quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Sistina



Está em distribuição o meu novo livro 'Sistina', acabado de publicar pela 'Edita-me'. Aqui deixo a capa do livro e um poema do mesmo:






PINTURICCHIO: MOISÉS A CAMINHO DO EGIPTO
E A CIRCUNCISÃO DE SEUS FILHOS

Podemos escrever na terra, meus filhos, mas não conseguiremos
ler o que fica escrito, seja pelo ímpeto do vento que tudo desconcerta,
seja pela ínvia escuridão que sobre as nossas cabeças paira e ameaça,
como se não fôssemos nós também escuridão
e à nossa treva não correspondesse outro poder que não sabemos
distinguir e não sabemos de onde vem.

Por isso, convém que armemos o corpo de jurisdições ocultas,
de incisões na carne,
de voltas no prepúcio,
para que esteja em nós a voz dos antepassados
e o nosso rogo vá pelas várzeas e vá pelo deserto
dizer como não temos
como entender a nossa linguagem
e que ignoramos o que seja
a sarça ardente e o seu triunfo.

Ajoelhemos, meus filhos, mas não nos prostremos
nesta cúpula de fogo,
neste incêndio que reclama a nossa boca,
neste incenso combusto por uma ordem só de expectativas,
a anunciar-nos como,
e quando,
e onde
se produzirá o milagre,
sem que a ele possamos aceder,
sem que lhe chamemos nosso,
sem que ao nosso sangue aceda a clareza
que há nas promessas
e no céu se alicerçam.

Mas, sim, cumpramos os rituais que nos defendem,
sangremos a glande,
extirpemos a pele que nos molesta,
façamos o que a outros vimos nós fazer,
para que seja maior o nosso arco
e mais potentes
as nossas vacilações e decisões.

Na terra prometida está o leite e o mel
com que sonhamos,
mas há-de ser por nós e o nosso vezo
que ascenderemos ao divino
e letra a letra de nós mesmos diremos
de onde vimos e para onde vamos,
soem ou não soem as trombetas,
possamos nós, ou não,
vencer o que mitiga a nossa humanidade
e nos faz párias
e nos obriga, ainda, a que deambulemos sob o irrestrito solo
das inquietações,
a caminho do Egipto,
ou dele regressando.

Agora, neste sítio, onde há explosões de silêncio
e clarões inexplicáveis no horizonte,
agora que escrevemos na terra mas não conseguimos
ler o que fica escrito,
de nós só restará a nossa força,
solene ou não,
a nossa força de homens destinados a seguir em frente
para que não haja mais deserto nos nossos passos
e os nossos sonhos sejam quem nós somos
neste castigo de não sabermos nunca
o que nos domina, e expurga, e ofende.

Deus já fez de nós praga bastante,
obrigando-nos à viagem, ao exílio e à desgraça,
à desventura de, em terra bárbara, não sermos mais que bárbaros
que ao céu invocam alguma paz,
algum plano que nos faça livres,
sem dano nem vinganças,
sem terror.

Por isso, é assim que somos
e o nosso rosto sangra,
e estão os olhos cegos dessa luz que nos atinge,
e nos diz o silêncio que redime.

Por essa luz é que aqui viemos
e se há-de abrir o mar para que passemos,
e se aproximará de nós a morte a reclamar-nos,
e não aguentaremos o degredo,
e às tribos será imposta a peregrinação,
e estamos sempre como que perdidos entre a exaltação
e o bezerro de ouro,
entre o louvor e a comiseração,
o medo e a agitação de um êxodo que nunca mais acaba,
ou só acabará se nós morrermos.

Mas, sim, cumpramos os rituais
que nos defendem,
que somos nós, assim, o sacrifício
e o que lemos não o conseguiremos ler,
se na terra fica.