SOBRE
A FIGURA DE UM DEMÓNIO PINTADO
QUE
VIMOS NUMA PAREDE
Não se supõe que o demónio nos
apareça num início de tarde
na parede de uma sala desconhecida em que
entramos
pela primeira vez. Mas os nossos
olhos fixam-se na sua figura
para não mais o esquecermos,
agradados por o termos visto
numa amenidade simples e sem
remorsos, talvez porque foi
uma mulher que nos levou a ver esse
demónio e se ampliou
no coração a luz dos olhos dessa
mulher, que quisemos reter
como a um destino. Essa luz será
sempre um mistério,
diabólica que seja por pertencer a
alguém que não contávamos
que viesse perturbar a nossa vida,
ou porque
o próprio demónio se compadeceu de
nós e essa luz
nos induz a que se estabeleça no
nosso coração um ameno
agravo que se não há-de saber como
solver, uma paixão
que durará para sempre, breve e
eterna como é próprio da luz que nos atinge:
o sortilégio de sempre quando dois
poderes – o demónio, a mulher –
nos submetem e nada podemos fazer
do que entregarmo-nos,
tomando do silêncio a melhor parte
do que queremos ter,
acrescentando aos sonhos esse ápice
volátil em que, por um momento,
tudo é nosso, tudo em nós
estremece, tudo está, ainda, ao nosso alcance.
Depois, o demónio obriga-nos a
partir para a vida
sem outro alvitre que o extenso
conflito com que o destino
nos sacode, fazendo-nos lembrar a
luz daqueles olhos, aquela sala
remota, essa mulher que nos chamou a atenção para a
figura do demónio
na parede da sala desconhecida enquanto nos sorria – e a quem
sorrimos também,
com frágeis palavras presas na
garganta e o arbítrio do coração
descompassado para que só a memória
desse encontro possa valer
para sempre. Mas a memória não é
não mais do que outro demónio
a perseguir-nos, nunca nos deixa em
paz, nunca nos larga
nos múltiplos desencontros que nos
ferem e fazem com que os sonhos
se renovem, exasperantes como um
caminho que se segue e não tem fim,
ou um rio sem nascente nem foz, mas
rio, apenas, na extensão do desassossego
das suas águas turvas, límpidas,
convulsivas. Ama-se, então, o demónio:
ao demónio não mais que
circunscrevemos as nossas preces,
os nossos desconsolos, a nossa
angústia extensa, a nossa fome,
a nossa funda miséria de sabermos
tão pouco do que temos
e tudo estar perdido à nossa volta, sem outra solução do que viver-se.
E assim é que o demónio nos ampara
e alimenta, e o que é impossível
acontece, e o que não é nosso nos pertence,
e as noites se iluminam
pela luz daqueles olhos que apenas
pressentimos demoníacos
e pacíficos na sala desconhecida em
que entramos para que o arrebatamento
nos tocasse. Depois tudo nos
assusta como um abalo sísmico a invadir-nos
o corpo, correm os dias como aves
negras, não há esperança e tudo se reduz
ao enigma de nada ter sentido sob o
impulso das correntes que ainda perseguimos,
um brilho numa árvore, a mancha de
uma pedra, um bosque que se avista,
a lembrança de uns olhos que
persiste nos mais recônditos precipícios do passado.
Ah, o demónio opera maravilhas, faz
e desfaz, atira-nos para o mundo
como se o que nos ilude pudesse ser
tangível e o demoníaco
se transformasse em beatitude,
promessa que se cumpre, concerto
para o que nos atormenta,
conciliação do puro com o impuro, caminho
que falta percorrer quando não há
caminho e tudo em tudo se consome,
serena inquietação que nos há-de
fazer voltar à amenidade de uma sala
desconhecida que uma mulher nos
mostrou. E a tarde avança, a noite
alastra sobre as paredes brancas, e
a figura do demónio continua a velar-nos,
vela-nos o desespero e a desolação
amplia-se dentro de nós, e não é mais
o demónio que um instrumento de
usura, vemo-lo como um ferro em brasa
que queremos tocar sem que nos queimemos,
mas não é mais do que uma figura
entre almas penadas e chamas
vermelhas, não é mais do que uma passagem
de medo que se insinua na carne, um
medo arrasador pelo que em nós anoitece,
a solidão de sempre, a perdida luz
que permanece nos olhos de uma mulher
que para nosso estupor e enlevo nos
invadiu o coração. Ah, noite preta, noite
de múltiplos demónios e análogos
escanhoamentos, noite de sortidas perfídias
em que a morte se insinua, pugnaz,
falaz, audaz, em que sempre perdemos terreno,
em que não há cortinas para abrir,
a que nenhum céu pode corresponder senão
com um maior e mais amplo negrume,
uma insatisfação desabrida sobre os
olhos,
tempestade que galga a treva e se
eleva sobre a alma, inundada de sombras.
