sexta-feira, 22 de maio de 2015

Isabel Cristina Pires






POEMAS DE 'CIDADE DAS IMAGENS'





INQUÉRITO A UM ANJO HERÁLDICO


(Anjo Heráldico,
Mestre dos Túmulos Reais, séc. XVI)


Sofre de asma psicossomática? – Sim.
É orgulhoso? - Sou exatamente como você.
Tem comichão nas asas? – Sim.
Quer comentar? – Não.
Qual a diferença entre anjos e arcanjos? - Os olhos.
Como? - Os arcanjos usam rímel.
Qual a sua peça de teatro favorita? – Hamlet.
Porquê? - Precisam todos de mim.
E o seu livro favorito? - Os Peanuts.
Porquê? - Partilham bem o vácuo.
Se fosse água, seria o quê? - O lago Baikal.
Porquê? - Soa-me a lodo.
E se fosse um animal? - Seria um crocodilo.
Perdão?? - Estou farto de ser o mister nice guy.
Porque usa duas faixas cruzadas sobre o peito? - Para me lembrar que não sou um crocodilo.
E se fosse uma árvore?... - Seria uma escada de bombeiros.
Mas uma escada de bombeiros não é uma árvore! - Vê-se que nunca salvou um gato.
Acredita que existe? - Não, mas acredito em respostas.




JOÃO BAPTISTA

(João de Ruão, séc. XVI)

Nu. Pior que nu, está esfarrapado.
Pior que esfarrapado, está indiferente
ao olhar. Está longe das próprias vísceras,
e a viagem que faz perante nós
só tem partida. Os braços e as mãos
foram traídos pelo escultor, os pés em ferida
não têm mando ou destino,
é uma nuvem sem cor que o arrasta
sem fome nem sede nem desejo.
Não é no mundo dos vivos
que um dia irá morrer, apesar
da mão de Salomé, aquela que viu tudo
inalcançável. João transformou-se no deserto
e só ele caiu na eternidade - é esse o olhar
com que nos ignora, são esses os farrapos
que apodrecem .
A dor, a grande dor que não se vê,
é o alimento dos deuses
e dos homens.



PIETÀ

(Frei Cipriano da Cruz, séc. XVII)

I
Quem não tem a sua Pietà dentro do peito?
Quem não viveu o grande Nunca Mais?
Quem não viveu?


II
Mas como se mostra um filho morto?
Esta lava, esta nudez, este estupor
da carne abandonada?
A dor é simples e letal, e só depois
se abre o teatro do obsceno.
A mãe desaparece e fica a diva,
o filho não morreu, não vai morrer,
não vai nunca morrer, a mãe não sabe
deste happy end da salvação, do volte-face
após três dias, e chora e ergue os olhos
e tiram então fotografias que vendem mil jornais
e levam a todo o lado aquela injusta
tragédia. A morte vende sempre, dizem eles.


III
Stabat Mater. Eis a mãe dolorosa
exausta de existir, com o corpo
dissolvido em ácido sulfúrico. É uma dor de bicho,
que mata todo o pensamento, toda a Terra.
Para lá da madeira, da pintura,
o íntimo vapor de um ser humano
queima a alma.


IV
O pesadelo aconteceu.
A mãe que abraça um filho morto
perde-se do mundo para sempre.
Nunca mais, repete. Nunca mais.
Nunca mais existe toda inteira:
a mão esquerda de Deus
cortou de mais.


V
São estátuas dentro de estátuas
num duplo silêncio que sepulta.
Esta é uma morte escancarada
que faz cair a casa onde moramos.
O Cristo arrefece de hora a hora
num corpo nu e azul todo estendido:
a morte que vejo é sem esperança.


VI
Se ressuscita, não sei - a tirania
do agnosco ! Sei
que lhe festejam a vinda
num domingo solar da primavera,
quando tudo sai da terra num triunfo.
Conheço o grande aleluia
e os paramentos de festa.
Do Cristo ressurrecto nada sei.


VII
Só sei
que tudo ressuscita.



ODE A UM EXTINTOR DO MUSEU
OU ACERCA DA INVISIBILIDADE

Cheguei carregada de sulcos e de nuvens.
Ao meu lado direito, um objeto sem ânsia,
o mais sujo degrau de um sistema de castas
com o seu aço vermelho de palhaço.
Encosta-se à parede com um abstruso
bico aberto, e ali permanece o dia inteiro
feito de horas que o lambem com vagar,
como uma gata que lambe os seus gatinhos.
Este extintor é o soldado necessário
que me dá e que me tira um mundo inquebrável
e ausente. Mas ele é o que é, nada consente, saiu
de uma sarjeta e foi elevado à assepsia
brilhante da cidade, um esgoto de platina, o balde
e a vassoura de ir ao baile, o brado obsceno
no chão da catedral. Aqui não o distingo
como coisa: vivemos para ser cegos num museu,
ou depressa morreríamos no rigor maníaco do dia.
Mas hoje vi. Ninguém tão exilado, tão leal, tão sem
cartas de amor e sem ninguém que olhe o bom criado.
E o facto de estar só, e invisível, e tão longe de todos,
sendo de todos talvez o salvador,
transforma-o, aí está, num ser humano




in 'Cidade das Imagens', 2015



© Isabel Cristina Pires





© das fotos: Amadeu Baptista

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