resposta, uma resposta
definitiva
Para o que se não pode perguntar, o que em silêncio nos
abraça,
O que tem um austero sal a envolver-nos, o que é um panorama
Que nos enche de vertigens, e aflige, e sufoca para que tudo
aconteça
E tudo se possa rememorar como algo que sob a terra pulsa.
Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração,
Ainda que tudo arda e o incêndio se propague às folhas mais
íntimas
De cada árvore, esta que se partilha, esta a que sorrio de
longe,
Esta que se levantou muito cedo para tocar a transparência e
os enigmas
Do vento, esta que se plantou há séculos para não haver
tempo,
Esta que abriga o cão sarnento que não faz mal a quem passa.
Tantas vezes espero que tu chegues que passo a ser o único
interlocutor
Da ausência, o carro avança e as árvores fertilizam-me,
Sento-me num banco do jardim e é como se estivesse na
floresta
Negra num desvario de palavras que não sei conter, tudo o
que coração
Alcança nesta morte lentíssima, nesta morte emboscada
Que me espera enquanto a memória sobrevive e tudo o mais são
árvores.
Vou-me à ravina, a precariedade da luz é o que ainda resta,
Crescem hoje estas árvores para que eu diminua, como há
muito
Foi escrito, será de granito o mar, de cinza a minha cidade,
De cavalos que correm no planalto num tropel vertiginoso,
De conchas que se fecham com o sonho dentro delas, mas as
árvores
Abrirão o círculo, a seiva que tiverem vingar-me-á, o
remanescente
Tesouro, o cipreste que assinala a última casa e o último
desejo.
Desejo que as árvores ocupem o coração e que nenhuma ferida
reste
Para que possas chegar com a luz que as árvores guardam.
arte de Agostinho Santos