E a paixão permanece, entre a ruína
permanece, a perfilar sobre o rosto
um sinal irreconciliável, enquanto
nada há que se divise na terra a não ser
essa figura sortílega na parede
branca de uma casa desconhecida
em que o alvoroço nos arrebata
talvez demasiado tarde,
talvez demasiado cedo para o
temeroso fogo com que o demónio nos tenta,
esse calor que é a um tempo
refrigério e admoestação, porque nada
se distingue no inextricável rumor
que a vida é. Assim o vermelho represo
na figura do demónio nos suplicia,
e enlouquece-nos por aquele brilho dos olhos
que nos saúda como execração e
opróbrio, aquelas unhas paradas
sobre a nossa garganta, essa
deposição que sobre nós se debruça, a atingir-nos
como uma desatenção vigilante, um
ofensivo cuidado em que mais nada
podemos fazer do que perdermo-nos
para que a nossa desventura cresça
connosco e assim nos diminua. A
casa amplia-se, então, sob o auspício
de um silêncio devastador, as salas
estremecem, estremece o coração,
um estalido destaca-se dos móveis e
a a perturbação vem confundir-nos,
ao que éramos atentos somos agora
alheados, como se o tempo
deixasse de cumprir os seus ritmos expectantes e soubéssemos, por
uma vez,
que a tempestade não vai passar e
tudo se abandona ao esquecimento porque o êxtase
não é já uma prerrogativa, uma aliança
que possa fundar-se. «Vai morrer»,
ouvimos o demónio dizer. «Vai
morrer longe», repete ele, elaboradamente
– e há um longo exílio que começa a
cumprir-se, uma pena maior, um degredo,
uma degradação que alastra nas
veias e nos congela o rosto e corrói os humores,
numa invernia contínua, uma
derrocada a expandir-se em sucessivas fantasmagorias
e perplexidades consecutivas. Ah, a
noite é infinita, noite preta, noite negra,
de um lugar a outro nada resta
senão a vacilação, o demónio olha-nos de frente
e mostra-nos a claridade de uns
olhos para que a amplitude do desgosto seja essa
luz que perdemos, esse ardor que
derruba, essa convulsão no peito que quisemos
manter como crença, mas nos pôs sem
solução perante muros, portões, gradeamentos.
E pertence-nos o que nunca foi
nosso, pertence-nos o que nunca há-de
pertencer-nos, pertence-nos a
dimensão do vazio carregada de sons e pigmentações,
o que ficou desse dia em que vimos
a figura do demónio na parede de uma sala
desconhecida. E, de novo, vemos o brilho
dos olhos da mulher
no brilho dos nossos olhos,
enquanto a imaginamos a vestir uma camisa branca,
ou a dormir, ou a pentear a serena
inquietação dos seus cabelos, ou a mostrar
na boca um sorriso que interceda
por nós, ou a tecer uma demorada
palavra que nos enrede e faça de
nós voluntários prisioneiros da sua presença.
Ah, como todas as cargas nos
exaurem, como todos os tormentos nos sitiam,
como todas as impossibilidades nos
afrontam, embora o caminho se estenda
diante de nós e, como sempre, não
haja caminho, nunca haja caminho de um lugar
a outro, de um coração a outro, de
um refúgio a outro – o demónio está em toda a parte
e não se cansa de se
mostrar, não se cansa de nos dizer, elaboradamente, «vai morrer
longe», não nos
poupa obstáculos, ciladas, destemperos, aflições, aparece-nos,
apenas, para manifestar em nós a decepção
do mundo e o seu declínio,
a nossa desventurada
condição de miseráveis sem mais remédio
do que esperar algum instante
retemperador no fulgor da claridade, algum gesto
inesperado, algum espelho que possa devolver a
transitoriedade da nossa imagem.
Ah, foi num dia de sol, há muito tempo, que
vimos a chuva bater no vidro das janelas,
e que, de súbito, a treva cingiu as
cintilações que envolviam a cidade, e as casas
prenunciaram um incêndio infinito
de proporções assustadoras, e os relâmpagos
deixaram fundas cicatrizes no
horizonte de nuvens: tudo isto dura desde que foi
a infância, dura eternamente desde
que a perda se insinuou e manteve como ferida
mortal, vara que bate nas têmporas,
no coração, nas palavras, nos poemas. Oh, cheia
de graça, o sucesso da tragédia não
cessa de nos acossar, é um veneno subtil
que a cada dia se instala e, lenta
e pressurosamente, nos mata como se fosse
o lenitivo que resta, a arma
exclusiva contra todos os demónios que nos perseguem
e afrontam, a última vertigem consentida. Não,
não se supõe que o demónio
nos apareça num início de tarde na parede de uma
sala desconhecida
em que entramos pela primeira vez, ou que a mulher possa sorrir-nos,
ainda que lhe brilhem os olhos, ou que desarvore no mundo o milagre
da redenção
– o corpo progride para a imensidão, os olhos
gastam-se por tanto verem,
destrói-se o momento da centelha e do mistério
e nada é sagrado,
nada é iluminado pela visão
longínqua que tivemos.
© Amadeu Baptista